Espaços vividos em narrativas fotográficas: o sertão e New York

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Espaços vividos em narrativas fotográficas: o sertão e New York

Susana M. Dobal

Universidade de Brasília (UnB)

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Resumo

A reflexão atual sobre a narrativa vai além das exigências iniciais da presença de personagens e ação para abranger também o funcionamento da imagem enquanto recurso narrativo. Nesse contexto, a fotografia supera o mero registro de uma realidade física para se revelar como elemento de uma articulação narrativa sobre essa realidade. São analisados aqui dois livros que tratam do sertão e de New York e que aliam texto e imagem em narrativas que refletem sobre o espaço físico, cotidiano, cultural. Nos livros Gotham Handbook, New York, mode d’emploi de Sophie Calle e Paul Auster e em Hinterland, de Maureen Bisilliat, baseado em fragmentos do Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, a fotografia documental insere-se em narrativas que dialogam com questões mais amplas do que o simples vínculo a um referente. O espaço físico compartilhado é colocado em questão, mas também as maneiras como a fotografia materializa a percepção desse espaço e assimila diferentes estratégias de significação em narrativas com imagens a fim de revelar não apenas elementos explícitos das ruas novaiorquinas e do sertão, mas a vivência desses espaços.

Palavras-chave:

O peso da referencialidade que tanto tolheu a compreensão da riqueza da fotografia enquanto linguagem, dificultou também que ela fosse percebida como a manifestação de processos discursivos mais complexos, como a narrativa. Termos como dialogismo, intertextualidade, tradução intersemiótica foram amplamente empregados para analisar a relação entre mídias diversas, discussão centrada primordialmente na literatura e no cinema, mas também no vídeo, nas artes plásticas e na hipermídia. A fotografia entra apenas marginalmente nesse debate, embora proliferem livros, vídeos, webdocs, instalações que não mais a concebem como representação estática do real presa a um referente e sim como mais uma forma de implodir a narrativa realista predominante no contexto em que se deu a invenção da fotografia. Os pressupostos da narrativa realista literária tornaram-se inviáveis na contemporaneidade porque a realidade do século XIX é incompatível com a maneira como a percepção e a representação se delineiam nos nossos dias. Essas transformações também ecoaram nos usos que se faz da fotografia.

A passagem da compreensão da fotografia como testemunho - percepção que predominou até recentemente mesmo que com ceticismo crescente - para a compreensão da fotografia como discurso, estratégia simbólica ou linguagem visual causou radicais transformações tanto na sua utilização quanto na criação da imagem fotográfica. Não falaremos aqui do potencial narrativo da voga de imagens fotográficas encenadas, que podem ser exemplificadas pela obra de Cindy Sherman, Jeff Wall, Gregory Crewdson, Brígida Baltar, entre outros. O foco aqui será na utilização da imagem inserida em narrativas que incluem texto e imagem, e mais especificamente, em narrativas que falam de espaços díspares mas que fazem um uso singular da imagem fotográfica. Para compreender esse processo, sugiro a análise de dois livros de fotografia que veiculam narrativas não convencionais, utilizando fotografia e texto. Os livros escolhidos trazem visões do sertão imaginado por Guimarães Rosa e fotografado por Maureen Bisilliat e um manual para explorar New York escrito e fotografado por Sophie Calle a partir de instruções fornecidas pelo escritor Paul Auster. Embora o fato de esses livros aliarem fotografia e texto não ser suficiente para constituir uma narrativa, é o bastante pelo menos para oferecer um fio condutor para a leitura das imagens e para investigar o processo pelo qual ocorre um abalo recíproco do sentido das palavras e das imagens reunidas nessas narrativas.

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Há inúmeras definições de narrativa que parecem tanto mais diversas quando se considera que, desde a derrocada do realismo, os esforços concentraram-se principalmente em transgredir ideias feitas sobre os mecanismos narrativos. Tzvetan Todorov, teórico estruturalista quando essa teoria era dominante, demonstrou a ineficiência das leis que deveriam definir uma narrativa primordial, tais como a lei da unidade de estilos, da não-contradição, não-repetição, não-digressão (Todorov, 1979, p.106-107). Ele, porém, não deixou de apontar o que seria o elemento comum às narrativas que seria a presença da palavra-ação e da palavra-narrativa. A primeira é a palavra consequente, que tem um aspecto literal e leva a um desenvolvimento da ação narrada. A segunda está relacionada ao discurso, “é uma arte – da parte do locutor, assim como um prazer para os dois comunicantes” (idem, 109). Nela, o referente é apenas importante na medida em que sua predominância é negada em detrimento do poder da narrativa em criar seu próprio desenrolar. Todorov demonstra como a Odisséia faz-se de uma rede interna de narrativas que lhe dá mais consistência do que a sequência dos acontencimentos narrados. Investigaremos como a utilização da fotografia nos livros selecionados traz à tona diferentes estratégias narrativas.

