Moda, estética popular e preconceitos

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Moda, estética popular e preconceitos

Ms. Janaína Vieira de Paula Jordão

Dra. Maria Luiza Martins de Mendonça

Universidade Federal de Goiás, Brasil

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Resumo: Pretende-se, neste trabalho, discutir a relação entre a moda feminina brasileira contemporânea e a crescente visibilidade que hábitos, comportamentos e maneiras de vestir de uma classe que experimenta nos últimos anos uma ascensão econômica e que a mídia costuma chamar de “nova classe C” e que chamaremos de “nova classe trabalhadora”. Essa estética tem se tornado bastante visível nos media e muitas vezes vem acompanhada do adjetivo "periguete" (que no Brasil designa mulher perigosa em sentido sexual ou afetivo). A nossa hipótese é que esse termo, considerado pejorativo, revela um certo preconceito de classe. Por meio de uma pesquisa exploratória nos em sítios de moda e em revistas dirigidas ao público feminino, pretendemos demonstrar a partir das imagens mostradas nas reportagens ou comentários publicados, que esse estilo não se restringe à classe trabalhadora, mas é comum em outras camadas sociais mais elevadas. Entretanto, às mulheres das camadas superiores não se aplica o termo "periguete", mas adjetivos com sentido positivo.

Palavras-chave: moda, classe social, distinção, corpo.

Os sentidos da moda.

Quando falamos em moda, tendemos a pensar inicialmente que é uma questão atravessada pelos aspectos ligados ao gênero, especialmente, o feminino. Afinal, a gentileza que as pessoas costumam dispensar aos corpos masculinos não se aplica aos femininos. As mulheres têm pouca privacidade física. Cada mudança ou flutuação no peso é publicamente observada, julgada e debatida. (WOLF, 1992, p. 167). Além disso, basta uma superficial observação às publicações midiáticas voltadas para o tema, que se vai notar uma quantidade imensamente assimétrica entre o que se veicula para mulheres e o que se veicula para homens (pelo menos por enquanto).

A moda, portanto, pode ser considerada como um desses signos que “podem construir e comunicar um status de gênero para si próprios e para os outros” (BARNARD, 2003, p. 175), especialmente quando se observa que com a moda houve uma diversificação da aparência feminina, com os vários tipos de looks, como o do dia-a-dia, o da mulher profissional, da mulher sexy, situação que certamente trouxe mais signos para a definição de estilos. Além disso, a Alta Costura "psicologizou" a moda, criando modelos que dizem se a mulher está melancólica, sofisticada, severa, ingênua, romântica, alegre, jovem e essas essências psicológicas são trabalhadas pelas revistas de moda. Ou seja, a partir da moda, a mulher pode expressar sua personalidade, sua alma (LIPOVETSKY, 1989).

Segundo Lipovetsky (1989), o sistema da moda mudou mais radicalmente com a chegada do prêt-à-porterque, a partir dos anos 60, cria sua própria personalidade, mais ligada à novidade, à juventude, à ousadia. A sua raiz encontra-se na democratização do gosto pela moda trazida pelos ideais individualistas pós-guerra, pelo cinema, pela multiplicação das revistas femininas e pela vontade de viver no “presente” estimulada pela cultura de massa. O desejo e o direito à moda deixaram de ser uma característica das classes privilegiadas e passaram a pertencer a todos. Neste contexto, os criadores do prêt-à-porter se impuseram frente à Alta Costura, que, em vez de ditar a moda, passa a consagrar o que já está legitimado nas ruas e produzir as suas próprias coleções prêt-à-porter. É o fim do pólo sob medida (LIPOVETSKY, 1989).

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Como se pode notar, a própria história da moda reflete um outro viés que a atravessa, além do de gênero: que é o da classe social. Se a mesma moda da alta costura, para poucos, se multiplica nas lojas de departamentos, para muitos, isso sinaliza que o modo de consumir vai demonstrar um estilo de vida – seja de distinção ou de pertencimento -, que é em alguma medida estruturado pela situação de classe dos atores. Afinal, quando se fala de moda, não se fala somente de saias, blusas, bolsas, vestidos e sapatos. Se fala de Versace, Burberry, C&A, H&M e feiras de rua. Ou seja, há hierarquias e diferenças simbólicas entre as marcas ou as “procedências” dos produtos, que vão sinalizar posições de classe.

Assim, nas relações sociais também se delineia um corpo de classe, que tende a reproduzir a estrutura do espaço social, funcionando o vestuário também como uma marca social que recebe o valor da posição social do seu portador, no sistema de sinais distintivos, que é homólogo ao das posições sociais (BOURDIEU, 2007).

