O cinema como um dispositivo produtor de simbólicos

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O cinema como um dispositivo produtor de simbólicos

Júlio César dos Santos

Rosa Maria Berardo

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Resumo: Neste artigo se faz uma reflexão teórica sobre dispositivos cinematográficos que possibilitam a experiência da alteridade. Foi construído um experimento, um dispositivo: um projetor colocado sobre um espelho que projeta sobre a face-tela do espectador, uma imagem em tamanho natural do rosto de uma mulher negra. O objetivo é a imersão do espectador no efeito de real provocado pela imagem plasmada sobre sua face-tela tornando-a ao mesmo tempo sua e de outro indivíduo, revestindo-se de sua identidade, ou de outro modo, tendo a alteridade renderizada à própria pele.

Palavras-chave: Cinema, dispositivo, identidade.

Abstract: This paper is a theoretical reflection on cinematic devices that enable the experience of otherness. An experiment was constructed, a device: a projector mounted on a mirror designs on the face-screen viewer, an image real size of the face of a black woman. The goal is to immerse the viewer in a real effect caused by the image of their face-shaped screen making it both his and another individual person which finds its identity, or otherwise, taking the other’s identity rendered on the skin itself.

Key-words: Cinema, device, identity.

Introdução

O cinema é um dispositivo de múltiplas definições e abrangências que vão do artefato tecnológico, do aparelho mecânico, do instrumento ou máquina, à produção do conhecimento e a mediação de relações de poder e saberes, entre estes, o sentido disciplinar descrito por Foucault (1979) ou o dispositivo da sexualidade nas relações étnicas e de gênero (De Lauretis, 1987). O cinema é um dispositivo que vai do concreto maquínico ao abstrato onírico, ou como querem Albera e Tortajada. Os autores falam de “ciné-dispositifs” englobando tanto o arsenal tecnológico quanto o potencial simbólico que o cinema pode carregar consigo, destacando-se para este estudo a questão da identidade, também vista sobre sentido amplificado do dispositivo, mas sustendo-se no simbólico cinematográfico e, principalmente na autoimagem e sua representação. Para se chegar a este sentido, ou estado de significação, torna-se necessário adentrar pelo viés psicanalítico do cinema, refletindo e refratando seu caráter de imersão subjetiva. Já que “só eu posso me chamar de eu” (Elia, 2007) e ninguém mais, o que se busca aqui é radicalizar este estado de alteridade.

De que maneira se pode vivenciar a alteridade na ipseidade? Pelas leis da Física Clássica, isto é absolutamente impossível: dois corpos jamais podem ocupar, ao mesmo tempo, o mesmo lugar no espaço. A Física Quântica aponta para outras possibilidades, e a Realidade Virtual para outras mais.

O cinema tem sido, ao longo de sua história, visto e revisto das mais diversas formas, gerando teorias e classificações, escolas e estilos, artistas e cientistas, industriais e consumidores, enfim, uma gama de leituras de suas práticas e objetos multidisciplinares, tudo isso no estreito sistema programático, linguístico, artístico e psicanalítico.

A convergência entre estas formas é o “dispositivo cinematográfico”, termo proposto inicialmente por Baudry (1975), explorado por Foucault (2009) como mecanismos de controle social, e expandido por Albera e Tortajada (2011), configurado em cinco aproximações que ora se conjugam ou se ignoram.

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O dispositivo

Uma definição que já aparece em fins do século XIX designa “a maneira como são dispostos os órgãos de um aparelho”, o que é compreendido já de pronto como a combinação de determinados mecanismos com fins a um efeito, um resultado.

No campo da técnica dispositivo configura uma certa complexidade que nos leva a designar elementos constitutivos de um aparelho, que agem conjuntamente em função de um efeito. Um dispositivo, visto deste modo, se distingue de uma ferramenta ou de um instrumento ou, ainda, de uma máquina ou de um aparelho, na medida em que esse dispositivo é percebido como um prolongamento do humano e no caso, como uma máquina complexa como um computador, que Bruno Lattour chama de “boîtes noires”.

O termo foi utilizado desde os primórdios do cinema como, por exemplo, os Irmãos Lumiérès, que buscavam traduzir a combinação de diversos mecanismos numa determinada “disposição” de diferentes elementos no interior de um mecanismo que eles denominam “cinematógrafo”, um melhoramento considerável da invenção de Thomas Edison, em 1892 – o “kinetoscópio”, um dispositivo que só permitia a exibição de um filme a um único espectador por vez. O cinematógrafo, dos Irmãos Lumiérè (1896) permitia a projeção numa tela grande à um certo numero de pessoas ao mesmo tempo, o que o tornava comercialmente mais viável e que Georges Meliés logo percebeu a potencialidade como entretenimento coletivo, popular, e lucrativo, produzindo centenas de filmes, desde 1897.

Albera e Tortajada assim descrevem o dispositivo cinematográfico:

Au sein de l’appareil dit “cinematographe”, il y a le dispositif (d’árrêts intermittents) qui permet la projection d’une bande chronophotographique. Mais quand l’appareil – et ses dispositifs internes – est en fonction – au moment de la prise de vue ou, à l’inverse, dans une salle, devant un écran et avec des spectateurs -, il institue cette fois un dispositif que relie diferentes instances, c’est le cinematographe. (2011, p. 15)

Portanto, o aparelho é um dispositivo, ele mesmo, constituído de um conjunto de outros dispositivos internos à ele, os quais funcionam de forma combinada de modo a produzir um efeito ou resultado, no caso, a projeção. O aparelho, no entanto, não se constitui na soma destes elementos, mas na combinação que produz um efeito conjugado, tanto mecânico quanto energético.

Outro sentido, que se apoia sobre os dois anteriores, é aquele que lhe concede o experimentador, ou utilizador. Ou seja, é a maneira como estes dispositivos são percebidos por quem e para quem os utiliza na experiência realizada, sua relação com outros aparelhos ou máquinas, ou como define uma situação -  projeção de um filme.

Ainda assim, mesmo com toda a complexidade que o termo adquire, permanece a ideia de maquinação, mesmo que se pense num quadro ou num discurso composto com fins de obter um determinado efeito, de ilusionismo ou não, o dispositivo mantém seu caráter técnico apesar de apontar para outras potencialidades da noção.  A impressão causada pelas imagens projetadas pelo cinematógrafo já sugerem sua agência mediadora entre o sujeito e as imagens projetadas, as quais atuam como reflexos especulares, que faz com que os espectadores experimentem a sensação de realidade, ou ainda, a sensação de voyeurismo instaurado por um “novo regime do imaginário” (Idem, p. 17).

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Ao considerar aquele por quem o dispositivo age, se pode definir a noção de dispositivo como “aparato”. Jean-Louis Baudry propõe duas versões para este termo. Em ambas, o autor considera o dispositivo como certos mecanismos capazes de implicar em representações (e portanto, identificações) ideológicas. Neste caso, a noção de dispositivo aparece associada diretamente à ideia de representação, ou seja, o aparelho institui uma situação onde o espectador é convencido a crer numa “ilusão” que lhe causa “impressão de realidade” que o autor desenvolve para “o efeito de real” (desenvolvido por Jean-Pierre Oudart). A partir destas ideias, Christian Metz persegue critica esta questão propondo o cinema como um dispositivo simbólico. (Idem, p. 19). Desta forma, põe-se em evidência o lugar do espectador e seu estado de presença/ausência, tomado a princípio no campo da literatura para depois migrar para o campo do cinema, por aproximação e analogia no plano da representação nas narrativas ficcionais. O filme, assim como o livro, é um dispositivo técnico (como no terceiro sentido) que se constitui numa estrutura em movimento, pois implica um utilizador dentro de um conjunto de mecanismos definido por sua finalidade.

O último sentido apresentado por Albera e Tortajada se apoia na noção desenvolvida por Michel Foucault em seu livro “Vigiar e Punir” e que apresenta o dispositivo relacionado à questão da sujeição, ou seja, designando-o como um aparelho disciplinador não apenas sob a tutela do Estado, mas como um conjunto de mecanismos de reorganização do próprio Estado através de procedimentos técnicos minúsculos, que redefinem o espaço através de uma vigilância generalizada.

Albera e Tortajada resumem, assim, cinco possíveis noções, percebidas como plenamente aplicáveis ao cinema. Se todas estas noções se mostram a partir da dimensão técnica do dispositivo, fica claro que as três primeiras estão mais diretamente ligadas à ação técnico-mecânica enquanto que as duas últimas conduzem à uma reflexão diversa sobre o sujeito em suas relações com o dispositivo, seja exercendo poder ou sendo subjugado por ele, podendo desta forma nos aproximar da psicanálise em que o cinema se compõe de um dispositivo técnico e simbólico que implica tanto em efeitos conscientes quanto inconscientes relacionados tanto à identificação narcísica, ou seja, o reconhecimento de si mesmo, quanto ao sadismo do voyeur que observa o outro sem ser observado, mascarando tudo isso por uma “epistemofilia” (Metz, 1980). Ou ainda, numa expansão de significação, os próprios sujeitos passíveis de serem percebidos também como dispositivos simbólicos biopsicocultural, cujas identidades são representadas por simbólicos individuais e coletivos, numa conjugação muitas vezes premeditadas. Somos imagens e imagens são dispositivos, logo, podemos dizer que nós mesmos somos dispositivos em imagem que produzem a sensação de identidade, simbolicamente.

Identidades simbólicas

O que é a identidade senão um coletivo de representações simbólicas dispostas de múltiplas maneiras em sujeitos diversos, distintos e coletivos, constituindo uma vastíssima polissemia, tanto como identidade quanto como representação, ambas plurais. Mas, não por acaso, é possível perceber que cada sujeito individualmente se compõe de uma conjunção de atitudes e comportamentos que podem ser classificados como coletivos e alguns particulares que continuam a garantir, invocando Mikhail Bakhtin, a unicidade do sujeito. (Brait, 2006).

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A identidade é um conjunto de mecanismos, estratégias, julgamentos, parametrizações, classificações, identificações e diferenciações, nunca em pares ou dicotomicamente, mas sempre num diálogo incessante de significados, significações e sentidos, ou seja, de representações e interpretações, consequentes mas randômicas.

Estes mecanismos podem ser denominados “dispositivos identitários” que definem e designam um conjunto de estratagemas buscadas e desenvolvidas a partir da demanda e interpelação histórica e cultural da vida em sociedade, do único em meio ao múltiplo. Inclusão ou exclusão, centro ou periferia, quase todos os termos ligados à territorialidade existencial, ou seja, o corpo e sua geopolítica, estão relacionados ao ic et nunc deste indivíduo ou coletivo que se quer identificar, ao qual se deseja designar um parâmetro comparativo, e portanto, identificador.

O que faz da mulher negra, uma mulher negra? Pode-se dizer que a condição e situação do ser mulher negra depende de uma certa disposição de mecanismos e estratégias que compõem uma imagem que sintetiza em si a identidade, por ser um dispositivo simbólico que representa.

A partir desta concepção se pode perceber que também a identidade produz representações de si que por sua vez se constituem em sistemas e relações de signos e poder que condicionam outras identidades e diferenciações. O que pode ser aplicado aos conceitos de feminilidade e negritude como formas de identidade, simbólicas, representativas, linguísticas, artísticas e, ao mesmo tempo materiais, consolidadas como paradigmas sociais, históricos e culturais, e antes biológicos e psíquico. Neste sentido, a identidade se enquadra no âmbito da cultura e da subjetividade, uma vez que contribui para as suas representações assim como é produzida por elas.

Assim, a identidade de gênero e cor apresenta aspectos de um determinado modo de compreender a feminilidade e a negritude que podem ser desvelados como modos de ser e de viver, considerando-se que esta categoria de pessoas estão inseridas num processo de construção simbólica muito mais amplo, situadas num contexto a que chamamos relações de gênero.

Compreende-se que a identidade se constrói numa prática cultural, como uma ação social na qual se utilizam múltiplos dispositivos, pensando como Stuart Hall (2006) que argumenta que toda ação social é cultural, todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas (ou dispositivos) de significação.

A cor como identificação pode aparecer vinculada como etnicidade, mas aqui é visto como um elemento estratégico de uma geopolítica da negritude. Não existe pele preta nos sistemas e paletas de cor que conhecemos. Porém, o que significa ter uma pele cuja cor define uma posição e uma postura de sujeito individual e coletivo, que acoplada à condição feminina delimita um território, que se utiliza desta condição, para o bem ou para o mal, como um dispositivo simbólico de identidade? 

Desta forma, infere-se que a identidade pode ser pensada como um dispositivo simbólico, ou ainda, que a identidade é um conjunto de simbólicos produzidos por múltiplos dispositivos combinados de uma forma ou de outra. A combinação destes dispositivos proposto como foco de estudo deste artigo é a “renderização”.

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Renderização

A contemporaneidade técnica e tecnológica trouxe para o cinema um termo que antes era aplicado apenas ao vídeo: “renderização”, aportuguesamento da ação do verbo inglês to render , que significa tecnicamente “fundir camadas”, como se fosse uma sobre-gravação que se tornou possível com as edições de vídeo não lineares, que o cinema digital utiliza na atualidade sem pudor ou menosprezo.

No cinema, a auto-representação, em todas as suas possibilidades poéticas, é uma enunciação explícita do que se sente ou pensa sobre si, sobre os outros, sobre o mundo, sobre toda e qualquer relação que tenha consigo mesmo e com o contexto. Sendo grafia, o cinema assim é percebido como linguagem, do mesmo modo que a língua escrita.

Introduzir o termo renderização ao cinema possibilitou estender esta ideia para a questão da identidade, tratada muitas vezes como uma sobreposição ou fusão de imagens. Senso comum, muitas vezes se pergunta o que há por trás da imagem de algum objeto ou pessoa pressupondo camadas as quais se mostram aderidas, estando a mais aparente fadada a ser vista como falsa. O cinema foi muitas vezes comparado ao mito da caverna de Platão, principalmente pelo fato de ser projetado às costas do espectador; o que foi alterado pela imagem eletrônica da televisão, do computador e, atualmente, de imensas telas digitais.

O cinema, portanto, renderiza e fixa no filme, temporariamente, aparências sempre revistas e transformadas em sua essência pela interpretação que lhe dá o espectador. A questão: é factível pensar que a identidade pode ser plasmada sobre nossos corpos da mesma forma que as camadas do filme são renderizadas para formar um conjunto único de elementos audiovisuais? A identidade, sendo concebida como um dispositivo performativo e perlaborativo, está sempre in process. O filme que, como obra de arte, depende do contexto e do espectador para se realizar como um fenômeno sempre inacabado, em construção, faz com que a aproximação cinema/identidade se torne um território profícuo de simbólicos que permitem questionar e compreender modos de ser e de viver de coletivos e sujeitos.

A expectativa é buscar um mecanismo que permita perceber de forma sensível a alteridade na ubiquidade, provocando certo estado de interação/imersão condicionada à ideia de renderização, ou seja, na transformação da pele numa camada, uma tela sobre a qual pode ser plasmada uma outra identidade, transitoriamente.

Christian Metz , em “Cinema e Psicanálise”(1980) argumenta que o cinema, em analogia à “fase especular”, de que fala Freud retomado por Lacan (Elia, 2007), produz, da mesma forma, o efeito de identificação do espectador com a imagem cinematográfica, em função de certa sensação de realidade provocada pela metáfora audiovisual da imagem em movimento. Questiona-se: é possível ver o outro da mesma forma como se vê a si mesmo no reflexo do espelho, reconhecendo-se, por imersão na simulação de um olhar de dentro, imerso no outro, percebendo-se distinto e “igual” a si mesmo, chegando à sensação de alteridade como um “efeito de real” (Foucault, 1979)?

A partir desta indagação foi desenvolvido um dispositivo cinematográfico (descrito abaixo), cujo objetivo é “renderizar” a imagem de um “eu” na imagem de um “outro”,  provocando a sensação de alteridade plasmada, ubíqua, um mecanismo simbólico que afete de tal forma a subjetividade que torne possível perceber “de fato” a alteridade e a partir desta experiência, vivenciar o ponto de vista do outro, como num reconhecimento orgânico da alteridade: literalmente, sentir-se como o outro.

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O espectador-tela especular

Até as duas últimas décadas tinha-se trabalhado com duas ideias fundamentais de projeção fílmica: 1) a projeção cinematográfica clássica, com o projetor às costas do espectador, sobre o que se tem teorizou desde os primórdios do cinema, fazendo analogias desde o “mito da caverna” de Platão buscando compreender a percepção sensorial da visão e a formação da imagem fora e dentro da mente humana; e, 2) a projeção videográfica herdada da televisão, eletromagnética, com o projetor à frente do espectador, impressionando uma tela interposta entre este e o projetor foto-eletrônico. Os atuais projetores digitais tem obedecido ora um ora outro dispositivo, a luz transitando da transparência à opacidade, criando perspectivas na câmara escura ou clara. A projeção 3D, as experiências em “Caves” de imersão imagética, os avatares e jogos eletrônicos, além de outras experiências reunindo arte e tecnologia, tem buscado imergir o sujeito estimulando os seus sentidos a ponto de criar um simulacro de realidade, o efeito de real, de existente, de material, onde só existe o imaginário, o simbólico, territórios em que a arte e a tecnologia se fundem, se interpenetram e se engendram.

A proposição deste trabalho/experimento/dispositivo é uma quarta via, ou pelo menos a fusão de todos os modos da projeção, tornando o espectador a tela, seu rosto como anteparo de projeção, onde a transparência e a opacidade produzem novas formas e recortes do próprio corpo (rosto), isto querendo dizer: o espectador é transtornado em mecanismo, parte do dispositivo, tanto mecânica quanto subjetivamente, pois ao ser refletido, torna-se especular, ou seja, um reflexo ou uma “fantasmagoria” (Grau, 2009) da qual o próprio espectador é parte: o espectador-tela especular produz, portanto, uma imagem viva.

O Experimento

A proposta inicial foi construir um dispositivo cinematográfico  tomando como empréstimo conceitual a ideia de Thomaz Edison nos primeiros cinemas realizados em fins do século XIX, quando o dispositivo denominado kinetoscópio. A partir deste mecanismo desenvolveu-se um artefato, uma câmara escura, contendo em si os seguintes elementos: 1) uma caixa preta formatada a partir do kinetoscópio; 2) um mini - projetor data show (30 lumens) ; 3) um espelho de 30 cm x 40 cm, com moldura; 4) 2 fones de ouvido; 5) computador ou aparelho de DVD; e 6) um filme de 3 minutos contendo a imagem de uma mulher negra que diz: “eu sou mulher negra”.

O primeiro passo foi pensar uma solução ótica, pois teria que realizar a projeção num ângulo de inclinação que possibilitasse que a imagem projetada sobre o rosto se  refletisse no espelho de modo a ser vista pelo espectador como uma imagem plasmada.

A experiência foi realizada em sala de aula, no dia 28/06/2012, com um grupo de 6 estudantes e o professor da disciplina “Arte e Tecnologia”.

Pensou-se que, na medida em que se possa ampliar a sensação plásmica da luz (imagem projetada) sobre a pele-tela (rosto do espectador) o efeito de real será ampliado ao ponto de provocar catarse no espectador através da identificação visual com a imagem projetada, mimese da alteridade produzida pela projeção. O espectador não pode realmente transformar-se em outro sujeito como a personagem Zelig do filme de Woody Allen, mas poderá experimentar certo hipnotismo na superposição de imagens renderizadas e especulares.