A ação tem certa importância no livro de Sophie Calle e Paul Auster, mas quase desaparece no livro de Maureen Bisilliat. Porém, a divisão de Todorov é pertinente pois o aspecto referencial está sempre presente nas imagens dos dois livros, ou seja, são apresentadas como registros da realidade e não imagens digitais (de síntese) ou encenadas.  Por outro lado, é o fato de estarem reunidas em livro e interligadas pelo texto que ajuda a fazer delas uma narrativa. Esse contexto enfatiza o caráter discursivo da utilização da imagem, tornando-a assim próxima ao que Todorov denominou de palavra-narrativa, ou seja, as fotografias estão vinculadas a um jogo onde a realidade é reconstruída sob a forma de uma narrativa. Cabe ao seu criador lançar mão de diversos recursos para encantar o leitor com seu relato.

Tânia Pellegrini, ao comentar sobre as narrativas contemporâneas tendo em vista a mútua implicação do cinema e da literatura, apresenta outros aspectos relevantes da narrativa. Para ela, ao responder sempre à história, a literatura não poderia estar alheia às formas de produção tecnológica do momento. A narrativa contemporânea, que ela situa a partir da Segunda Guerra Mundial, responderia, assim, à concepção do tempo e do espaço sugeridas pelo cinema, onde o espaço não pré-existe à experiência: “Assim, domínios do percebido (o espaço imagético) e do sentido ou imaginado (o tempo), o visível e o invisível, não se distinguem mais, pois um não existe sem o outro. Isso concretiza radicalmente a idéia de que, nas artes em geral, o temporal e o espacial formam domínios mutuamente permeáveis” (Pellegrini, 2003, p. 18-19). A autora diferencia essa percepção como uma mistura do visível e do invisível baseada na passagem e não mais no “instante pontual fotográfico” (idem,p.18). A fotografia é assim evocada apenas para ser indiretamente denegrida como arte retrógrada em meio ao dinamismo cinematográfico. André Rouillé demonstrou como o vício de pensar a fotografia presa ao referencial revelou-se tão pernicioso para a reflexão sobre ela. Mesmo um texto lúcido como o de Pellegrini, ao mencionar rapidamente a fotografia, cai mais uma vez na fórmula que a  congelou a fotografia em definições estanques. Não entraremos aqui nesse debate, já tão bem exposto por Rouillé. Basta para nossos fins demonstrar que a  argumentação de Pellegrini sobre as transformações da narrativa literária são aplicáveis também à narrativa fotográfica porque se, como a autora defende, a literatura responde à tecnologia do seu tempo, também a fotografia, mais um recurso de linguagem, respondeu às transformações da sensibilidade contemporânea.

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Pellegrini aponta que, se por um lado o tempo passou a incluir um tempo interior, que não coincide com o tempo objetivo e cronológico, por outro lado, também o espaço se transformou, pois deixou de ser homogêneo e fixo para tornar-se fluido, dinâmico, maleável. Os dois termos terminam por se fundir com a espacialização do tempo e a temporalização do espaço empreendidas pela câmera cinematográfica e assimiladas na criação de realidades plurais e mundos possíveis exemplificados pela obra de Borges ou de Calvino, “construídos pela memória, pelo sonho ou pelo desejo” (PELLEGRINI, 2003, p. 24).

Curiosamente, em um domínio onde o espaço pareceria mais imune às intempéries subjetivas, é justamente onde se observa quão profunda é essa transformação da percepção do mundo. Em livro sobre o histórico das mudanças ocorridas na geografia, Antonio C. Robert Moraes relata como o objeto dessa ciência deslocou-se da superfície da terra para os fluxos que a transformam – perspectiva predominante entre geógrafos como Milton Santos ou na reflexão sobre o espaço empreendida pelo economista Theotônio dos Santos (MORAES, 1986). Se, na literatura, a narrativa realista ocupava-se com minúcias e descrições, a narrativa moderna inspirada pela cinema, Pellegrini ressalta, busca o movimento e a descontinuidade para romper aquela tradição. Por sua vez, a Geografia Tradicional, fundamentada no positivismo, estava presa ao mundo das aparências o qual ela descreveu, enumerou e classificou. As etapas posteriores da geografia podem ser vistas como um movimento em direção a uma maior complexidade desses espaços que passam a ser atravessados por vetores diversos. Milton Santos fala de uma espaço quadridimensional onde o tempo seria a primeira dimensão e que se constituiria como um sistema de relações, como um campo de forças (Santos, 1980).  A transformação ocorrida nesse espaço, que não caberia aprofundar aqui, pode ser resumida como a assimilação de variáveis diversas ao espaço geográfico tais como especifidades, no lugar de modelos generalizantes; história, no lugar do espaço físico atemporal ou puramente à mercê da história natural; e, principalmente, um espaço social aliado a um tempo social, como diz Milton Santos. Entre a Geografia Tradicional e a Geografia Crítica mais contemporânea, geógrafos, sociólogos e filósofos ocuparam-se em revelar as estratégias que atuaram no sentido de despolitizar a geografia. A direção atual é, pois, no sentido contrário, ou seja, compreender o espaço sujeito às intempéries humanas, marcado por questões socio-econômicas acumuladas ao longo do tempo, perseguir os rastros do espaço produzido ao longo da história fundamentalmente social. Estamos longe, pois, daquele projeto positivista de descrever a realidade, ao qual a fotografia serviu tão bem.

