Um ensaio visual sobre som e identidade: o som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

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Um ensaio visual sobre som e identidade: o som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

Rosane Kaminski

Universidade Federal do Paraná

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Resumo: Neste texto, desenvolve-se uma reflexão sobre identidade no filme O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984) a partir de duas dimensões, trabalhadas em dois momentos do texto. Na primeira parte, ao assumir o filme de Omar enquanto uma “forma que pensa”, discutem-se cruzamentos e identidades fronteiriças perceptíveis entre o cinema, o vídeo e as artes visuais. Na segunda parte, a partir da análise de trechos fílmicos, são apontados alguns eixos fundamentais que caracterizam O som ou tratado da harmonia, no que concerne à relação entre sonoridade e identidades.

Palavras-chave: Arthur Omar, cinema, identidade.

A visual essay about sound and identity: O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

Abstract: This paper presents a reflection about identity in the movie O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984). The paper is divided in two parts. In the first, the movie is presented as a “form that thinks”. Relations between cinema, video and visual arts are discussed here. In the second part, movie segments are analysed, pointing towards some possible discussion threads about the relation between sound and identity.

Key-words: Arthur Omar, cinema, identity.

Introdução

O presente estudo dedica-se à análise do curta-metragem O som ou tratado da harmonia, produzido por Arthur Omar em 1984, com o objetivo de refletir sobre duas diferentes acepções do conceito de identidade que são perceptíveis no filme. Num primeiro momento, pensa-se a identidade enquanto aquilo que especifica o produto fílmico em si, aquilo que o caracteriza, e discute-se o seu diálogo com outras formas artísticas. Num segundo momento, pensa-se o conceito de identidade num sentido antropológico e social, e busca-se observar de que forma o filme relaciona a experiência sonora com a construção de identidades. Sendo assim, o texto será dividido em duas partes, nas quais se pretende abordar o tema da identidade no filme de Omar por esses ângulos distintos.

Na primeira parte, serão privilegiadas algumas articulações entre cinema, vídeo e artes visuais. De saída, isso pode ser pensado como um debate sobre as identidades híbridas e fronteiriças que surgem de cruzamentos entre linguagens visuais, sonoras, multimidiáticas. Tais cruzamentos se tornaram muito recorrentes desde os anos de 1970-80, seja pelo uso de suportes alternativos, seja pelos trabalhos de artistas visuais que fizeram uso do cinema ou vídeo (caso do super-8 e da vídeo-arte) ou, ainda, pelo trabalho dos cineastas que exploraram as novidades do vídeo na fatura de seus filmes. Este será um dos pontos de reflexão desenvolvido por meio da análise de trechos de O som ou tratado da harmonia e com o auxílio da proposição de Phillipe Dubois (2004) de que o “vídeo é uma forma que pensa o cinema”. Em seus textos, Dubois discute o vídeo não como técnica ou linguagem, mas sim como “forma que pensa” (DUBOIS, 2004: 28), que se caracteriza pelo “senso constante do ensaio, da experimentação, da pesquisa, da inovação” (Ibidem: 77). Isso posto, vale dizer que o objetivo central, nessa parte do texto, não será estabelecer distinções entre cinema, vídeo, videoarte ou outras formas audiovisuais, quanto mais definí-los . Será, antes, refletir sobre a elaboração formal complexa e provocativa do filme de Omar, que emaranha formas artísticas diversas, que pensa por meio da forma fílmica, e não “através” dela. A noção de “filme” é entendida enquanto obra em si mesma, independente e singular, na esteira do que propõem Jacques Aumont e Michel Marie (2004: 9). Enfim, argumenta-se que o filme de Arthur Omar é uma “forma que pensa”, pois explora a própria linguagem do audiovisual enquanto assunto.

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Na segunda parte, ao eleger como objeto de atenção o referido filme de Arthur Omar, outras questões concernentes à identidade vêm à tona. Aqui, o significado de “identidade” remete aos contínuos processos de construção cultural dos sujeitos, nos âmbitos individual e coletivo. Já desde a primeira cena, O som ou tratado da harmonia faz clara referência aos aspectos identitários implícitos nas nossas experiências sonoras. No seu decorrer, entretanto, o assunto não se revela simples ou didático. Ao contrário, é insinuado, problematizado, tensionado e provocado por diferentes ângulos. De tal modo que o principal objetivo dessa parte do texto será apontar e analisar algumas dimensões pelas quais o tema da construção de identidades é perceptível no filme. Isso será feito a partir da análise de trechos fílmicos que permitem observar dois eixos distintos que caracterizam a obra O som ou tratado da harmonia, no que concerne à relação entre sonoridade e identidade. São eles: [1] a emoção e o som no processo de identificação do “eu” e do “outro”; e [2] as sonoridades e a identificação cultural com o lugar. Por fim, à guisa de conclusões, observar-se-á  a presença articuladora de um terceiro eixo nessa relação, referente à dimensão política das experiências sonoras.

1. Primeira parte: O “vídeo como forma que pensa” e o cinema de Arthur Omar

No âmbito audiovisual, a década de 1980 foi marcada, entre tantas outras coisas, por uma discussão sobre as especificidades e as articulações entre cinema e vídeo. Tal discussão se processou, ao mesmo tempo, numa esfera teórica – em textos de Phillippe Dubois, por exemplo – e numa esfera prática. Costuma-se dizer que as décadas de 1960 e 70 foram um tempo em que artistas plásticos fizeram vídeos “porque o que desejavam fazer podia ser melhor expresso em vídeo” (FRICKE, 2005: 604), mas pode-se também dizer que, nos anos 1980, vários cineastas produziram filmes com características videográficas . O ponto de partida para essa afirmação, como dito antes, é a definição de vídeo proposta por Philippe Dubois já desde aquela década. A ele não interessa perseguir uma suposta especificidade do vídeo enquanto “meio”. Interessa, isso sim, observá-lo como um “estado, modo de pensamento (das imagens em particular), forma que pensa” (DUBOIS, 2004: 110). Nesse sentido, o cinema também pode ser videográfico, pois esta característica depende antes da experimentação formal ou, como diz Dubois (2004: 77) de um “senso constante do ensaio”.