A moda feminina, no Brasil, desde muito tem sido vista por olhos estrangeiros (e também locais, algumas vezes) como algo peculiar. A rigor, não seria correto falar em moda brasileira, mas em modas, em maneiras de se vestir que são diferentes conforme as regiões, o clima e, sobretudo, em classes sociais. Assim, mesmo considerando mais adequado o termo modas brasileiras,para este fim adotaremos o termo moda brasileira em referência às tendências consideradas hegemônicas e que estão presentes nas revistas, jornais e especialmente nas telenovelas, que podem ser consideradas um caminho seguro para consolidar tendências, mais especificamente o visual "periguete.As maneiras como as mulheres brasileiras (des)cobrem seus corpos são percebidas como sensuais, sedutoras, exageradas. Distantes, portanto, da elegância legitimada característica das modas européias com origens mais elitistas (afinal, França e Itália são considerados países que ditam as modas) e culturalmente distintos. Há, para isso, algumas justificativas, como o clima tropical, os mais e oito mil quilômetros de praias, a informalidade típica do brasileiro. Podem ser explicações plausíveis, mas nosso foco aqui recai sobre outras possibilidades de compreensão da moda feminina brasileira.

Corpo, classe e imaginário.

Ainda persiste, no imaginário brasileiro, construído tanto pelas explicações sociológicas e antropológicas, o mito da democracia racial, da "mulata sensual" e da corporeidade como o capital das classes despossuídas. No que diz respeito à participação dos media nessa construção, temos uma vastíssima opção de programas televisivos, especialmente as telenovelas, que reforçam a premiação pelo "bom uso" de um belo corpo: desde a babá que se casa com o patrão, à prostituta redimida pelo amor do grande empresário, passando pela  secretária que chega a posições importantes na empresa conquistando o rico patrão. Do ponto de vista da antropóloga e pesquisadora do universo feminino, Mirian Goldenberg,

O corpo, no Brasil contemporâneo, é um capital, uma riqueza, talvez a mais desejada pelos indivíduos das camadas medias urbanas e também das camadas mais pobres, que percebem seu corpo como um importante veículo de ascensão social. É fácil perceber que a associação 'corpo e prestígio' se tornou um elemento fundamental na cultura brasileira….o corpo, no Brasil, é um verdadeiro capital físico, simbólico, econômico e social (Goldenberg, 2007, p.13).

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Outra fonte que alimenta essa maneira de pensar o corpo da mulher brasileira como forma de participação mais igualitária na sociedade vem das atrizes, modelos e manequins profissionais. Muitos concursos nacionais proporcionam a belas garotas a possibilidade de tornarem-se "celebridades". Tanto em um caso como em outro, o uso do (belo) corpo está presente. A clivagem entre um grupo e outro ocorre no momento em que essa inserção na hierarquia superior da sociedade acontece.

Enquanto permanecem como membros da “classe C”, freqüentando bailes funk, por exemplo, são chamadas de "periguetes". À medida que se tornam celebridades, o adjetivo é deixado para trás, mas não a maneira de se mostrar o corpo.

De acordo com a visão de Beth Salles, consultora de moda e proprietária de uma loja de roupas destinadas ao público classe A no shopping Iguatemi, um dos mais sofisticados de São Paulo, a mulher pertencente à classe C é uma grande consumidora e possui um grande poder de compra e para esse segmento passou a ser lançada uma ampla oferta de produtos, vestimentas e acessórios frequentemente renováveis, a chamada "fast fashion". Diferentemente das consumidoras das classes mais abastadas, a prioridade recai sobre a quantidade ao invés da qualidade. E o estilo segue, com alguma extravagância e adaptação própria, os lançamentos do "mundo fashion". A mesma consultora afirma: “eu definiria essa pegada no momento com uma palavra: arrasa. É isso o que a mulher quer, um visual de arrasar, discrição jamais. É a calça colante, corpo à mostra. A mulher está confiante para  usar uma linguagem ousada sem medo de errar”.

Sim, faz sentido a afirmação da consultora de moda. Mesmo se a consumidora da nova classe C tem poder de compra, não se pode compará-lo às condições econômicas das celebridades ou das mulheres pertencentes à  classe A. O que diferencia então? Uma avaliação das revistas de moda ou mesmo das famosas revistas de celebridades nos indica que mostrar o corpo não é exclusividade das "periguetes". Decotes e fendas são democraticamente distribuídos em amplos segmentos da população feminina em busca da sedução e da aprovação de um estilo de vestir e comportar condizente com a mulher autônoma e senhora de suas escolhas. Um jornal local (Goiânia, Goiás, Brasil) trouxe uma matéria de página inteira em que explica aos leitores os sucessos da "periguetes", inspirada por uma  personagem da novela àquela época em exibição pela Rede Globo, a maior emissora do País.  Entre as "lições"  ministradas pelo jornal está a diferença entre se vestir como uma "periguete" e ser uma delas. Vestir-se com "pouco pano" é permitido e incentivado, mas atuar como os homens que saem à caça de presas fáceis não, não é recomendado.