A digressão parece longa para agora voltarmos às nossas narrativas fotográficas, mas elas são necessárias para que essas narrativas revelem-se dentro de um contexto bem mais complexo do que a mera ligação a um referente ou a fixação do instante aos quais a fotografia esteve por tanto tempo associada.

Maureen Bisilliat, fotógrafa inglesa que se fixou no Brasil em 1957, publicou diversos livros que aliam fotografia e literatura, sempre relacionados a poetas e escritores brasileiros como João Cabral de Melo Neto, Carlos Drumond de Andrade, Adélia Prado, Euclides da Cunha e Jorge Amado. Em todos, a sua utilização da fotografia não é meramente ilustrativa. O livro a ser comentado aqui parte de fragmentos de textos do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Procurando representações de espaços díspares, o sertão oferece um apropriado contraste para a cidade de New York de Sophie Calle. Além disso, a obra de Guimarães Rosa é especialmente sugestiva para o nosso tema, pois ela desenvolve uma exploração espacial do território em uma busca interiorizada, o que pareceria, pelo menos em princípio, uma tarefa incompatível com a fotografia. Por fim, tendo em mãos duas edições da obra de Bisilliat , optei pela edição alemã da mesma por ser visualmente mais sintética e ter diagramação que parece mais condizente com o projeto – tratando-se de linguagem visual, este é um aspecto também relevante.

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O tema do sertão é caro à cultura brasileira e isso transparece não apenas na literatura ou no cinema nacionais, mas no fato de outros fotógrafos também terem dedicado livros ao assunto, como Evandro Teixeira e Thiago Santana , aliando o olhar fotográfico à obra de um escritor – Euclides da Cunha e Graciliano Ramos, respectivamente. O sertão sintetizou para a cultura nacional o espaço avesso à modernidade, ao mesmo tempo reduto da miséria e território fértil para se compreender os contrastes que avassalam o país. De Canudos, nos sertões euclideanos, a Vidas Secas, de Graciliano Ramos, passando por Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha e ainda tantos outros filmes mais recentes, a natureza árida aprisiona os personagens bloqueados social e existencialmente em armadilha da qual nem todos escapam. O sertão de Guimarães Rosa, no entanto, é também local de explosão de sentidos a começar pela criação linguística, mas também pela percepção aprofundada do meio e da perigosa empreitada da descoberta de si realizada por Riobaldo. Para Ronaldes de Melo e Souza, embora a ambivalência enfatizada na interpretação de Antônio Cândido ou a análise sobre os processos estilísticos da obra de Guimarães Rosa realizada por Augusto de Campos tragam elementos válidos para a compreensão da obra, a chave estaria não nesses aspectos explicativos e parciais, e sim em uma abordagem interpretativa capaz de “desvelar o mundo que apresenta e se representa a si próprio” (Melo e Souza, 1978, p.11). A análise de Melo e Souza aproxima-se daquela palavra-narrativa mencionada por Todorov como elemento caracterizador da narrativa, pois para ele o processo de narrar nessa obra abrange a invenção, a descoberta e o desvelamento do ser do narrador que se transforma no caminho que viaja. A partir dessa chave, vários elementos da obra são decifrados: o suposto pacto com o diabo seria sinal da heteromorfose humana, a liberdade de transcender a clausura dos papéis assumidos; o reverberante “nonada” de Guimarães Rosa nasce da negação do ser passado, “é a cifra da conversão de um personagem cujo ser real vem surgindo no espelho da linguagem” (idem, p. 113). O poder encantatório da palavra-narrativa mencionada por Todorov emerge no apelo de Riobaldo para que o leitor fique “calado alto”, “imaginalmente perceba, mire e veja, em profundo estado de suspensão meditativa, o sentido da existência que se desvela em travessia e epifania” (idem, p. 64). A citação é sugestiva para começarmos a analisar as fotos, pois ela pode ser visualizada em algumas imagens.