Visto hoje, com a distância de três décadas, essa simultaneidade de produções práticas e teóricas ocorridas na década de 1980 permite observar uma movimentação no campo do audiovisual que mesclava características documentais, ficcionais, metalinguísticas e artísticas na busca de novos meios de relacionar o audiovisual e a realidade social.

Essa movimentação também é visível na obra de alguns cineastas brasileiros nos anos 1980, em especial nos filmes de Arthur Omar. Sendo assim, a primeira parte deste capítulo volta-se à discussão do aspecto ensaístico e intercambiante no filme O som ou tratado da harmonia. O objetivo é refletir sobre a potência política implicada no experimentalismo estético do autor, que mescla, em forma fílmica, elementos em que se identifica o cinema documentário, as artes visuais (instalações, performances) e o vídeo.

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O debate acerca das relações entre o estético e o político é denso e possui longo lastro. No presente texto, cujo objeto de atenção é um filme de Arthur Omar produzido no Brasil dos anos 1980, privilegia-se a dimensão política e histórica dos experimentalismos de linguagem artística.

Numa palestra proferida ainda em 1934, intitulada “O autor como produtor”, Walter Benjamin (1994: 131) já explanava sobre essa dimensão. Dizia ele que um romance, por exemplo, não é político simplesmente quando seu conteúdo divulga ideologias partidárias através de métodos narrativos convencionais, e sim quando participa da fabricação dos “meios de produção” artística, tensionando a literatura do seu tempo. O filósofo recomendava aos escritores de então que estivessem atentos às mudanças de percepção que marcavam a sociedade europeia daqueles anos. Tais mudanças perceptivas estariam associadas às características dos novos meios de comunicação (por exemplo, no início do século XX, a fragmentação típica da edição de textos e imagens publicados em jornais e revistas, bem como das reportagens de rádio e da montagem cinematográfica). E é daquele mesmo contexto europeu marcado pelos experimentalismos das vanguardas artísticas, que surgiria a noção maiakovskiana de que “não há arte revolucionária sem forma revolucionária”, tão repetida por artistas brasileiros como os concretistas paulistas, por exemplo (CAMPOS, 2001).

Pode-se dizer que essa discussão atravessou o século XX e estende-se até os dias atuais. O filósofo Jacques Rancière continua defendendo a potência política dos experimentalismos das vanguardas artísticas, dentro do que ele considera um “regime estético” da partilha do sensível . Às vezes, esta relação entre arte e política é nostalgicamente posta num tempo passado, especialmente aquele do começo do século XX, quando a arte andou lado a lado com as utopias políticas em torno da ideia de revolução, ou então os emblemáticos anos 1960. Mas a produção artística da década de 1980, tratada aqui, apresenta um aspecto bem mais irônico do que utópico no tensionamento da percepção e das interpretações sobre o mundo. É a partir desse enfoque que privilegia o âmbito político de um fazer artístico investigativo e coerente com os debates mais candentes do seu tempo, que se situa O som ou tratado da harmonia. Ou seja, o filme pode ser avaliado dentro de um quadro mais amplo dos debates sobre cinema e arte que perpassam aquela década, se cotejado a algumas matérias publicadas na revista Filme Cultura entre 1980 e 1984, bem como aos textos teóricos sobre audiovisual publicados originalmente entre 1987 e 1990 que debatem o estatuto do cinema e do vídeo ao longo das décadas de 1970 e 80.

Comecemos pelo autor e algumas de suas inquietações.

1.1. O artista, os filmes, os questionamentos

Arthur Omar é conhecido como diretor de cinema. Todavia, ele é um artista que faz uso do cinema, mas não se restringe a ele. O crítico de arte Agnaldo Farias (2002: 83) o define como “um artista multifacetado” ou “híbrido” que, “além de cruzar os suportes com os quais trabalha, demonstra igual destreza ao lidar com cada um deles”. Seus primeiros filmes datam do início da década de 1970, e são caracterizados por uma espécie de oposição ao modelo de documentário “sociológico” que era recorrente no Brasil, segundo explica Jean-Claude Bernardet. Este modelo consistia numa “forma de registro das tradições populares, da arquitetura, das artes-plásticas, da música, etc.”, e no início dos anos 1970 foi questionado por “documentários inquietos tanto com os problemas sociais como os da linguagem” (BERNARDET, 1985: 7-8). Nesse trabalho de questionamento é que se engajavam as obras fílmicas de Arthur Omar feitas naqueles anos. O próprio Bernardet (2009: 214) escreveu sobre o filme Triste Trópico de Arthur Omar, recém-produzido e exibido na cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 1974, dizendo que:

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É um filme de pesquisa radical, que questiona a maneira de fazer cinema e a maneira de o cinema se relacionar com a realidade. Se ele ganhar prestígio cultural, não será pelos seus ornamentos, mas pela perturbação que pode trazer e pelas propostas que faz. [...] O filme assume assim um papel importante, culturalmente dinâmico. E se a dignidade cultural tem que ser procurada, que não seja nos cetins bem fotografados, mas na pesquisa, no experimentalismo, na procura de uma nova dramaturgia que possa modificar a compreensão da realidade brasileira .

É nesse questionamento das formas de fazer cinema e de se relacionar com a realidade brasileira que se destacam os filmes de Omar, cineasta empenhado num trabalho de desconstrução e remodelação da linguagem do documentário.