O que é pouco visível a uma primeira mirada é a distinção com base nas classes sociais, uma vez que o surgimento de uma “nova classe”, com um padrão de consumo um pouco mais elevado é um fenômeno recente na sociedade brasileira. Entretanto o critério puramente econômico, baseado apenas na renda é altamente questionável.Segundo Souza (2012), o termo mais apropriado para essa “nova classe C”seria a nova classe trabalhadora brasileira, que se situa entre os excluídos, que seriam a ralé, e as classes média e alta, e que destas últimas se diferencia por não ser detentora dos principais tipos de capitais, que asseguram o acesso privilegiado aos bens materiais e culturais. A nova classe trabalhadora é uma classe social moderna, produto das transformações recentes do capitalismo mundial e brasileiro. A ascensão destas pessoas se deu à custa de muito esforço e dos valores familiares, fundados no trabalho duro e continuado mesmo em condições sociais difíceis, a ponto de perderem o direito, desde bem novas, ao tempo de planejamento de vida, em decorrência necessidade do trabalho para a sobrevivência, diferentemente das pessoas das classes média e alta.

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Há, segundo Bourdieu (2007), que se levar em conta o capital econômico e o capital cultural das pessoas que em alguma medida vão desenhar as suas disposições às práticas. Assim,

podemos recortar classes no sentido lógico do termo, quer dizer, conjuntos de agentes que ocupam posições semelhantes e que, colocados em condições semelhantes e sujeitos a condicionamentos semelhantes, têm, como toda a probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posição semelhantes (Bourdieu, 2012, p.136) [grifo do autor].

Essas semelhanças vão constituir as identidades de classe, que a própria existência pressupõe uma diferenciação em relação a outras classes, que os agentes podem intensificar por meio do estilo de vida. É a formação do habitus de classe, um princípio unificador, gerador de práticas e simultaneamente classificador.

Moda, corpos e preconceitos.

Falar em periguetes pode parecer que estejamos nos referindo amulheres de determinado comportamento social ou sexual, que têm como emblema o uso de roupas mais extravagantes, ou que deixam o corpo à mostra. Mas, numa perspectiva mais atenta, levando em conta o conteúdo de algumas publicações recentes, isso não se refere a mulheres, masa pessoas das camadas populares. Ou seja, alinhava-se o conceito de periguete – uma mulher namoradeira – a um contexto de toda uma classe econômica.

É também o que parece ocorrer em matéria do sítio da revista  Veja, uma das mais vendidas no Brasil,  a respeito da “Classe C no horário nobre”. Segundo a matéria, usualmente, grupos populares faziam parte de núcleos, em torno da trama principal.Recentemente, duas novelas na Rede Globo tiveram a trama ambientada no cotidiano da nova classe trabalhadora: Cheias de Charme (19h) e Avenida Brasil (21h), esta última com 79% de seus personagens dentro deste perfil.

Segundo análise feita pelo site de Veja,

As casas de personagens centrais como Carminha (Adriana Esteves), em Avenida Brasil, primam por uma ostentação exagerada não necessariamente alinhada com o bom gosto clássico. No horário nobre atual, também reina o combo jeans justo, blusa curta e acessórios coloridos. A empregada doméstica Penha (Taís Araújo), de Cheias de Charme, é a maior representante desse estereótipo da moda na periferia.

A moda e o gosto “duvidoso” aparecem na análise da revista de forma constante, como se pode observar na Figura 1 (nos Anexos).

Roupas justas e decotes generosos, segundo a publicação, reproduzem o estilo de parte de mulheres da classe trabalhadora. Ora, não reproduzem o estilo de parte de mulheres, independentemente de classe social?

Por outro lado, quando se observam fotos que se referem à moda de luxo, a postura da mulher é outra. Pode-se notar que a mulher “rica” tem atitude, parece ter mais poder de agência em relação ao mundo e em relação ao homem, como se pode notar nas Figuras 2, 3, 4 e 5. Mas o que chama a atenção é que a mulher do corpo “rico” também usa roupas justas e decotes generosos. Na Figura 8, pode-se observar três celebridades mundiais posando no Met Gala 2013: Gisele Bündchen, Kirsten Dunst e Emma Watson – as três utilizando decotes generosos. Segundo a matéria que traz a foto das celebridades, a modelo brasileira “31-year-old stunner and mother of two” veste “a slinky Anthony Vacarello mini -- and no underwear!”.Nada pejorativo nisso. Nem tampouco a respeito a exposição dos seios e de várias partes do corpo das outras duas celebridades.