Maureen Bisilliat foi convidada por Guimarães Rosa a visitar ela mesma o sertão onde, segundo o autor, encontraria o eco de paisagens irlandesas. Ela aceitou, mas nunca procurou interpretações literais da obra: “Quando li Grande Sertão: Veredas, entrei nele como um peixe n´água. A questão de compreender envolve outros raciocínios, que não somente os lingüísticos. Depois de ler, me perguntei ”o quanto era realidade e o quanto era invenção, e como se uniram. Não se pode esperar da adaptação fotográfica da obra literária o mesmo tipo de narrativa peculiar ao romance ou ao cinema, guardadas as devidas especificidades. O livro de Bisilliat não procura cobrir toda a obra original, sequer o seu enredo. O que está em questão são “outros raciocínios” e eles podem emergir em fragmentos do texto combinados às imagens. Dessa forma, as duas páginas iniciais mostram, de um lado, detalhe das pernas de um homem sentado à entrada da casa com citação de Riobaldo sobre a dificuldade da busca da pauta que cada um tem na vida, e o caminho escolhido por ele, que seria “retornar para estes gerais de Minas Gerais”. Na página ao lado, um sujeito parecendo um jagunço está do lado de fora de uma casa; um poste sugere, embora não seja, uma cruz; a luz é sombria e o fragmento fala do sertão que ninguém conhece. Está assim dado o roteiro do livro: alguém que estava sentado levantou-se, começará a busca de algo ainda a ser descoberto pelo sertão (misterioso) adentro.

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Na página seguinte, vemos o rosto de alguém que parece ser o mesmo homem em silhueta da página anterior. O texto diz apenas: “Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares.” (Bisilliat, p. 9). Na edição brasileira , embaixo da foto, além da citação acima, vem o nome “Manuelzão J. Ruiz” – a foto é do vaqueiro Manuel que inspirou Guimarães Rosa e virou personagem da obra Manuelzão e Miguilim . A legenda com o nome desaparece de uma edição para outra, mas podemos indagar se era mesmo necessária. A fotografia e o texto funcionam nessa obra com recíproca e desigual função: as imagens trazem o testemunho de que a realidade fictícia do livro realmente existe; o texto traz conotação extra ao mero realismo das fotografias. Manuelzão não precisava de nome próprio para provar sua existência ao mesmo tempo real e fictícia.

Três planos estão superpostos no livro Grande Sertão: Veredas, segundo M. Cavalcanti Proença: o individual onde se realiza o embate da alma humana; o coletivo presente na obra conectada com a linguagem popular ou presente em Riobaldo associado ao herói medievo e, por fim, o plano mítico onde os elementos naturais tornam-se personagens vivos e atuantes. Essa divisão também pode encontrar equivalente na obra de Bisilliat. O plano individual verifica-se nos retratos acompanhados por trechos já anunciados na primeira página onde percebe-se que se trata de um narração em primeira pessoa. Diversos enquadramentos que centralizam pessoas geralmente vistas à meia-luz remetem à interiorização de personagens. O plano coletivo verifica-se no diálogo com o gênero da fotografia documental, embora aqui se busque também, coerentemente com a obra original, transgredir o gênero documental evitando descrições exaustivas do assunto ou uma sequência lógica das páginas guiadas por coerência mais previsível. Também a escolha do sertão, que tem equivalência em outros livros de Bisilliat que imergem no interior do Brasil, remete ao diálogo com um espaço físico culturalmente criado e recriado. Por fim, o plano mítico que perfonifica seres inanimados pode ser verificado nas fotos de rios, objetos, paredes tornados vivos tanto pelo enquadramento e pela luz expressiva quanto pela ajuda do texto que os acompanha. Há, por exemplo, a foto de singela cruz de pau sobre chão batido e silhueta de pequena placa pendurada com legenda embaixo da foto: “Chapadão. Morreu o mar, que foi”. Chapadão, mar e cruz tornam-se, então, pela combinação de fotografia e fragmento de texto, personagens da mesma intriga.

Nessa intriga, os elementos e pessoas fotografados parecem habitados ora por um manto letárgico ora por momentânea revolução ecoando tanto o “profundo estado de suspensão meditativa” quanto a “travessia e epifania” mencionados por Ronaldes de Melo e Souza na sua interpretação da obra de G. Rosa. Se há prostração nesses corpos em sua encantada apatia flagrada sempre na penumbra, há também súbito dinamismo nas fotos das correrias dos cavalos ou dos bois, ou ainda no rebanho que atravessa o rio com o boiadeiro que passa. A edição prepara para essa ambivalência com dois momentos inesperados ao folhearmos o livro – o paralelismo de se estar dentro e fora, um mundo observado e internalizado, foi também anunciado nas fotos das primeiras páginas, como visto antes.