Quanto a esse processo de desconstrução e remodelação realizado por Omar, a pesquisadora Guiomar Ramos (1995: 23-24) observa três diferentes momentos na obra fílmica do autor no período que vai de 1972 e 1984. A autora identifica um primeiro momento de “negação do documentário padrão” (filmes de 1972 até 1975), em que a estrutura do documentário padrão está presente, mas de forma desconexa, nonsense e constantemente ironizada; seguida de um segundo momento de composição fílmica mais abstrata, sem referência a um tema, e nos quais não se observa mais o confronto com a estrutura do cinema documental (filmes de 1977 a 1979). As experiências de desconstrução dos documentários no primeiro momento e o aprofundamento das relações entre sons e imagens nos filmes que se seguiram, conduzem, de acordo com Ramos, a um terceiro momento da obra de Omar, marcado pela busca de produção de sentido numa relação positiva com o tema proposto (filmes de 1981 e 1984). Nota-se, nesse momento, uma presença “modificada” do documentário . E é aí que surge O som ou tratado da harmonia, curta-metragem de 16 minutos filmado em 35mm, no qual o cineasta se propõe a produzir um documentário sobre o tema amplo da experiência sonora e suas implicações emocionais, políticas e identitárias.

Entretanto, como elaborar um “tratado” sobre a sonoridade através da linguagem cinematográfica? Ou melhor, por meio de uma linguagem que é “áudio”, mas que também é “visual”? Essa experiência evoca a declaração do cineasta Jean Luc-Godard a propósito do seu próprio filme, intitulado: Jean-Luc Godard par Jean-Luc Godard (1968): “Se eu refletir um pouco, uma obra desse gênero é como se eu tentasse escrever um ensaio antropológico em forma de romance e para fazê-lo eu não tivesse à minha disposição senão notas musicais” (apud MACHADO, 2004: 18).

Enfim, algumas das questões que se colocam a partir desse filme de Arthur Omar, e que concernem à identidade das próprias linguagens e formas artísticas são: como refletir sobre a dimensão da experiência auditiva (sonora) por meio de outro tipo de experiência (visual e sonora)? É possível “refletir” por meios não-verbais ou através de uma narrativa não-teleológica? E como essa proposta se articula às questões mais candentes nos debates culturais e políticos do seu tempo de produção?

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Quanto à capacidade reflexiva de meios como o cinema ou o vídeo, teóricos da imagem tais quais Jacques Aumont e Phillipe Dubois defendem a noção de “ensaio audiovisual” que inclui o “filme ensaio”, os “ensaios de vídeo” e o cinema como “forma de pensamento” (apud MACHADO, 2004: 16-17). Sobre essa noção, Jacques Aumont (1996) diz que o cinema nos faz pensar sobre ideias e sobre sentimentos através de um discurso de imagens e sons que pode ser tão denso quanto o discurso das palavras. Para ele, foi a partir do filme “O homem da câmera” (Vertov, 1929) que o cinema tornou-se “uma nova forma de escritura, isto é, de interpretação do mundo”. Mas Arlindo Machado (2003: 10) diz que é com Jean-Luc Godard que o “cinema ensaio” chegaria à sua expressão máxima, por meio de filmes produzidos nos anos 1960 e que não são ficção, pois não possuem enredo ou força dramática, que não possuem personagens que sustentem a narrativa, e que não são, ao mesmo tempo, documentários no sentido mais tradicional, pois fazem uso de atores e situações encenadas. São reflexões sobre um tema. O próprio Godard (Cahiers du Cinéma, 1962) afirmava-se enquanto “ensaísta” dizendo que ao invés de escrever ensaios, ele os filmava. Dubois (2004: 59) afirma que em Godard “a escrita – em todos os seus estados – está organicamente presente na (e em torno) da imagem”.

Estamos falando de imagem cinematográfica que, como a imagem do vídeo, não existe enquanto matéria . É uma imagem de “passagem”, “espécie de intervalo permanente que nos ilude enquanto o olhamos” (DUBOIS, 2004: 63). “Passagem” e “intervalo” são vocábulos que remetem ao tempo, à sucessão, a uma ordenação sequencial (e não simultânea, como no caso da pintura ou de uma página impressa). Fica evidente, nessa definição, que a imagem fílmica contém uma dimensão de temporalidade ausente de outras formas visuais, tais quais a pintura, a gravura, a escultura. Isso independe do assunto abordado por um ou outro filme: a imagem cinematográfica é sempre “passagem”.

No caso do filme de Arthur Omar, essa dimensão se duplica quando o cineasta escolhe como tema a experiência auditiva, ou seja, um tipo de experiência extremamente articulado à dimensão do tempo. Dimensão que, nas artes em geral, se estrutura em forma de sequência ou narrativa. Mas que Omar prefere tensionar, nesse filme, por meio da sucessão não-teleológica, da justaposição de fragmentos e da sobreposição de imagens e sons que nem sempre coincidem e explicam. Antes contrastam, incomodam, intrigam.

Enfim, se a obra de Omar é caracterizada por esse constante questionamento do meio (ou dos meios) com os quais lida, pode-se dizer que ele faz cinema como “prática videográfica” , ou como “pensamento”, ou mesmo como “ensaio”.

Segundo Adorno (apud MACHADO, 2003: 2), o que define um ensaio (na forma escrita) são atributos literários como a subjetividade do enfoque (explicitação do sujeito que fala), a eloquência da linguagem (ou preocupação com a expressividade do texto), e a liberdade de pensamento (concepção de escritura como criação, em vez de simples comunicação de ideias). O ensaio distingue-se do mero relato científico ou da comunicação acadêmica nos quais a linguagem é antes de tudo instrumental. No ensaio, destaca-se o manejo da linguagem escrita. Nesse sentido, Arlindo Machado (2004: 17) destaca a ocorrência, nas últimas décadas, do “surgimento de uma discussão sobre a possibilidade de ensaios não escritos, ensaios em forma de enunciados audiovisuais” e penso que aí pode-se localizar a intervenção fílmica de Arthur Omar. Seus filmes e seus vídeos consistem em enunciados audiovisuais que não tem um enredo ou  narrativa ficcional (no sentido mais tradicional da ideia de narrativa no cinema); mas sim enunciados reflexivos – sobre o próprio universo da linguagem cinematográfica, mas também sobre questões estéticas, políticas, filosóficas, afetivas e, como será discutido mais adiante a partir de O som ou tratado da harmonia, questões identitárias.

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1.2. O Som de Arthur Omar e seus diálogos

Em depoimento recente, Omar diz que o seu interesse pelo som enquanto tema ou conceito já vinha tomando corpo desde o filme Tesouro da juventude, de 1977: “uma única peça de quase vinte minutos, usando sintetizadores que não tinham sido usados em nenhum filme no Brasil” (OMAR, 2013). O assunto tomou corpo em suas obras seguintes (Vocês, de 1979; Música Barroca Mineira, de 1981) até culminar no filme O Som ou Tratado da Harmonia, em 1984. Este filme consiste num ensaio experimental sobre as dimensões emocionais, políticas e identitárias da percepção sonora, por meio da linguagem cinematográfica.

Por meio do cotejo entre esse filme e outras fontes da época, observa-se que Omar entrava no debate sobre linguagem audiovisual que tomava corpo no ambiente cultural daquela década. Várias edições da revista Filme Cultura, especializada em cinema,  entre 1980-84 trazem reflexões sobre as dimensões da materialidade do cinema brasileiro, com destaque para a questão do som.

Em 1981, a Filme Cultura publicou uma edição cujo tema central era “Som e cinema”, no mesmo ano em que Omar estava realizando o seu Música Barroca Mineira. Nesta edição, vários diretores, compositores e técnicos prestaram depoimentos sobre suas experiências referentes ao som no cinema. Entre eles estava Arthur Omar, afirmando que “o som é o verdadeiro espaço do filme, [...] é o suporte real de toda percepção no cinema. [...] Sem ele, a imagem é um dejeto abstrato, feito de ritmos sem sentido.” (OMAR, 1982: 19-20).

Cena inicial de O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

Ao trazer o som como assunto central no seu filme de 1984, Omar passa a falar de outros temas a partir desse centro. Enfim, o som não é “efeito especial”, não é adereço. É, antes, ponto de partida, estrutura identitária, ritmo. O som, ou tratado da harmonia discute o som enquanto elemento da linguagem cinematográfica, e, ao mesmo tempo, o articula às mais variadas formas de experiência do homem no mundo. Em tais experiências, destaca o quanto a sonoridade é parte constitutiva do ser humano. Mas sem propor algum tipo de afirmação sobre o assunto. Para ele, “o filme promove intencionalmente um desconhecimento” (OMAR, 1994).

A abertura do filme começa com a imagem de um técnico de som segurando um microfone e equipamentos de gravação, como se estivesse capturando os sons à sua volta, enquanto se ouve a voz de uma narradora que diz: “Eu acho que é uma coisa muito circular, quer dizer, a minha identidade sonora me faz com que eu deseje certos sons e, ao mesmo tempo, eles formam a minha identidade sonora.” Pode-se dizer que esse é o mote que dá unidade ao filme, cujos sentidos não são evidentes ou lógicos à primeira vista.

O enquadramento dessa cena inicial, em contra-plongé, com a câmera posicionada no interior de uma claraboia mostrando a silhueta do técnico de som contra o céu azul recortado em semicircunferência, faz com que a ideia de circularidade seja reiterada pela banda visual. O início já anuncia a tônica fragmentária e circular do filme, que é composto de catorze sequências, organizadas em dois grandes movimentos (RAMOS, 1995: 58) . A primeira e a última fazem o papel de abertura e fechamento: as questões levantadas bem no início parecem ser “respondidas” no final, quando mesma voz feminina que havia se escutado no início diz: “isso é o som!” Apesar dessa fala afirmativa no final, o filme não é nada óbvio a ponto de podermos responder de imediato o que ele nos disse, exatamente, sobre o som.

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Por meio de uma montagem complexa, não naturalista, em que os recursos sonoros raramente são sincronizados com o que vemos na tela, o filme aponta para a presença constante e a importância do som em diferentes âmbitos da vida (emocional, identitário, político), bem como para o impacto desses âmbitos quanto à produção do som (a tonalidade da fala interfere no sentido do que é dito; a música cria “estados de ânimo”, a audição da própria voz pode nos fazer ter outra visão de nós mesmos, etc.). Omar faz isso explorando a voz humana, sons de animais, de instrumentos, ruídos de máquinas, músicas, combinando-as com a fala da narradora, de quem só conhecemos a voz feminina em alguns momentos do filme.

No que diz respeito à linguagem, observa-se que o cineasta mantém alguns elementos narrativos da estrutura do documentário padrão: (1) a presença de narradores (na parte inicial e final do filme), (2) os trechos de entrevistas e depoimentos (com uma terapeuta, uma bailarina e um ex-guerrilheiro), e (3) uma visão científica sobre o assunto (dissecação do ouvido que chega ao cérebro para mostrar como funciona a audição).

Todavia, mesmo mantendo esses elementos, Omar o faz sem criar uma linearidade evidente e sem “didatismo”. É irônico em relação à linguagem do documentário. Isso, como vimos, já é uma característica do cineasta desde os seus primeiros documentários produzidos nos anos 1970. Naquela terceira fase do cineasta demarcada por Guiomar Ramos (1995 p.24), caracterizada pela relação positiva com o tema tratado, o assunto “som” pode ser desenvolvido, mas não, é claro, de um modo convencional como seria no documentário padrão.

Mímico com bexiga. O som, ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

Interessante notar também que, apesar de documentário sobre um tema que poderia ser tratado de forma “científica”, Omar trabalha com atores , o que é mais típico do filme ficcional, e também estabelece articulações com as artes visuais.

Quanto às relações com artes visuais, um primeiro ponto a destacar é que a banda sonora não apresenta-se como “complemento” da visual. A discussão sobre som acontece sobretudo por meio da polifonia, sobrepondo ruídos, músicas, narrações, depoimentos e efeitos sonoros. A edição foi realizada com seis pistas de som, segundo depoimento de Ricardo Miranda (1995), responsável pela montagem do filme; a maior parte dos depoimentos apresenta-se com voz over, enquanto na banda da imagem assistimos a algumas situações que não correspondem ao que está sendo dito, ou que mantém com a narração verbal uma ligação metafórica. Isso gera situações performáticas, como aquela em que um mímico movimenta-se com uma bexiga amarela cheia de ar, em frente a uma parede coberta por imagens que evocam azulejaria portuguesa. A câmera está fixa, a cena do fundo é simétrica, o mímico segura a bexiga amarela sempre no mesmo lugar, movimentando seu corpo em torno dela. Isso dura cerca de um minuto, até a explosão da bexiga. Assistimos a uma espécie de performance, enquanto na banda sonora, ouve-se a narração de um sonho erótico, como se fosse em sessão de terapia. Acompanhando a narração, sons repetitivos e estridentes de violino conferem ritmo à cena e provocam uma tensão incômoda.