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Algumas considerações

A impressão mais marcante na experiência com o dispositivo, relatada pelos espectadores, foi a sensação de que se tentava de algum modo promover uma espécie de lavagem cerebral.

Tornou-se clara a intenção da experiência quando foi possível ter-se, mais nitidamente, a sensação de realidade da impressão/projeção do rosto da mulher sobre a própria face. O estranhamento provocado fez-se mais real, mais estranho ao olhar pois o espectador, agora, podia ver-se de modo dúbio, confundindo seu rosto com o da mulher negra projetada. A coincidência do olhar, o rosto superposto no espelho, o calor da projeção provocou a sensação de que a “renderização” ameaçava ocorrer de modo definitivo.

A pergunta de que seria possível o “efeito de real” no sentido de perceber-se como o indivíduo projetado, a resposta foi afirmativa, com a ressalva de que se passava antes pela sensação de ter antes, a pele negra, para depois imergir na possibilidade de estar se vendo como uma mulher negra que afirma esta condição intermitentemente através de seu ato de fala: “eu sou mulher negra”.

Acredita-se, assim, que o experimento tornou possível experimentar e ter alterados estados de consciência da identidade, perguntando-se: como seria se fosse. Este dispositivo provocou a sensação de realidade, através do efeito de real, de transformação no outro que, no entanto, é uma imagem que age independente do espectador, sobre a qual o mesmo não tem controle.

Deste modo, considera-se que o cinema, sendo um dispositivo simbólico, permite criar condições de perceber a alteridade como aquilo sobre o que não se tem controle subjetivo. Pode-se controlar as ações, sobrepor a nossos rostos e corpos todos os elementos que identificam um indivíduo, seja como classe ou categoria. A ideia de “lavagem cerebral” percebida pelos espectadores confirma a possibilidade do uso da imagem e dos dispositivos simbólicos como dispositivos de controle, disciplinares. Ver um filme, portanto, constitui sempre mais que a sua mecânica. É a capacidade de controlar, explorar, induzir, conduzir, imergir nosso eu psicanalítico na condição de alteridade que permite a programação de ações, atitudes e comportamentos. Nenhum espectador passou a perceber-se como mulher negra de fato, mas como uma possibilidade, um possível imaginário e simbólico de que, assim como o próprio, esta mulher negra é um agente único, mas responsivo a uma interpelação, aqui representada pelo “ponto de vista”, o colocar-se, de fato, no lugar do outro.

Só uma mulher negra pode dizer o que significa ser realmente uma mulher negra, mas se reconhece que ser uma mulher negra é muito mais do que ser do sexo feminino e ter a pele pigmentada, é, antes, uma injunção cultural, social e política, e também uma representação desta mulher inserida na cultura e história. O espectador pode identificar-se ou não, reconhecer-se ou diferenciar-se na assertiva: “eu sou mulher negra”, e a partir desta percepção redefinir seus contornos simbólicos identitários que, assim como o cinema, é fugaz como um fantasma.

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Referencias bibliográficas

ALBERA, François e TORTAJADA, Maria. Ciné-dispositifs: spectacles, cinéma, télèvision, littérature. Lausane, Suisse: Editions L’Age d’Homme, 2011.

BRAIT, Beth (Org). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.

ELIA, Luciano. O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

GRAU, Oliver. Arte virtual: da ilusão à imersão. São Paulo: Editora UNESP: Editora Senac São Paulo, 2007.

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Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Editora UNESP, 2009.

HALL, Stuart. (Ed.) Representation: cultural representations and signifying practices. Los Angeles: SAGE-USA, 2012.

METZ, Christian, KRISTEVA, Julia, GUATARI, Félix e BARTHES, Roland. Psicanálise e Cinema. Trad. Pierre André Ruprecht. São Paulo: Global Editora, 1980.