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Em um determinado momento do livro (BISILLIAT, p. 33), vemos um retrato de uma moça flutuando na página em branco, com seu olhar sério e frontal à meia-luz, como os personagens de outros retratos do mesmo livro. Viramos a página e a mesma personagem foi fotografada em enquadramento mais próximo que deixa de fora os seus olhos e mostra apenas seu queixo, boca e braço atravessado sobre o próprio corpo. O texto abaixo diz: “Senti meu cavalo como meu corpo. E os cavalos, vagarosos; viajavam como dentro dum mar” (BISILLIAT, 34). Na página ao lado, dois homens estão sobre cavalos que correm e a legenda continua: “A liberdade é assim, movimentação”. As duas fotos vizinhas seriam totalmente díspares se não fosse pelo fato de o retrato da moça ter sido colocado na horizontal para que seus cabelos dessem prosseguimento ao movimento das crinas dos cavalos na página ao lado. Por essa inversão proposital da moça que sabemos que estava em pé na foto da página anterior mas aqui aparece deitada, fica evidente a manipulação para que corpo e cavalo possam adquirir visualmente um mesmo movimento sugerido pelo texto. Dessa forma, a suspensão da moça estática vira travessia na página seguinte e, por sua vez, a correria dos cavalos fica suspensa do seu sentido literal, vira travessia que vaza para os cabelos da página ao lado, ou, nas palavras de Guimarães Rosa, vemos assim “os cavalos ventando”.

Em outro momento de utilização singular da fotografia, vemos uma paisagem em foto de terreno esfumaçado na horizontal, com breve texto que fala de terra queimada, chão que dá som e “mundo esquisito!” (Bisilliat, 60-61). Viramos a página e na foto seguinte que ocupa página dupla sem palavras há apenas uma gradação do preto ao cinza claro em imagem abstrata. Na dupla de páginas seguintes há duas fotos:  um menino de braços abertos e  uma menina prostrada no canto de uma cama sem colchão. O texto comenta: “O barulho de coisas rompendo e caindo, e estralando surdo, desamparadas, lá dentro. Sertão!” A descrição sonora de uma queimada vem se preparando na sequência da foto da paisagem de poucas páginas atrás, no posterior vácuo da imagem abstrata onde há apenas gradação de preto e cinza, para culminar nesses dois personagens ora em êxtase ora em prostração. Essa mini-narrativa dentro de uma narrativa traduz um raciocínio que não é linguístico, como disse Maureen Bisilliat. Imagens e palavras se unem para falar de um som-revelação onde o desalento da queimada parece impregnar a menina prostrada e onde se dá uma descoberta, não sem enlevo, como sugerem os braços abertos do menino ou como as palavras assim traduzem: “Sertão!” As imagens foram utilizadas para engajar também o leitor em uma descoberta do seu sentido tal qual a imagem-narrativa de Todorov que envolve a arte do discurso e o prazer entre dois comunicantes. Ou ainda, nas palavras do fotógrafo Thiago Santana ao comentar suas fotos sobre a obra de Graciliano Ramos: “(...) Na verdade, a literatura reforçou esse caminho, que já vinha perseguindo, de uma fotografia que não diz tudo, que deixa espaço para que você complete a história, que deixa espaço para quem quiser interpretá-la. Afinal, quando lemos algo, o que fazemos? Imaginamos” (Correia Filho, 2009. p. 26).

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O espaço imaginado e fotografado, não é o espaço físico, mas sim o espaço vivido. Espaço não da descrição mas da vida interior que povoa as narrativas pós-modernas comentadas por Pellegrini; ou ainda espaço brasileiro que, na visão de Sérgio Buarque de Holanda, não foi uma natureza dada, mas produto de um modelo de colonização. O sertão de Guimarães Rosa parece ecoar as palavras do autor de Raízes do Brasil, para quem a busca por riqueza pelo português dava-se mais a custa de ousadia do que a custa de trabalho, ao contrário de outros modelos de colonização, como o holandês, mais preocupado em assentar-se e fundar coletividades. Para o historiador, o espírito de aventura e a busca pelo lucro fácil fez com que não se implantasse no Brasil uma civilização tipicamente agrícola, apesar da lavoura açucareira. Seriam ecos disso a vida nômade dos vaqueiros retratados ou dos jagunços que Riobaldo acompanhava? De fato, esse mundo rural não é o da lenta espera pelo despertar das plantações e sim o da instabilidade dos rebanhos a procura de melhores pastagens nas fotografias, ou da instabilidade dos jagunços errantes sertão adentro no livro de Guimarães Rosa. O código de lealdade a um grupo existe, mas é um grupo igualmente nômade e não o espaço coletivo urbano cuja organização envolve maior estabilidade e complexidade de interações. Enquanto os portugueses tendiam a se acomodar a uma situação encontrada, os espanhóis, diz o historiador, tiveram uma atitude mais deliberada de ocupação de espaço para fazer do país ocupado não um pólo de exploração comercial, e sim um prolongamento do seu país. Enquanto o sertão se faz da adaptação ao meio em embate entre pessoas e principalmente entre os humanos e a natureza – por isso a importância do vento, do rio, das árvores no universo de G. Rosa -  a cidade é o produto de uma deliberada determinação de construir coletivamente. Se os portugueses procuravam tirar proveito fácil do projeto colonialista, recomendações orientavam sobre a construção das cidades nas colônias espanholas. Quando a acumulação de riqueza e a conjuntura geral permitiram, as cidades terminaram por ser construídas também no Brasil e o país organizou-se a ponto de ocorrer rápido esvaziamento do meio rural em prol dos centros urbanos. Certamente nem tão rápido, como comprovam as reverberações que o tema do sertão ainda encontra na nossa cultura.

A cidade contemporânea, porém, não é mais o resultado otimista da saudável deliberação humana de intervir no espaço. Findas as ilusões modernistas, outra narrativa que une fotografia e texto oferece testemunho singular sobre a derrocada do projeto de ordenar e disciplinar o espaço urbano. A cidade em questão aqui é New York, fotografada e descrita por Sophie Calle, fotógrafa e escritora francesa. O livro Gotham City - New York, mode d’emploi foi assinado por ela e pelo escritor Paul Auster. Ele tinha usado Sophie Calle como inspiração inicial para uma personagem do seu livro Leviatã. Vindo de um currículo de obras que misturam real e ficção, ela pediu a ele que criasse um personagem que ela representaria na realidade. Ele respondeu com um breve manual de instruções de como embelezar a vida em NY, sugerindo que ela cumprimentasse as pessoas com um sorriso, contasse os sorrisos, conversasse sobre o tempo, distribuisse sanduíche para os sem-teto e também carteiras de cigarros, que embora façam mal à saúde trariam conforto para os que não aceitam ideias feitas. Auster diz ainda para ela adotar um lugar na cidade, fazer com esse local como se fosse a sua casa.

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O livro é o relato da experiência de Sophie Calle ao seguir essas instruções durante uma semana em que ela passa os dias entabulando conversas efêmeras, contabilizando ao final de cada dia quantos sorrisos deu, quantos recebeu, quantos minutos de diálogo conseguiu, quantos sanduíches foram entregues, quantos foram recusados e quantas carteiras de cigarro foram aceitas. O lugar escolhido foi uma cabine de telefone público, que ela enfeita com tinta verde, flores, cartões postais, água ou refrigerante, alimentos como frutas ou biscoitos e duas cadeiras dobráveis. O texto do livro consiste do relato diário dessa interação com a cidade, com eventuais diálogos realizados ou parcialmente ouvidos na cabine telefônica. As imagens do livro vão de reproduções de mensagens escritas à mão deixadas na cabine em que as pessoas opinavam sobre a intervenção, a fotografias do movimento em volta da cabine e dos sanduíches entregues. O registro tende a ser neutro tanto na objetividade do relato entremeado por alguns momentos de ironia quanto na maneira de fotografar ora sistematicamente enquadrando os sanduíches no prato vistos sempre de cima, ora fotografando as pessoas em volta da cabine passando, olhando para a cabine ou usando o telefone visto de um mesmo ponto de vista.

As instruções fornecidas por Paul Auster estão em sintonia com os comentários sobre o espaço urbano do sociólogo e historiador Richard Sennett em The Uses of Disorder: personal identity and city life.  Sennett defende que as cidades foram planejadas para proteger o cidadão do contato com os outros. Ele faz um paralelo entre o comportamento do adolescente, fechado em si, e das cidades, defendendo uma superação desse modelo, uma entrada na idade adulta, com um modelo urbano onde o contato entre pessoas diferentes seria estimulado e os conflitos gerenciados pelos próprios cidadãos. A cidade planejada condena os cidadãos à escravidão de uma rotina e à indiferença em relação aos outros. A sua cidade ideal seria um palco de encontros múltiplos e de afirmação de si necessários para interagir e reconhecer a saudável estranheza do outro. Esse espaço urbano seria baseado em certa desordem que substituiria as segregações sociais desse espaço por múltiplos contatos e enriquecedores conflitos. O livro de Paul Auster e Sophie Calle parece ser uma experiência real dessa proposição teórica.

Sennett afirma que no desenvolvimento psicológico, a adolescência é um momento de transição para se assumir precocemente papéis em geral limitadores da liberdade humana. A força com que cada um se apega a esses papéis transparece também em religiões, no racismo ou em radicais convicções políticas em que são criados também mecanismos para cada um se proteger do outro. O ritual proposto por Paul Auster partiu de uma compreensão dos mecanismos da obra de Sophie Calle , que propõe para si um ritual a ser rigidamente seguido em meio a situações de algum risco como seguir sorrateiramente desconhecidos na rua a ponto de ir de Paris até Veneza perseguindo um homem (Suite Vénitienne, 1980), investigar a personalidade do dono de uma agenda perdida entrevistando os nomes contidos nela (Le carnet d’addresse, 1983) e publicando aos poucos o perfil do dono no jornal Libération, ou ainda esse projeto de uma auto-exposição guiada ao acaso dos encontros urbanos. O belo gesto de oferecer um sorriso nem sempre tem final feliz, pois há também hostilidade. Quanto à cabine decorada, muitos apreciam, outros pensam que é um cemitério, outros dizem que é obra de um desocupado, senhoras reclamam que Sophie Calle não tem autorização para isso e por fim empregados da companhia telefônicajogam quase tudo fora pondo fim à experiência. Ou, como diz Richard Sennett, ao invés dos mecanismos de purificacão com os quais cada pessoa preserva-se da intromissão do outro, “o que deveria emergir na vida da cidade é a ocorrência de relações sociais, e especialmente as que envolvem conflito social por meio de encontros frente-a-frente ”.

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Além do jogo entre ritual controlado e acaso, o livro traz outros temas caros à obra de Sophie Calle como a subjetividade e o voyeurismo. Trata-se de um relato sem a exposicão da subjetividade presente em outras obras, como os objetos pessoais colocados no consultório de Freud (Appointment with Sigmund Freud, 1998), o vídeo sobre o fim de uma relação amorosa (No sex last night, 1992), a exposição dos presentes de aniversário recebidos (Le Rituel d’anniversaire. 1980-1990), para citar apenas alguns. Porém, se Sennett analisa o espaço urbano como reflexo de processos psicológicos, a variedade de contatos efêmeros do Gotham Handbook revela também uma subjetividade em busca do conforto de um espelho em meio ao caos urbano. Além de tematizar a própria ideia de falta em algumas obras, Sophie Calle comenta em entrevista o propósito da sua inicial errância por Paris: “Circular, descobrir minha cidade. (...) eu comecei por fotografar as pessoas de costas. Em seguida eu anotei seus percursos. Tudo aconteceu sem que eu realmente percebesse. Havia fotos, textos – controlar, perder o controle, resolver uma falta de emoção ligando-me por uma meia hora que fosse a alguém ”. A fala sintetiza tanto o desejo de contato quanto o voyeurismo presente na perseguição dos desconhecidos que seria desenvolvido em outras obras.

As fotos de Sophie Calle parecem fotos amadoras despretensiosas. Porém, essa aparente neutralidade que também encontra paralelo na arte conceitual com a qual ela dialoga, só pode ser sustentada em uma leitura superficial da fotografia regida pelo preconceito barthesiano de uma lingagem sem código. Afinal, o que está em jogo não é a foto em si, que realmente registra algo à frente da câmera, mas como são feitos os enquadramentos e como aparecem no livro. Dessa forma, os sanduíches fotografados de maneira sistemática combinam com a pretensa objetividade das tantas contabilidades de datas, minutos, quantidades de sorrisos e sanduíches. A fotografia e o enquadramento escolhido comparecem assim como mais uma prova de uma experiência, mas seu uso não se esgota aqui. Ora é a câmera que se movimenta para aproximar-se do seu assunto, ora é a diagramação do livro que atribui movimento às imagens. Assim, a maioria das fotos guarda uma distância igual da cabine decorada, mas, em uma ou outra, é usada a cor em vez do preto e branco e a câmera se aproxima não sem propósito.

As cabines telefônicas são mostradas em diversas fotos em preto e branco tiradas do mesmo ponto de vista distanciado. Nelas vemos pessoas passando, de perfil ou de costas. Quando diagramadas na páginas do livro, essas fotos foram cortadas para serem mais panorâmicas e colocadas lado a lado para que o conjunto dessas tiras urbanas ganhasse dinamismo como o movimento dos passantes. Esse olhar está, portanto, distanciado, mas ele não se restringe a simplesmente registrar um local e sim a torná-lo um evento: o ponto de passagem onde as pessoas anônimas podem parar para uma breve observação da curiosa cabine decorada. A ideia de fluxo e breve pausa fica assim demarcada pela maneira como as fotos foram aproveitadas nas páginas do livro.

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Se as fotos em preto e branco mais distantes permitem claramente a leitura da palavra e dos olhos impressos colocados na margem da cabine telefônica por Sophie Calle, há fotos que se aproximam desses detalhes alterando não apenas o enquadramento mas também mudando para fotos coloridas. Dessa forma, ganham destaque o voyeurismo dos olhos que nos observam da cabine e a palavra “enjoy” tão apreciada pelos novaiorquinos, e cuja conotação sexual é hilariamente descrita por Sophie Calle (Calle e Auster, 1998. p. 20). O voyeurismo não é explicitamente tratado no texto e a sexualidade emerge em algumas das breves conversas. A opção pela cor também reaparece em todas as fotos dos sanduíches, em fotos de dois depósitos de lixo e em detalhes da cabine quando nela podemos ver mais de perto uma flor vermelha e uma banana que Sophie Calle deixou para o usuário do telefone. Em meio a tantas fotos em preto e branco do fluxo da cidade, essas imagens coloridas se destacam por terem em comum um mundo mais orgânico. Para completar, a capa do livro traz um meio-sorriso que generosamente mostra os dentes na contracapa. O destaque para esses lábios rosados da mesma cor de fundo da capa são também contraponto para toda a contabilidade descrita e para a aparente neutralidade dos enquadramentos. O sorriso anônimo restrito aos lábios rosas na capa ganha assim ênfase no livro que poderia ser resumido como uma voyeurística busca por um eco humano em meio à desordem urbana. O sorriso se abre na contra-capa; a busca é bem humorada.

A sutil mudança do preto e branco para fotos coloridas realça sensações físicas em meio à movimentação urbana enfatizada no enquadramento sistemático das pessoas passando e também na diagramação que acentua esse fluxo. Nada ou pouco no texto remete a essa comedida sensualidade – a não ser pelo erotismo efêmero implícito na troca de olhares ou rápidas conversas em alguns dos encontros – mas as fotos vêm acentuar esse aspecto ainda que sob o disfarce de repetidas contabilidades e distanciados registros fotográficos. A visão sistemática dos sanduíches distribuídos é apenas mais uma ironia quando a comparamos às aparições em cor da matéria orgânica seja da flor, da fruta, da palavra “enjoy” ou do sorriso sobre fundo rosa da capa do livro.  A ênfase no enquadramento que se aproxima dos olhos impressos que nos olham confirma o voyeurismo implícito nessa narrativa fotográfica sem que jamais o assunto seja abordado no texto. As imagens sugerem, assim, uma narrativa paralela ao mero registro da experiência encenado na neutralidade da maioria dos enquadramentos.

A experiência de Sophie Calle e Paul Auster constitui uma das atualizações da fotografia em narrativa em sintonia com o que vem ocorrendo também com o cinema documental. Em artigo no New York Times (2010), Manohla Dargis já comentava como documentários mostrados no Festival de Sundance oscilavam entre a realidade e a ficção, ora questionando sobre a ficção implícita em imagens supostamente documentais feitas pelos nazistas nos guetos de Varsóvia (Film Unfinished, de Yael Hersonski), ora em filmes apresentados em formato de documentários sendo mais provavelmente ficções ( ela menciona os filmes Exit through the gift shop, de Bansky  e Catfish, de Henry Joost e Ariel Schulman). O título de artigo é “Truth Lies Somewhere in Between” e a autora conclui que a veracidade duvidosa dos documentários não compromete o seu realismo pois mesmo sendo uma ficção, seria ainda um registro de um momento, de uma época. Tal tendência se acentuou ainda mais nos anos recentes com narrativas biográficas parcialmente reencenadas em documentários, como por exemplo o filme brasileiro Elena (de Petra Costa, 2012).  Não resta dúvida sobre a veracidade da experiência de Sophie Calle pois não está em questão se ela realmente ocorreu ou não. Porém, a fotografia não foi usada simplemente para garantir veracidade, mas também para dar expressão à realidade e sucitar sentidos menos explícitos na narrativa proposta. A fotografia está longe de ilustrar o texto, trata-se de uma narrativa paralela que dialoga com o texto em jogo de recíproca influência.

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A verdade está nesse tênue limite entre a palavra-narrativa mencionada por Todorov e uma imagem-narrativa. A imagem caracteriza-se como narrativa não só por atuar junto com o texto, mas por assumir recursos que vão além do mero registro – utilização da cor, da luz, enquadramentos, diagramação no livro etc. A reverberação dessa narrativa não se restringe a recursos da linguagem visual, mas à correspondência que encontramos entre essas narrativas fotográficas e temas abordados em outros domínios. Prova disso é o fato de que a cidade recriada por Calle e Auster remete também à representação do espaço geográfico visualizado por Milton Santos na sua crítica à globalização (Santos, 2004). Para o geógrafo, a cidade deveria ser uma manifestação não de relações derivadas do dinheiro mas das relações de solidariedade entre as pessoas que compartilham um mesmo espaço físico, social, econômico e cultural. A fotografia contribui, portanto, em uma narrativa que dialoga com ideias e demandas contemporâneas, e não apenas registra um espaço físico e neutro.

As duas narrativas sobre o sertão e sobre a cidade de Nova Iorque são, portanto, manifestações de inserção da fotografia como rico recurso de linguagem capaz de elaborar nuances de sentidos e também de dar reverberação a temas que dizem respeito à vida cotidiana, ao espaço e à cultura compartilhada. O sertão de Maureen Bisilliat dialoga com muitos outros sertões vividos culturalmente e também com longa tradição visual que nos ensinou a olhar a imagem fotográfica de maneira menos casual; a New York de Calle e Auster dialoga com autores que pensam o espaço urbano como Sennet e Santos, e também com nossa experiência urbana cotidiana em outras cidades. Ao recorrerem a um uso documental da fotografia, essas obras utilizam diversos recursos geralmente associados a obras de ficção onde a manipulação é mais aceitável. Os dois livros materializam, então, por meio de imagens e textos, um mesmo projeto de fazer da palavra algo mais próximo da experiência vivida e fazer da imagem algo menos banal do que a experiência descartável.

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Referencias bibliográficas

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