Outro exemplo é a cena em que vemos, em contra-plongé, as mãos que puxam um fio invisível, ao mesmo tempo em que ouvimos o ex-guerrilheiro Herbert Daniel falar de masturbação. Ambos os trechos parecem vídeo-performances.

Jovem loira na gaiola. O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

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Um segundo ponto a destacar, quanto à relação deste filme com artes visuais, é a presença de instalações artísticas dentro de sua estrutura. É o caso da cena enigmática da moça loira nua dentro de uma gaiola, que faz a “passagem” entre dois momentos do filme. Esse trecho não contém narração verbal na banda sonora, apenas duas músicas em sequência, e músicas detentoras de uma carga “narrativa”. A câmera gira ao redor da gaiola, focando ora o corpo da moça, ora a grade que a aprisiona. A jovem loira parece simplesmente exposta como produto, ou como animal enjaulado. Não parece incomodada: olha para o espectador, fuma um cigarro de maconha, sorri, exibe-se, mas não diz nada.

Esse trecho pode ser pensado como uma instalação dentro do filme. Segundos depois há um corte, e a mesma moça loira, ainda nua, aparece deitada sobre um gramado, num jardim de esculturas. Parece acordar, senta-se de costas para o espectador, e a cena termina. Estaria ela se sentido “livre” pelo efeito da maconha? Ou estaria acordando de um sonho, em que ela mesma se via “engaiolada”? Trata-se de um fragmento dentro do todo, que não possui conexão evidente com as cenas anteriores do filme e nem com as que virão depois dela.

Outras sequências podem ser vistas como obras-fragmentos do filme: aquela em que homens munidos de picaretas quebram paredes, e que pode ser encarada como uma vídeo-performance. Nesta, uma das paredes é recoberta por um pôster fotográfico em que se vê uma paisagem serena de floresta. Ouvimos as picaretas e o som dos pedaços de parede que caem, ao mesmo tempo em que há um trecho de depoimento do ex-guerrilheiro Herbert Daniel , contando sobre sua experiência na mata da Ribeira. Ele fala da falsa impressão que temos de que a mata é silenciosa – impressão contradita pelo ruído agressivo das picaretas e, logo em seguida pela afirmação de que na mata há “uma quantidade de gritos, pios, galhos que se quebram...”.

Isso tudo mostra que Omar está pensando e problematizando a linguagem fílmica, seus limites, suas tangências com outras expressões artísticas, pensando a linguagem como criação, e não apenas utilizando-a como veículo de ideias prontas. Seu filme situa-se  naquele sentido de “forma que pensa”, proposto por Dubois para refletir sobre a produção audiovisual que fervilhava nos anos 1980.

Provas de que Omar estava ligado ao debate que se processava nesse âmbito mais amplo estão em algumas declarações suas publicadas na imprensa. Quando da exibição de O som..., no I Festival Internacional de Cinema, TV e Vídeo do Rio de Janeiro, por exemplo, o jornal Folha do Festival publicou um comentário sobre a visão do artista acerca do próprio filme: “Forma e conceito se entrelaçam de maneira inédita, trocando-se as posições a cada passo”. Após algumas palavras sobre os blocos de imagens visuais e sonoras do filme, o cineasta disse que esses desembocavam num “farfalhar luxuriante da forma”, obtido através de “vozes que se cruzam vindas da infância, do sonho e da História”, e de imagens que são distanciadas para que o espectador não se perca nelas. (OMAR, apud SALOMON, 1984). Ou seja, o cineasta traz para o primeiro plano, tanto em seu filme quanto em suas declarações públicas, a potência significativa de uma forma incômoda, opaca, que impede o mergulho puro e simples no assunto narrado. Além disso, a participação do filme num festival de teor híbrido, em sua primeira edição no Rio de Janeiro, aponta para os cruzamentos e os trânsitos identitários entre cinema, televisão e vídeo.

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Dois anos depois, quando Arthur Omar preparava um vídeo sobre o artista Tunga (o Nervo de Prata, finalizado em 1987), a Revista Cine Imaginário (1986) publicava o seguinte texto, que inclui trechos de declarações do artista:

“O vídeo faz parte do meu arsenal expressivo em termos audiovisuais”, afirma Arthur Omar, a quem o vídeo cativou há cerca de cinco anos. [...] A verdade é que, de cinco anos para cá, o vídeo teve um papel importante na sua pesquisa de som, imagem e linguagem audiovisual. Nesse meio tempo, Arthur Omar abandonou a carreira de professor [...] e passou a dedicar-se integralmente à produção de vídeos – sua profissão principal – e filmes (entre eles, o experimental O Som ou Tratado da Harmonia, de 1984), além de pesquisas com sons e com sua mais recente menina dos olhos: o computador. [...] Como teórico da linguagem audiovisual, ele diz que a “linguagem do vídeo tem que se desenvolver a partir de sua relação de ‘janela aberta’ para o mundo, isto é, como uma ‘imagem imediata do real’”.

Essa declaração, publicada no calor da hora, quando Arthur Omar passava a utilizar também o vídeo na produção de suas obras, evidencia seu interesse por múltiplas linguagens e suportes, sua vontade de experimentação, seu empenho em pensar a forma por meio do filme, do vídeo, da fotografia, da instalação artística . As artes não apresentam limites ou identidades rígidas, o que é constatado pelo trânsito de Omar por esses suportes, apesar de mostrar que não gosta de rótulos planificadores: “Não sou artista multimídia porque não misturo as mídias” (OMAR, 1997). Circular por diferentes suportes e experimentá-los não significa colocar tudo num liquidificador e dizer que “tudo é igual”. Mas a experimentação, nos trabalhos de Omar, evidencia a possibilidade de trânsitos, de trocas e experimentalismos que fazem ver a forma, seu processo de montagem, a construção de ritmos e evocação de sentidos por meio dos fragmentos e da justaposição. E as interferências de um tipo de trabalho em outro se tornam, assim, perceptíveis.

Enfim, após assistir o filme O som... a sensação é de fragmentação, de referências a outros suportes, e de multifaces em torno do tema “som”. O círculo se fecha sem respostas claras, apenas com a afirmação um tanto incerta da narradora: “...eu acho que isso é o som! [...] eu quero esse som que está saindo aqui e a vibração dele, constante na minha vida, [...]; eu quero escancarar a fragilidade...”

Se no âmbito da linguagem o filme caracteriza-se por uma estrutura fragmentária, circular, que não pretende fundar verdades, no âmbito temático a questão da identidade também é multifacetada. Vejamos, na segunda parte do capítulo, alguns aspectos dessa questão, a partir de elementos do filme que permitem pensar a relação entre som e identidade por diferentes ângulos.

2. Segunda parte: identidades caleidoscópicas em O som ou tratado da harmonia

O conceito de identidade é frequentemente associado à noção de cultura. No entanto, como alerta Denys Cuche (1999: 176), não se deve confundir os dois termos, pois “a cultura pode existir sem consciência de identidade, enquanto a identidade remete a uma norma de vinculação consciente baseada em oposições simbólicas”. A identidade existe sempre em relação a um “outro”, ou a valores diferentes daqueles pelos quais nos identificamos. Ela se constrói e se reconstrói constantemente no interior das trocas sociais.

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Aqui vale relembrar a cena inicial do filme de Omar, já mencionada antes: uma voz feminina fala da “identidade sonora” e da circularidade entre sujeito e sonoridade, enquanto se vê um técnico captando sons com microfone e equipamento de gravação. Esse início refere-se claramente à articulação entre construção de identidades e nossas experiências com sons.

Noutra sequência, um pouco adiante, imagens mostram o fenômeno da percepção auditiva no organismo humano, através de um suposto caminho percorrido pelo som no corpo desde que é captado pelo ouvido, passando pelo cérebro, pelas membranas faciais, até chegar à boca, o órgão emissor de sons. Uma enorme boca, vista em pormenor, se movimenta na tela, abre-se, fecha, e depois ri. Em todo esse trecho, a banda sonora não é explicativa, traz outros assuntos para além do que está sendo mostrado na imagem (é nesse momento que se insere o tema político, através da referência à voz anasalada de Carlos Lamarca). Mas a câmera cria esse percurso visual quase “científico” e, ao chegar à boca, reitera aquela ideia de circularidade já posta na cena inicial – o mesmo ser que percebe o som, que ouve, também emite, se comunica, se constrói, se identifica por meio da experiência sonora.

Partindo dessa noção de circularidade e interdependência entre identidade e som, pode-se refletir, a partir de alguns eixos apresentados a seguir, sobre como o filme constrói essa ideia.

2.1. A emoção e o som no processo de identificação do “eu” e do “outro”

O primeiro eixo organiza-se em torno das representações da emoção e do som no processo de identificação do “eu” e do “outro”. Surge da observação de vários elementos presentes no filme que, apesar de não serem sequenciais e nem necessariamente produzirem uma narrativa, podem ser organizadas em dois grupos.

Um primeiro grupo é aquele em que se reitera a entonação da voz como elemento de produção de sentidos e de identidade. Logo na segunda sequência do filme, após a expressão “identidade sonora” emitida pela narradora, vê-se um ator num estúdio de gravação de som. Ele enuncia um trecho da peça Édipo Rei, com a usual “gravidade” da tragédia. Logo em seguida, aspira gás hélio por um tubo (conforme sugerido por uma voz masculina que assumiu o papel de narrador) e repete o mesmo trecho com um timbre “de Pato Donald”, o que quebra toda a gravidade do texto teatral. A leitura do enunciado trágico de Édipo com uma entonação inadequada confere um tom cômico à cena, logo interrompido pela apresentação cirúrgica de uma orelha sendo cortada para que possamos acompanhar a câmera no exame do ouvido. A voz feminina reaparece e diz: “a onda sonora é energia... eu sou energia, eu sinto a relação do meu corpo com o som.”

Em seguida, entra outra voz masculina (que é parte do depoimento de Herbert Daniel) fazendo menção à Lamarca, descrevendo sua voz anasalada que ficava metálica quando ele estava nervoso. Essas falas, sobrepostas à visão cirúrgica da orelha sendo cortada e da pele que vai descolando do rosto, até ser substituída por um close em um cérebro, contrastam com o caráter científico das imagens, pois enfatizam a dimensão emocional do ser humano.

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Também faz parte desse grupo de elementos uma voz feminina bastante emocionada que pontua os instantes finais do filme, quando diz “eu quero tudo o que não é onipotência, eu quero escancarar a fragilidade”. Sobreposta a essa declaração, ouve-se música barroca, enquanto a câmera faz um travelling rente ao mar, revelando apenas a superfície trêmula e instável, que impede de mensurar sua profundidade. A água surge como metáfora das emoções, movediças, profundas e imensuráveis.

Quinta justa e quarta aumentada. O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

Ainda nesse sentido de enfatizar a relação entre som e emoção, situa-se a sequência em que um homem, sentado diante de um fundo preto e de frente para a câmera, tenta descrever verbalmente as diferentes reações emocionais de um suposto sujeito que ouve um acorde harmônico (quinta justa) e um acorde dissonante (quarta aumentada). No entanto, aqui não nos deparamos com uma representação da emoção em si, mas com uma explicação verbal sobre ela, num tom um pouco arrogante e debochado.

Um segundo grupo de elementos é formado pelas situações em que o som é usado como terapia, tanto no sentido de “ouvir-se a si” quanto no de “ouvir o outro”. Pode-se citar, como primeiro caso, um trecho da primeira parte do filme (quinta sequência), em que a narração de uma terapeuta descreve a situação de um menino que chorava muito, não se sensibilizava com sons “de fora”, e a quem ela fez ouvir o próprio choro gravado. “Chorava, chorava o tempo todo, não havia som que eu utilizasse que chegasse até essa criança que a fizesse parar de chorar”. Enquanto isso é dito, a câmera mostra o céu: nuvens vistas de um avião, um sol, depois apenas o azul. A terapeuta vai descrevendo como fez para sensibilizar o menino: gravou seu choro, reproduziu esse som para que a criança ouvir a si, o estancar do choro, o fato de que a criança aprendeu a tocar bateria. A imagem mostra um violão sendo tocado por varetas, como se fosse uma bateria. A narração verbal dessa terapeuta, ainda que faça sentido em si mesma, é um fragmento isolado dentro do filme. Assim como as imagens que a acompanham são fragmentárias, estranhas, e não afirmativas em relação ao que está sendo dito. A junção de sentidos entre som e imagem só se dá no momento em que a voz fala a palavra “bateria”, é acompanhada por um som de percussão, e vemos as baquetas sendo acionadas sobre um violão.

Outro trecho do filme que pode ser situado junto a esse grupo é aquele em que uma voz masculina fala sobre o seu dilaceramento ao ter que escolher entre ser guerrilheiro e ser homossexual. “Parecia ser uma contradição absolutamente insolúvel”. Nesse caso, o ouvir a si é simultâneo ao narrar a si, o que também consiste em processo terapêutico. Esse é um trecho do depoimento do Herbert Daniel, no qual ele fala de questões muito íntimas, como a masturbação: “Nesse momento eu tive que optar: ou ser guerrilheiro, ou ser homossexual, eu fui ser guerrilheiro. Eu usava como forma de auto-erotismo a masturbação, que é tão desprestigiada, mas que foi a que garantiu que durante esse tempo eu conhecesse um pouco do meu corpo”. Ao mesmo tempo, ouvem-se sons aquáticos artificiais, gerados por um sintetizador. A imagem que se vê é repugnante: um grupo de ratos recém-nascidos se move sem parar, filmado em close. O contexto todo é de estranhamento, repulsa. Mas aí vem a finalização desse trecho verbal: “...uma dúvida enorme surgiu em mim, essa dúvida era a seguinte: pra mim, a revolução que eu estava tentando fazer era um enorme ato de amor, como então esse enorme ato de amor podia recusar outros atos de amor como essa coisa que eu sentia dentro de mim que era a homossexualidade?”

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Uma síntese possível, a partir desse grupo de elementos aqui mencionados, é a articulação entre identidade e psicanálise: a busca do “eu”, que passa pela narração de si e pela experiência de ouvir a si mesmo, e pelo estranhamento e até repulsa de si, passando pelo questionamento sobre as próprias escolhas até o reconhecimento do “eu” enquanto sujeito, indivíduo. Isso permite pensar a articulação do psicológico e do social em um indivíduo, a colisão de valores, o movimento constante de vincular-se ao coletivo, de construir-se enquanto identidade social, em termos sexuais, políticos, nacionais, entre outros.

2.2. As sonoridades e a identificação cultural com o “lugar”

Uma das questões mais debatidas em relação às identidades é a sua articulação com o lugar em que se vive: a região, a nação, e mesmo a língua que se fala num país. Nesse sentido, o segundo eixo destacado a partir do filme, no que concerne à relação entre som e identidade, centra-se nessa questão.

Ainda nos minutos iniciais, na quarta sequência, que inicia após aquela cena da boca em close que ri, vemos o rosto de uma mulher em perfil. Falando português com forte sotaque estrangeiro, ela logo se identifica como uma bailarina “do norte”, de um povo “do trovão e dos ventos”. Conta ao espectador que também canta: “Nós, quando dançamos o fazemos bravamente e quando cantamos abrimos o peito e lançamos a voz com força!” Ela empina o peito e canta, sua voz é envolvente e peculiar. Nesse primeiro momento, fala de sua relação com uma região geográfica (norte) e suas características (montanha, trovão, vento), sem situá-lo em termos de nação. Depois ri e volta a falar. Nesse segundo momento, como se estivesse respondendo a uma pergunta numa entrevista, menciona um país que não é o dela, mas que conhece: o Brasil. Diz que “O Brasil tem muita energia![...] é como uma mistura de cores...”.

Essa é a primeira menção à ideia de Brasil que aparece no filme. Se aquela remissão à voz de Lamarca fora o primeiro signo declaradamente político, essa declaração da bailarina do norte é a primeira remissão declarada ao país do cineasta, autor do filme, e vem justamente de uma estrangeira, de um “outro”. Daí para a frente, vários signos ligados ao passado político do Brasil aparecerão, bem como à imagem fragmentária e caleidoscópica do que significa identidade nesse país.

Os mais significativos signos de identidade nacional brasileira no sentido oficial, tratados com ironia e deboche, são aqueles da cena em que são ouvidos os primeiros acordes do Hino Nacional que vai, aos poucos, desafinando. A imagem mostra um gravador de rolo em close. Sobre ele desliza uma cobra, muito vagarosamente, o que dá a impressão de que o réptil interfere na velocidade daquele rolo, e que é ele que emite o som do Hino. Por isso desafina. A fita do gravador vai saindo da bobina, e então se justapõe à música a voz de Auro Moura de Andrade, que era o presidente da câmera de deputados na última sessão do parlamento em 1964 antes do golpe militar, bradando: “atenção, senhores deputados! atenção, senhores deputados! está suspensa a sessão!”. Ao fundo, gritos: “Fascista! comunista!” O conjunto todo parece uma videoinstalação: a câmera fixa, o movimento do rolo e a interferência do movimento e do peso da cobra sobre o rolo, a instabilidade do som.

Cobra, gravador de rolo e Hino Nacional. O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

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A cobra, nesta cena, não deixa de evocar símbolos de brasilidade do modernismo brasileiro, como a “Cobra Norato”, de Raul Bopp, ou as lendas do norte sobre a Cobra Grande. A junção da cobra, do Hino nacional desafinado e o brado nervoso do político geram a impressão de uma memória problemática do passado recente, crítica frente à necessidade de definição de uma identidade nacional pautada no folclore e nos símbolos nacionais, e crítica também frente ao ufanismo sustentado pelo governo militar ao longo dos anos 1970. Segundo Guiomar Ramos (1995: 72), o hino desafinado nesta cena representa a “deterioração da nacionalidade, sua perda”. O conjunto surreal de elementos sugere uma identidade nacional caótica naquela primeira metade da década de 1980, em que se ensaiavam os primeiros passos da abertura política no país.

Outra cena que remete à identidade brasileira é a sequência imediatamente anterior a essa do Hino, em que se vê um aparelho de televisão ligado no altar de uma igreja, e que também se assemelha a uma videoinstalação. O cenário sacro, contudo, traz um elemento novo em relação ao que já foi posto aqui, e acrescenta um fator à identificação cultural com o lugar: a experiência mística ou religiosa.

Um canto gregoriano surge antes da imagem, fazendo a “costura” com a cena anterior. Esse canto é o que nos conduz à imagem do interior de uma igreja barroca, que remete ao catolicismo. O ambiente é escuro, com pouca iluminação, e a câmera passeia pelas paredes, mostra o ladrilho do chão, até chegar ao altar. Nesse momento, a música gregoriana é sobreposta por sons carnavalescos. Ao mesmo tempo, pode-se ver que ao lado esquerdo do altar encontra-se uma televisão ligada. A câmera deixa de se interessar pelo altar e se aproxima lentamente do monitor de televisão, fonte da música carnavalesca. Ali se vê a imagem de um homem vestido com roupa de escola de samba. De cabeça baixa, ele vai se afastando para o fundo da cena, de costas para o espectador, aparentemente desolado. Trata-se de um trecho do filme Samba da criação do mundo (1978), de Vera de Figueiredo. A música cresce, enfatizando elementos culturais de origem africana, e pontuando o sincretismo religioso, que mistura carnaval e candomblé ao lado do altar católico: “Ôooo.. ai que dor, pela estrada me perdi/ era tanta vontade de chegar/ era tanta vontade do mundo criar/ desobedeci/ Perdão Olorum, perdão”... Esse pedido de perdão funde-se às primeiras notas musicais do Hino Nacional brasileiro, dando início àquela sequência com a cobra e o gravador de rolo, antes comentada. Uma verdadeira mistura de elementos que remetem à brasilidade, fragmentos identitários que não se excluem, apesar de seus contrastes.

Televisão no altar de igreja. Cena de O som ou tratado da harmonia (Arthur Omar, 1984)

Concluindo: dimensões políticas das experiências sonoras

A dimensão política na construção das identidades poderia ser apresentada como um eixo à parte. Entretanto, se os dois eixos que caracterizam O som ou tratado da harmonia, no que concerne à relação entre sonoridade e identidade e já mencionados nesse texto são permeáveis e inter-relacionados, é notório o quanto são perpassados pelo político.

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Pode-se dizer que, no filme aqui em questão, o político articula e confere sentido último aos demais âmbitos: individual, afetivo, regional, nacional ou místico-religioso, pois é latente nas misturas de elementos visuais e auditivos que Omar constrói. Desde as referências ao “eu”, às inquietações mais íntimas, até os dilaceramentos implicados nas escolhas sociais e existenciais.

O destaque ao político se dá, principalmente, pela presença predominante dos depoimentos de Herbert Daniel, que foi guerrilheiro e exilado político. Sobre essa proeminência, Omar (1994) declarou que foi resultado do processo de trabalho:

Eu fui pegando depoimentos que falavam de sexualidade, política, sexo e som. Tudo isso pode estar um pouco sintetizado no depoimento do Hebert. Mas eu não queria fazer um filme sobre ele, ou com ele, porque seria privilegiar uma pessoa que fala desses assuntos explicitamente. E eu não acho que quem fale de política, sexo, etc., explicitamente, esteja mais próximo desses assuntos do que quem não fala explicitamente.

Assim, o depoimento de Herbert foi fracionado e remontado na junção com outros elementos, outros sons, imagens diversas, situações performáticas. As questões terapêuticas, as narrações de sonhos, os cenários que evocam instalações artísticas, compõe um mosaico fílmico que, a cada movimento, transforma-se como num caleidoscópio.

Mas a presença do político é também marcada pela referência ao Brasil, que vai desde a primeira menção ao país, feita pela bailarina estrangeira, até os sons dos primeiros acordes do Hino Nacional que desafina, e que se ouve mesclado à voz emocionada do deputado Auro Moura de Andrade, em 1964. Essa voz é um som documental evocativo do início do regime militar – que vinte anos depois, em 1984, ano de produção de O som... , já estava totalmente desacreditado. A forma com que foram usados esses sons documentais indica uma crise de identidade que encontra um equivalente naquela crise narrada pelo próprio Herbert em termos de experiência pessoal, quando precisou escolher entre a “revolução política” ou a “revolução sexual”. A grande diferença, pode-se dizer, é que naquela cena do Hino Nacional desafinando, que praticamente encerra o filme, a crise é indicativa não de um sujeito, mas de um “tempo” na história brasileira, um tempo de se perguntar “quem somos nós, afinal?”

A ausência de resposta, ou a falta de otimismo quanto a uma possível resposta, fica insinuada pelo tenebrismo de boa parte das cenas fílmicas, como pode ser observado na predominância da penumbra nas imagens reproduzidas neste texto.

Arthur Omar, enquanto artista, não isenta o lugar de enunciação desse questionamento. É por meio de um filme que problematiza inclusive a própria linguagem, seu diálogo com outras formas artísticas, seus limites e a sua função no mundo, que Arthur Omar edifica essa pergunta. Ao fazer isso, dá forma ao seu pensamento e potencializa a dimensão política do próprio fazer.

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