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Um outro ponto a se ressaltar a respeito da diferença dos corpos da moda de luxo e da moda popular são as formas.As modelos da moda de luxo têm o corpo extremamente magro e alto. Já as modelos da moda popular têm mais curvas e passam um outro padrão de estética corporal: a do volume. Tanto, que na marca Dardak, a coleção se chama Butt on top.

Além disso, em ambas as marcas de moda popular pesquisadas, Dardak e V.O. Jeans, há a existência de uma linha voltada para medidas maiores, as “plus size”. Isso parece indicar que a moda popular é mais inclusiva, se lembrarmos das recentes declarações polêmicas do dono da marca americana Abercrombie & Fitch, afirmando que não mais produzirá modelos G eGG,porque, segundo ele, pessoas gordas não representam sua marca (apesar de estarsediado no segundo país mais gordo do mundo). Ou seja, não basta ser absatado, tem de ser magro.

Pensar a moda no corpo.

Segundo Souza (2006), o nascimento do Ocidente teve uma especificidade que foi a produção de uma ética do trabalho baseada na oposição alma x corpo, sendo a alma (a mente, o espírito) a virtude, e sendo o corpo o mal e o pecado, com os seus “desejos insaciáveis”. A alma deveria controlar o corpo como pressuposto de um trabalho produtivo e sagrado, especialmente no que tange à ética protestante. Ainda segundo Souza (2006), com o desenvolvimento do capitalismo, separam-se os indivíduos com conhecimento incorporado, ou seja, com corpo e alma trespassados, dos que dispõem apenas do próprio corpo como instrumento de trabalho. Legitima-se a separação entre classes com capital cultural (dominantes) e classes que possuem somente o próprio corpo (dominadas).

Nesta perspectiva, podemos pensar que os mais pobres, cujo capital maior é opróprio corpo, como seres depreciados, vistos somente a partir de sua corporeidade. O corpo que é pecador, que tem desejos, e que deve ser contido pela alma, pela mente. Na lógica da legitimação da desigualdade, isso faria sentido: sem a inteligência, ou capital cultural, sobra o corpo, que, além de servir para o desenvolvimento dos trabalhos braçais menos valorizados na sociedade, indomado, serve aos desejos. Assim, a mulher da classe trabalhadora é avaliada segundo uma conexão dupla de conceitos depreciativos: como corpo, por ser mulher (e isso independentemente de classe social); e disponível, por ser corpo da classe trabalhadora sem o controle sublime da alma. Ou seja, periguete. A quem os media ensinam as formas de "gerir"/administrar o próprio corpo para que ele esteja sempre pronto para acompanhar – sem causar estranhamento ou inadequação – as modas em que a exposição de corpos "perfeitos" ganham destaque no Brasil contemporâneo.

Além das propagandas, revistas, jornais, telenovelas, programas televisivos mostram "especialistas" que, com a voz da autoridade auxiliam na educação dos corpos porque ao tornar-se realmente um verdadeiro "capital" deve ser bem controlado para que se mantenha em forma. Nesse caso, não se trata apenas da publicidade de produtos de beleza ou vestimentas, mas de todo um conjunto de "ensinamentos" para que se mantenha o corpo que a moda pede.

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Referências Bibliográficas

BARNARD, Malcolm (2003). Moda e comunicação. Rio de Janeiro: Rocco.

BOURDIEU, Pierre (2007). A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk.

BOURDIEU, Pierre (2012). O espaço social e a gênese das “classes”. In O poder simbólico.  Rio de Janeiro, Bertrand Brasil.

CHARTIER, Roger (1995). “Cultura popular”:revisitando um conceito historiográfico. Estudos Históricos, vol. 8, n. 16, p. 179-192. Rio de Janeiro.

GOLDENBERG, Mirian (org.) (2007). 'O corpo como capital: estudos sobre gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira'.Barueri, S. Paulo: Estação das Letras e Cores, 2007.

LIPOVETSKY, Gilles (1989). O Império do Efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas.Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras.

SOUZA, Jessé (2006). A invisibilidade da desigualdade brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

SOUZA, Jessé (2012). Os Batalhadores Brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora? Belo Horizonte: Editora UFMG.

WOLF, Naomi (1992). O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco.