Aquenda! Transgressão da identidade em paris in burning

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Aquenda! Transgressão da identidade em paris in burning

Paulo Petronilio Correia

Universidade de Brasília

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Quando a possibilidade da transgressão vem a faltar, ela abre a da profanação.
Georges Bataille.

Em Grande sertão: veredas, literatura de 1956, de Guimarães Rosa,tem um momento em que o narrador Riobaldo, em sua saga nos diz: “O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam e desafinam.  Verdade maior. É  o que avida me ensinou. Isso que me alegra, montão” ( ROSA, 2006, p.19). Essa marca do devirme fez debruçar em torno das noções roseanas como terceira margem, travessia, avessos, perigos e vertentes do viver. Logo, a identidade que se constrói no sertão é sempre inacabada, em processo, em devir, em trânsito. No entanto, Riobaldo não tem clareza de suas travessias e possíveis mudanças e se metamorfoseia ao longo de toda sua travessia. Contudo, ele está semprecaindo em outras bandas. Pego essa metáfora da mudança e da travessia do “sertão” para lançar um desafio em torno da problemática da identidade que, curiosamente, o escritor mineiro problematiza uma relação conturbada que beira a margem da homossexualidade ao aproximar o jagunço Riobaldo de Diadorim. Como o sertão, a identidade não é clara, é confusa e obscura. Não é algo dada, a priori, mas é uma margem sempre por vir, na fronteira, cujo sertão nunca se chega. Desse modo, a identidade é uma construção, um processo. Mas a discussão pára por aqui, pois a nossa questão agora é outra. O que tenho em mãos é a problematização da identidade, especificamente a transgressão da identidade em Paris em Chamas.  Daí se pergunta: que identidades se transfiguram neste filme? Como se dá o processo de transgressão? 

Este texto é resultado de uma conversação que tive ao ser convidado pelo Espaço Sonhus, Teatro Ritual, no Colégio Lyceu, na cidade de Goiânia, no dia 04 de dezembro de 2014, às 19 horas, juntamente com o professor, pesquisador e brilhante intelectual Alex Ratts, da Universidade Federal de Goiás, para debatermos e dialogarmos sobre o filme Paris in Burning (Paris em chamas). Trata-se de um documentário que foi premiado na década de 80 e finalizado em 1990.

Da década de 80, este filme tinha como fio condutor a busca da liberdade, “ser o que se quiser”. Ali a comunidade afro-americana tinha como móbil os sonhos e tensões relacionados ao complexo seio familiar com seus desafetos e conflitos. Nessa ocasião, assistimos ao filme em uma mostra intitulada “Aquenda no cinema”, na ocasião do lançamento do Coletivo Todxs e fui motivado a pensar a transgressão da identidade que emerge dessa arte fílmica a partir dos sonhos, liberdades, desejos, fluxos, devires, purezas e perigos, sob o signo da diferença.

“Paris in Burning” ou Paris em Chamastem duração de 78 minutos. É uma crônica sobre a “ball culture”, de New York e as minorias culturais que participavam e organizavam este evento. Ali se misturava desfile de moda com habilidades de dança, movimentos hieróglifos do Antigo Egito e ginástica olímpica. A enigmática cantora-performer Grace Jones utilizou desta cena para compor seu estilo. A comunidade afro americana gay surge trazendo uma série de questões de natureza raciais e de gênero no bojo da artee das múltiplas performances como forma de liberdade de “ser o que se quiser”.

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Paris is Burning trata-se de identidade, diferença, liberdade, arte e transgressão. É um filme que vem abalando as certezas da heteronormatividade compulsória, colocando em xeque o “sexo rei”, o sujeito centrado e trazendo à luz o excêntrico e, junto com ele, a arte da diferença. Desse modo, as múltiplas identidadessão construídas e fabricadas nas relações de poder e ligadas a sistemas de representação. Diz-nos o estudioso dos estudos culturais, Tomaz Tadeu:

A identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder. (SILVA, 2012, 96-7)

As problemáticas de gênero costuram toda trama do filme. Daí a noção de identidade e diferença deve ser pensada, uma vez que a identidade é algo que se constrói é fragmentada, inacabada, contraditória e inconsistente. Está diretamente relacionada às relações de poder.EmParis em Chamas as identidades são territorializadas, reterritorializadas e desterritorializadas na medida em que são problematizadas em seus devires e multiplicidades. As drags dão vários depoimentos, trazem no fluxo de suas memórias as vidas que desterrotorializaram o cenário queer,acompanhados de várias performances.Ali a noção de família embaralha com a representação heteronormativa e coloca em questionamento nossas certezas. O filme coloca em jogo a figura do negro homossexual numa certa época que, de certa forma, perpetua quando tentamos interseccionar as diferenças em tencionar pensamentos na fronteira, no entre lugar em que estes sujeitos desviantes perambulam.

Desse modo, propõe-se aqui problematizar essas identidades caóticas, complexas e questionar essas múltiplas performances cênicas que estes corpos dramatizam provocando o fascínio, o trágico, o brilho e o glamour que fazem parte, de certa forma, das viadagens pós-modernas que apostam em um mundo em chamas por transgredirem a lei da identidade una, pronta, fechada e acabada. A transgressão aqui ganha um caráter político, estético, ético, revolucionário e erótico. Ensina-nos a voz do erotismo: “Se a transgressão propriamente dita, opondo-se à ignorância do interdito, não tivesse esse caráter limitado, ela seria retorno à violência à animalidade da violência” (BATAILLE, 2013, 89). Transgredir é apelar para este interdito em que o desejo pela vida passa a ser a única lei da transgressão. É com essa voz transgressora que Bataille tece uma experiência-limite no coração do erotismo. Dar voz à transgressão é pensar o lugar que o erotismo ocupa nas políticas de gênero e na transgressão da identidade que é a aprovação da vida até na morte.Paris em Chamas, ao transgredir as múltiplasidentidades, coloca-nos diante desse “interdito” ligado a morte à vida, aos sonhos, desejos, pulsões, fantasias, fluxos, e devires. O arco íris da diferença festeja a liberdade, ateiam fogo na norma e as identidades estão em chamas.

Identidades em chamas

No mundo contemporâneo cada vez mais as identidades são pensadas e repensados pelo crivo da diferença. A diferença aqui não deve ser meramente compreendida como multiplicidade ou diversidade, mas como processo de subjetivação e categoria de pensamento. Pensar a identidade implica em colocar em crise toda uma tradição que centrou a identidade numa certa fixidez, em algo que já vem pronta e acabada. Isso se fez diante de toda uma crítica à representação clássica que consagrou a ideia de unidade, de ser, essência, deidade e sujeito. A morte de Deus com Nietzsche foi o triunfo necessário para embaralharmos as redes da representação e propormos um discurso pós-identitário, pós-estruturalista, pós-colonialista e por que não, pós-moderno. No entanto,para problematizarmos a identidade é necessário afinarmos nesse discurso em que se desloca e se desconstrói toda ideia de fixidez para derretermos os pensamentos sólidos da representação, pois numa sociedade líquido-moderna as identidades se descentralizam, se embaralham e se reinventam.A noção de desconstrução e desterritorialização são fundamentais nesse processo de pensamento, pois com o questionamento dessas novas identidades, desestabiliza-se e coloca-se em crise o centro para fortalecer e potencializar as margens. Desse modo, criar entre lugares e potencializarmosa política da diferença significa começarmosa olhar a vida pela ótica da arte e essa, pela ótica da vida.

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Paris is Burning é uma arte que coloca a todo instante a problemática da identidade e da diferença. Junto com elas, o excêntrico: homossexual negro. Dessa forma, a identidade de gênero é problematizada.Propõe-nos Stuart Hall:

Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que estão suspensas, em transição, entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais, e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns num mundo globalizado (HALL, 2011, p. 88).

Desse modo, podemos compreender que as identidades culturais não são fixas, estão suspensas, em movimento, em transição, entre posições diversas e diferentes. Para Stuart Hall, pensar o descentramento do sujeito e seu deslocamento é fundamental   nessas políticas pós identitárias. Isso constituiuma “crise da identidade”. Hall aborda três descentramentos do sujeito que são essenciais para propormos uma política pós identitária: a primeira está, segundo ele, ligada às tradições do pensamento marxista. O segundo vem da descoberta do inconsciente por Freud.O terceiro está ligado ao lingüista Saussure, ou seja, às coordenadas semióticas.Oquarto descentramento principal da identidade e do sujeito ocorre a partir de Michel Foucault em que um novo tipo de dispositivo do poder-saber e do poder disciplinar surge. O quinto e último descentramento se afirma com o impacto do feminismo, colocando em jogo as oposições quese arrastaram a partir de toda uma tradição de pensamento. O que é importante compreendermos é que para ele, a identidade “permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada” (HALL, 2011, p.39). Contudo, a identidade passa a ser pensada plasticamente e em devir. Algo em construção, em processo, em vir a ser. Paris em Chamas é um lugar privilegiado em que a identidade e a diferença são colocadas em jogo. São identidades jovens que têm apetite pelo fluxo da vida e encontramna arte o lugar privilegiado de transgredir e embaralhar a norma, a fixidez da identidade.  São presenças subversivas.Ao subverter e complicar as identidades, Tomaz Tadeu afirma:

Fixar uma determinada identidade como a norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identidades e das diferenças. A normalização é um dos processos mais sutis pelos quais o poder se manifesta no campo da identidade e da diferença (SILVA, 2012, p. 83).

Desse modo, assumir a fixidez da identidade significa enclausurar a norma e manter a hierarquia das identidades e das diferenças, fortalecendo o poder heteronormativo e compulsório. Contudo, as identidades do filme tentam, a todo instante, agredir e escapar desses binarismos e dessas marcas de poder que fortalecem a norma. Diante dessasindagações podemos pensar: qual o estatuto “ontológico” da identidadee da diferença que surge neste filme?  Como se entra neste texto imagético, visual, sonoro e ao mesmo tempo turbilhonador dos vivos? Do que se trata? Para onde essa arte-diferença arrasta-nos? Ao mesmotempo eu não seria responsável em explicar o que de fato ocorre, mas criar possibilidades para pensarmos. Explicar seria uma pretensão. Mona abusada! Ninguém saberia. Não ousaria. Ouse, risca, arrisca! Se joga, mona! Aquenda!

A rua e os Shows: espaços transgressores

O Filme Paris em Chamas começa e termina na rua. Espaços de devirese multiplicidades. Espaços transgressores.Afinal, qual o estatuto da transgressão da identidade nessa arte? Ora, quando o mundo está em chamas todos se desesperam, se inquietam e se desestabilizam, pois rouba a nossapaz e nos desafia. Uma das falas de uma das personagens diz: “É preciso ter coragem para desfilar para um público desse”, como é preciso ter a coragem para suportar a chama heteronormativa.Somos desafiados por que o mundo se embaralha e somos, com isso, forçados a deslocar, a interseccionar ea nos virar do avesso.

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Aqui arriscar e se jogarécriar circunstâncias, incógnitase ocasiões, condições de possibilidades para pensarmos o que estamos fazendo de nós mesmos ou, como se torna aquilo que se é. O filme fala de liberdade, transgressão, desterritorilização, puro devir e pura afirmação da vida com todos os fluxos desejantes que ela nos lança. Paris em chamas vem como um golpe de vento, uma violência que desestabiliza as familiaridades do pensamento, colocando de vez em cheque o poder do lugar, o “sexo rei”. Rouba a paz na medida em que se tece uma política da vontade de poder como arte, como reinvenção da própria vida.

A rua transforma-se numa forma de pensamento transgressor. Como entendo, a rua é este chão de encruzilhadas que nos desterritorializa. A desordem e o movimento são elogiados ali por ser a rua o espaço aberto que afirma o nomadismo. Melhor dizendo, o exu que individualiza, singulariza ao mesmo tempo que universaliza cada pessoa. Este “deus” de múltiplas faces e disfarces agita do princípio ao fim. Exu está ardendo em chamas na rua, pois a ruatransforma-se no espaço do encontro, do des/encontro, do caos, do dilacerador dionisíaco que transporta e transforma todo o sistema por que háali o falo, a fala, o corpo que se joga, a comunicação, a celebração da vida em seu frenesi dionisíaco. Há a afirmação de uma comunidade de perdição. O cenário da rua é o lócus que dramatiza o ethos e a visão de mundo festiva do complexo mundo queer. A rua é este entre lugar primordial que assinala que a fronteira é o que movimenta e potencializa a diferença. Ali está a afirmação de que a rua é o espaço em que as pessoasliberam seus múltiplos demônios: da criação e da invenção de novas possibilidades de vida. Esse jeito queer de ser que fascina, encanta e inquieta, é um jeito que se afirma como potência do “fora”. São vidas do “fora” e errantes que colocam o centro em jogo. Fora do centro, fora da norma, fora da lei, fora da representação. A rua é o espaço aberto em que se assume plenamente a arte como transgressão.

A Arte da liberdade como transgressão

A arte é sem dúvida o espaço da liberdade. Liberdade de ser e estar no mundo. Liberdade de dizer e calar. A maior liberdade é a de transgredir e embaralhar os códigos, retirar as coisas do lugar. É na arte que as identidades se transfiguram e o homem vai do ser ao não ser, vai ao inferno e libera seus demônios. Identidade não se separa da liberdade. Daí a máximado filme “ser o que se quiser”. Transgredir significa limar novos muros, violentar o pensamento e roubar a paz. Paris em chamas, como uma tribo transgressora, violenta o pensamento, dando o que pensar. Em todas as cenas são sociabilidades que são co-tecidas “entre”. A todo instante o espírito trágico-dionisíaco é apelado a partir de instantes que se eternizam na grande “família homossexual” que destrona a concepção “normal” de família e descentra o papai-mamãe, sacudindo de vez com os binarismos da representação e instaurando um mundo outro, à revelia, que incomoda por provocar a potência do desassossego. As identidades são inventadas, fabricadas e reinventadas a cada instante porque a lei do filme-arte é a liberdadede ser simplesmente o que se é em sua tragicidade, alegria, exuberância e poder de afirmação da vida.

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Paris em chamas é uma tribo trágica por que é vital, dilaceradora, caótica e barulhenta, por ser festiva e transgressora. Ali se tece uma ética e uma estética do estar- junto em quea sociabilidade se transforma no leitmotiv do processo de criação na jocosidade, no prazer e na liberdade. Uma voz surge no filme pela boca de uma das personagens “Vocês têm a liberdade de fazerem o que quiserem”. Para Hannah Arendt (2009), em Entre o passado e o futuro a liberdade é“O espaço interior onde o eu que se abriga no mundo não deve ser confundido com o coração ou a mente, ambos dos quais existem e funcionam somente em inter-relação com o mundo”. (ARENDT, 2009, p.192).Este ato de fazer o homem aquilo que deseja Arendt chama de liberdade, pois envolve a capacidade que ele tem de se mover, se afastar de casa e sair para o mundo ao se encontrar com outras pessoas em palavras e ações. A rua, o espaço público por excelência, em que as pessoas podem mostrar quem são e de fato aparecerem, brilharem no reino aparência, pois assimintensifica o élan vital.Mas mesmo assim é preciso “buscar uma força que jamais imaginou”, diz uma das personagens do filme.

É essa força que movimenta os homossexuais negros e toda diferença emParis em Chamas. Os vários conflitos familiares, o ato de saírem de casa e buscarem essa liberdade, nos faz perceber que a coragem libera os homens de suapreocupação com a vida. Nesse jogo político, o mundo é o que está em jogo. Segundo Hannah Arendt, 

É preciso coragem para deixara segurança protetora de nossas quatro paredes e adentrar o âmbito político, não devido aos perigos específicos que possam estar à nossa espreita, mas por termos chegado a um domínio onde a preocupação para com a vida perdeu a sua validade. A coragem libera os homens de sua preocupação com a vida para a liberdade do mundo. A coragem é indispensável porque, em política, não a vida, mas sim o mundo está em jogo. (ARENDT, 2009, p.203).

Ter coragem significa se lançar para fora de si mesmo e assumir os desafios e perigos que cada ser no mundo é lançado. Se a vida perdeu sua validade, significa que a própria vida precisa a todo instante ser reinventada. Tal reinvenção somente acontece porque existe a coragem de transgredir e não aceitar o mundo tal como ele foi dado, pois é com palavras e atos que nos inserimos no mundo humano.  Agir é a necessidade que a condição humana tem para se revelar como um homem político de primeira grandeza. A partir daí Arendt não enxergaapolítica fora da esfera dos homens, da pluralidade da existência humana.     

Paris em Chamas é um grito pela liberdade e não deixa de ser, por isso, uma arma política e esquizo revolucionária. Desse modo, é essa força que temos que buscar por sermos negros, veados, macumbeiros e outros males afins, me fazem pensar a minha condição humana como professor marginal, maldito, malvisto. Essa força que me fez estudar, me superar e dizer: sou veado, raspei a cabeça, fiz o santo, tenho essa cor e vim dessa construção imagética e visual e este chãoé meu. Vão ter que me engolir. Não estou aqui para brincadeira. Se não tolerem a minha chama, se queima nela. Como a lendária“mãe” Labeija, “saiam da passarela que eu quero passar”.

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Alguém tem que abrir a porta! Saiam da passarela que a minha roupa brilha. Ao abrir a porta, já que exu é o que abre caminhos, entra triunfantementeLabeija, cujo corpo e presença se transformam no espetáculo vivo que ativa e atiça o imaginário. É obra de arte desterritorializadora. É signo maldito que embaralha e vira tudo do avesso. A imagem- movimento se traduz em cenas, instantes que se atualizam e eternizam aqui e ali. O leque, a roupa, os gritos e os corpos em êxtase retratam o glamour e o brilho que é o próprio show. Ali acontecem transfigurações, rearranjos, invenções. Ali sempre estará implicada alguma ousadia carregada de liberdades. Um corpo montado, fabricado. Corpos em des/vio: desvio da norma e da representação. Por isso inquieta e fascina ao mesmo tempo o forte mito em seu devir “mãe”Labeija. É nessa concepção de família que Labeija e as outras “mães” lideram. Labeija é uma mãe lendária e participa da construção dessas identidades queer, subvertendo-as. Labeija é poder. É a partir da noção de poder que Butler, em Problemas de Gênero problematiza a noção de poder, de norma esubversão da identidade:

Se a sexualidade é algo construída culturalmente no interior das relações de poder existentes, então a postulação de uma sexualidade normativa que esteja “antes” “fora” ou “além” do poder constitui uma impossibilidade cultural e um sonho politicamente impraticável, que adia a tarefa concreta e contemporânea de repensar as possibilidades subversivas da sexualidadee da identidade nos próprios termos do poder (BUTLER, 2012, p. 55).

Peper Labeija éessa lendária “mãe” da Casa Labeija. Essa mãe que cuida e é líder da diferença. A casa Labeija é o mundo à revelia que desfaza representação de família e, de lugar inspirando-nos uma nova geografia e uma nova história que está para além da geografia eda história. A casa Labeija é o buraco negro, o fundo sem fundo, espaço nômade em que prolifera a complexa diferença. É este o lugar da liberdade, dos afectos, dos perceptos e da transgressão. A função importante da mãe de cuidar de muitos garotos. Estes garotos que, segundo Labeija,desafiam a sua autoridade. Ela acha que comanda muito bem, que eles gostam dela, se considera popular. Está “reinando” nisso há 20 anos, ou seja, durante uma vida Labeija reinventa a vida através da arte.

A Arte e a vida reinventadas

Em Paris em Chamas as competições entre os homossexuais são expressões de vidas, pois são micro poderes que acontecem em forma de shows entre eles. Diz uma das personagens: “É como entrar no país das maravilhas. Você se sente 100% bem de ser homossexual.”Desse modo, Paris em Chamas é o gozo em sua plenitude. No mundo real não acontece, poisexiste a marca do poder que segrega, disciplina, vigia e pune. Tira da vida o direito à liberdade de ser vida, pela vida, na vida. Trata-se de uma experiência-limite e explosiva na plenitude e no gozo da liberdade homossexual.

O show é um evento, um acontecimento. O passatempo necessário para fortalecer os laços da diferença e tornar o mundo possível, inventando, com isso, novas possibilidades de vida e dando, assim, sentido ao complicado modo de ser gay no mundo. Todos eles existem e sobrevivem do show e para o show. “O show é o nosso mundo”, diz um deles. Logo o sujeito somente existe por que está ligado no mundo. Ser é ser- no- mundo, jogado no mundo. O show éa possibilidade festiva, transgressora-afirmativa do ser no mundo. Eles encontraram nos shows a linha de fuga ea busca do possível, do porvir. Este mundo real de glória em que eles se sentem mais pertos é o mundo às avessas. Este mundo que, certamente este mundo que é normativo não está preparado. O mundo feito de mundos: mundo dos pobres, dos ricos, dos veados. Quantos mundos suportam o mundo? Estes shows representam a fantasia de seremsuperstars. Muitos garotos pobresnem têm onde morar, mas vêm aos shows para fazerem de seu sonho uma realidade. Foi isso que Nietzsche nos mostrou pelo sonho, o frêmito da embriaguez em cada um é um artista consumado. Assim, a vida é sempre vista pela ótica da arte.

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É o mundo como vontade e representação e afirmação em sua potência. Paris em chamas é uma arte que afirma a vida em seu devires. É a própria vida que é afirmada. É a afirmação da vida como traço fundamental de tudo o que é, tudo o que existe. São vidas do fora que afirmam um dentro, mas dentro que o próprio dentro. Vidas estranhas, acontecimentos na fronteira que afirmamuma arte do presente. Essa condição fronteiriça em que as fronteiras entre casa e mundo se confundem e, estranhamente, o privado e o público tornam-se parte um do outro forçando sobre nós uma visão que é tão dividida quanto desnorteadora.Isso inspira e força-nosa pensar a desterritorialização com toda força, pois, como pretendeu Bhabha:

Este é o momento de distância estética que dá à narrativa uma dupla face que, como o sujeito sul-africano de cor, representa um hibridismo, uma diferença interior, um sujeito que habita a borda de uma realidade intervalar. E a inscrição dessa existência fronteiriça habita uma quietude do tempo e uma estranheza de enquadramento que cria a “imagem” discursiva da encruzilhada entre história e literatura, unindo a casa e o mundo. (BHABHA, 2013, p38).

É neste “entre” que podemos pensar a noção de identidade. Na encruzilhada de exu, já que o homem aceitou morar na casa e exu aceitou morar fora de casa que está o “entre lugar” a encruzilhada, lugar temível e terrível. É neste sentido que interrogar a identidade a partir de Fanon, o provedor da verdade transgressiva e transicional, significa colocar a questão do comportamento do colonizador que trai uma determinação de objetificar, confinar, prender, endurecer. Desse modo, este pensar fronteiriço da cultura exige um encontro com o novo, com novas formas de existência e uma nova imagem do pensamento: um pensamento sem imagem. 

Eis aí o sentido de que nos desfiles você pode ser quem se quiser. Uma espécie de segunda vida em que é a potência de ser o que se é, que é afirmada. Ali pode se tornar qualquer coisa.É toda uma zona de devires. Em todos os cantosestáo apetite pelo vir asereavida que quer ser afirmada. A busca da arte, da beleza, da criatividade é a forma que se tem de tornar a vida justificada. É aprópria vida que é celebrada sem ser contestada. “Vi. Vime venci”, a essência destes shows, é grau zero da vida. É a vida pela própria vida. Eis o sentido do viver: viver de tal maneira cujo sentido do viver é viver sem sentido. A vida sente a necessidade de ser vivida no que ela tem de mais belae no que tem de maisfeiae aterrorizadora. Eisa forma de afrontar o destino.O sonho é o que nos mantêm vivos e nos impulsiona para forae para dentro de nós mesmos. A casa Labeija é a terceira margem que cada um precisa criar. A terceira margem é o nosso desafio aqui na terra.  “Vocês têm a liberdade de fazerem o que quiserem”.       

Ali instaura o instinto turbulento, a ordem confusional, o corpo multiplicado nos instantes que se eternizam “entre”. Os atos corporais são subversivos. O corpo das drags que subverte o feminino ao brincar e exagerar com estes códigos. As figuras que aparecem “montadas” reforçam a ideiade que os sujeitos de gênero e de sexualidades são sempre formas inventadas. São performances que transgridem as fronteiras de gênero ou de sexualidade, que atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais considerados “próprios” de cada um desses territórios que são marcadoscomo sujeitos diferentes e desviantes.

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A identidade eadiferença se traduzem, assim, em declarações sobre quem pertence e sobre quem não pertence, sobre quem está incluído e quem está excluído. Afirmar a identidade significa demarcar fronteiras, significa fazer distinções entre o que fica dentro e o que fica fora. A identidade está sempre ligada a uma forte separação entre “nós” e “eles” (SILVA, 2012, p. 82).

As identidades excêntricassão problematizadas a todo instante no filme, pois ali as figuras caóticas e devassas tomam vidas na medida em que buscam simplesmente a liberdade, sendo estes sujeitos desviantes que não fazem questão de serem integrados, mas provocarem este desconforto que incomoda ao mesmo tempo que fascina e provoca. Animada com esse exercício de sensibilidade e pactuada com a noção de que este “corpo estranho” anima o sujeito, é que a pesquisadora de gênero Guacira Lopes dá um contorno instigante à noçãoQueer. Ouçamo-la: 

Queer é o estranho, o raro, esquisito. Queer é também o sujeito da sexualidade desviante- homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis, drags. É o excêntrico que não deseja ser “integrado” e muito menos “tolerado”. Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira o centro nem o quer como referencia; um jeito de pensar e de ser que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o desconforto da ambiguidade, do entre lugares, do inelidível.Queer é um corpo estranho que incomoda, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2008, p.7).

Sem dúvidas as figuras das drags que aparecem em Paris em Chamas incomodam por colocar em xeque os binarismos. Com isso, somos forçados a pensar as margens, os entre lugares possíveis da diferença. São os corpos das drags que dramatizam modos de existência excêntricose fabricam novas identidades e, junto a elas, novas subjetividades.

Desde o começo o filme pergunta, indaga e questiona a família que, por não aceitar esses sujeitos, os mesmos passam a viver com amigos. Desse modo, existe uma crise da noção convencional de família, fazendo-nos repensar novos modos de existência. Labeija se ergue sob o signo de uma “mãe”, a que acolhe, a que dá hospitalidade e abala, com isso, as nossas certezas e convicções acerca do que é ser família, desterritorializando-a e pegando-a por trás. Labeija e todas as “mães-drags” enrabam a família, pegam-na por trás, pelo cu. Isso implica colocar em questão toda representação clássica que nos impossibilitou a pensar a multiplicidade uma vez que foi sempre centrada no ser, na essência, na identidade, na imutabilidade, na univocidade do ser. Coloca-se em questão o normal, o diferente e o excêntrico na medida em que se questiona ascertezas, perturbando o centro, o logos paterno e virando-o de cabeça para baixo. Este centro que foi materializado pela cultura ocidental, heterossexual e de classe média passa a ser desafiadoecontestado. Portanto, muito mais que um sujeito, o que passa aser questionado é toda uma noção de cultura, de ciência, arte, ética, estética, educação, associada a esta identidade.Com isso, essas novas identidades nos desafiam e nos forçam a pensar que são complexas, desarmoniosas, múltiplas, descontínuas e não homogêneas e monolíticas, como pretendeu a representação.

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Uma das narrativas mais marcantes que serve de fio condutor para o filme é, sem dúvida, o seu começo: “Meu pai disse que há três coisas contra você no mundo: negro, homem e homossexual”.Lembro-me que esse foi o pivô e as motivações epistemológicas do sociólogo Estevão Arantes (2008) quando, em sua Dissertação de Mestrado defendida em 2008, na Universidade Federal de Goiás, teve nas mãos a política da interseccionalidade das diferençasao colocar em jogo as homossexualidades, negritudes e identidades, pois para compreender este mundo, na perspectiva de Estevão Arantes, é preciso um deslocamento do olhar para essas iterseccionalidades que estruturam e norteiam essas subjetividades no processo de construção identitária dos homens gays e negros. Desse modo, o pesquisador articula suas ideiasnos mostrando que “as experiências e especificidades que homens gays e negros atribuem a sua condição de viver numa fronteira, num entre-lugar, e as demandas por eles encontradas em relação aos seus relacionamentos afetivo-sexuais, são o foco deste estudo” (ARANTES, 2008, p.11). Este viver na fronteira, neste entre- lugar que nos faz pensar essas interseccionalidades e essas possibilidades de vidas. É esse eixo o centro de Paris em Chamas, pois a todo instante essas vidas na fronteira são problematizadas. A comunidade afro- americana gay representa essa vida complexa carregada de estigma por duplamente trazerem nestes corpos que pesam, a discursividadee o marcador da diferença que segrega, oprime e pune. É dessa maneira que Estevão Arantes pensae problematiza as identidades dos sujeitos plurais que vivem esse desconforto numa sociedade marcada pela heteronormatividade compulsória. A dissertação de Estevão Arantes veiopara dizer que o Brasil também está em chamas.

É o caso também do pesquisador Romualdo dos Santos Correia(2014), que em sua tese “desejo, estilo de vida e transgressão da identidade em Dancer from the dance de Andrew Holleran e pela noite de Caio Fernando de Abreu”, defendida na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, instiga-nos e força-nos a pensar pela literatura queer as problemáticas de gênero, desestabilizando o poder do cânone e problematizando pela arte da palavra uma linguagem transgressora que desterritorializa o “sexo rei”, trazendo noções como desejo, identidade, subcultura gay com seus estilos de vida. Tratam-seaqui tanto do pesquisador bafônico maldito Estevão Arantes no seu “devir-boboze”, “amo muito a minha mamãe”, emendando e desemedando colchas, resinificando retalhos e margeando diferenças em outros sertões que transcendem o Estado de Goiás. Do outro lado, nas bandas do Rio Grande do Norte,o transgressor Romualdo Correia arrasta-nos “pela noite” a fora e nos instiga a pensar o arco íris da diferençapela ótica da arte. São estes olhares e de outras tantas bichas foras da lei, barulhentas, caóticas, bafônicas, babado e confusão que fazem a diferença ao proporem na academia a chama da ousadia e da transgressão. Como é o caso de Paulo Reis, ao textualizar e contextualizar as drags no Ju onze e 24, em sua bafômica pesquisa nas Performances culturais. Performer de mão cheia, veio para sacudir, subir no salto e fazer bafão. Como também o pesquisador queer Paulo Rogério Bentes Bezerra, que revela sua veia nervosa e desejante dentro do Quarto de Geovanni, de James Baldwin. Um homem das letras que veio para mostrar que a literatura é performance e surge dos subterrâneos de um quarto, espaço do acontecimento e do conflito. Todas tensionam as identidades e as diferenças. Bichas “babado”e “confusão”, beijo-lhes as mãos e bato a cabeça, a loka!! Entraram na minha condição humana e não saem nunca mais. Reitera Romualdo:

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De fato, a posição queer de gays e lésbicas não pretende configurar uma ordem dicotômica ou reiterar uma identidade gay fixa e imutável, na verdade queer se destaca pela desconstrução das imagens e discursos estáticos que excluíram e perseguiram, durante séculos, homossexuais e outras categorias marginalizadas pelo estigma da “estranheza” (CORREIA, 2014, p.77).

É pactuado com essa sensibilidadeno coração transgressor da diferença que o autor percebe e capta a complexidade da liquidez da identidade ao trazer a natureza do estranho, da dança como libertação do corpo, anunciando uma comunidade de perdição. Como é fácil identificar que Pela noite de Caio Abreu, assim como Paris em Chamas se descortinam o desejo, a liquidez da identidade, a liberdade e a afirmação da vida.  Desse modo, essas artes se encontram na medida em que colocam as identidades em jogo. O começo de Paris em Chamas é com música e na vibração da na rua. Diz Romualdo,“A música naquela cena inicial assume um lugar de destaque para o inicio da novela, promovendo uma performance que integra movimentos de tensão e delírio que preenchem o espaço físico e psicológico dos personagens” (CORREIA, 2014, p.44). Essas artes devassas testemunham a complexidade e a liquidez dessas identidades que estão aí para embaralhar de vez com as concepções já dadas a priori.

Numa sociedade líquido - moderna se derrete todos os sólidos para que uma identidade fluida assuma seu lugar. Diz Bauman, “Numa sociedade líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes por que, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em passivos e as capacidades, em incapacidades” (BAUMAN, 2009, p.7). Desse modo, as identidades em Paris em Chamas se transfiguram e são derretidas a todo instante. Os papéis são invertidos e o mundo virado de cabeça para baixo, abalando de vez com toda representação de homem, de mãe, de família e emergindo uma comunidade homossexual cravada no complexo arco íris da diferença. Nesse mundo à revelia, cada um pode ser oque se quiser. A lei do mundo de Labeija é a lei da liberdade, da identidade transgressora que se fortalece na diferença como potência e como afirmação da vida em seus devires e avessos. O atrativo pelo movimento e pelo devir da imagem e dos tempos que se fortalecem ali,cria-se monstros nas costas da representação e, junto a ela, na norma, no poder do lugar. Não dá mais para propor uma política identitária se não se assassina essa identidade normativa, dura, fixa, engessada a favor de uma fluidez e plasticidade, abertura e saída da clausura, da casa, da guarida, da referência ao centro e afirmar o nomadismo, a desterritorialização, a instauração do caos para poder, com isso, afirmar a vida e outras vagabundagenspós- modernas. Tal afirmação acontece na medida em que as vidas infames arriscam o trânsito e a assumem a fronteiracomo acontecimento de vidas.

O trânsito e a fronteira das vidas infames

O Filme Paris em chamas é uma arte que dança na fronteira. Ali a fronteira é desafiada a todo instante. “A fronteira é o lugar de relação, região de encontro, cruzamento e confronto”.(LOURO, 2008, p.19). A fronteira separa, diz Guacira Louro, ao mesmo tempo que põe em contato culturas e grupos. É ao mesmo tempo a zona de policiamento, de transgressão e subversão. O excêntrico e o estranho, o trágico e a afirmação da vida são colocados na experiência-limite do estar junto, nas competições, na dramatização dos corpos e na sociabilidade que se cria em cada espaço.Com isso, eis o perigo e a pureza que a condição humana negra e homossexual enfrenta que aproxima do que Homi Bhabha, em seu livro O local da cultura, problematiza ao trazer essas “vidas na fronteira” e em trânsito por afirmarem uma arte do presente e permitirem entre lugares. São possibilidades outras de existências que exige um deslocamento e a reinvenção da existência. O estranho passa a ter seu lugar privilegiado ao desafiar as expectativas da norma e tensionar novos modos de vida e novos lugares trans-históricos:

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Os embates de fronteira acerca da diferença cultural têm tanta possibilidade de serem consensuais quanto conflituosos; podem confundir nossas definições de tradição e modernidade, realinhar as fronteiras habituais entre o público e o privado, o alto e o baixo, assim como desafiar as expectativas normativas de desenvolvimento e progresso” (BHABHA, 2013, p.21).

Paris em Chamas é uma antologia das existências, pois são aventuras e desventuras que se multiplicam. O filme coloca-nos para pensar a arte e junto com ela, as vidas. São vidas desterritorializadas por criarem espaços transgressores e ao mesmo tempo seus corpos infames em espaços em que as subjetividades desafiam a norma e o controle. Em seu ensaio de 1977, intitulado “A Vida dos Homens Infames”. Foucault não demora em nos dizer do que se trata: “É uma antologia das existências. São vidas de algumas linhas ou de algumas páginas, desventuras e aventuras sem nome, juntadas em um punhado de palavras. Vidas breves, encontradas por acaso em livros e documentos”.(FOUCAULT, 2006, p.2013).

Ao problematizar as estéticas da existência, o pensador cria dispositivos para pensar as linhas de uma vida com suas aventuras e desventuras no coração da imanência. De certo modo, o modo de vida dos homossexuais em Paris em Chamas são essas vidas do “fora”, errantes, transgressoras e fora da lei. Essas vidas sem nome que duplicam a si mesmas e se envolvem numa atividade plástica. É a vida imanente, signo da diferença.Um corpo infame atua na linguagem, pois essa sempre foi a soberana do homem. A cultura é o lugar em que o corpo instala e instaura modos de vida e processos de subjetivação. São estes corpos - artistas que se reinventam através da arte, que montame desmontamtêm nestes espaços a suas linhas de fuga que são fortalecidos por éticas e estéticas da existência. Criam-se, com isso, laços de sociabilidades em que o estar junto é a marca potente destes sujeitos.

No filme Paris em Chamas, ser uma bicha lendária é questão de coragem. As garotas de agora não têm ideia de como eram os shows. Então elas retomam o fio do memória e narra vivido. Labeija diz que quando começou a carreira eram todas “drag queens” querendo se parecer com as dançarinas de Las Vegas. Usavam trajes deslumbrantes, plumas e lantejoulas”. Me faz recordar que na década de 70 fomos surpreendidos aqui no Brasil pelo cantor Ney Matogrosso e o grupo Dzi croquetes que embaralham propositalmente as referências masculinas e femininas em suas performances.Os Dzi croquetes trouxeram para o Brasil o que tinha de mais contemporâneo e começava a questionar o movimento homossexual internacional, sobretudo, americano, como afirma  João Silvério Trevisan, em “Devassos no Paraíso”.

O corpo infame encontra a gênese do ato de pensar nas formas do poder e do saber. É dessa vida-imanência que Foucault (2010) propõe articular “o ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele e concentram”. Acrescenta-nos o pensador da Microfísica do poder:“Não é a primeira vez, certamente, que o corpo é objeto de investimentos tão imperiosos e urgentes; em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações”. (FOUCAULT, 2010,p.132).Para Foucault, o corpo, em qualquer sociedade está preso na malha do poder que impõe ao próprio corpo certas limitações, proibições e obrigações. A escola, por exemplo, é o lugar por excelência do controle que vigia e pune o corpo ao mesmo tempo. Com isso, o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o desarticula e o recompõe e esquadrinha, vigia ao mesmo tempo que pune os corpos, disciplinando-os. Desse modo, pensar a cultura e os processos de subjetivações a partir do corpo é inseri-lo em sua malha cultural já que ele é construído pela cultura e pela linguagem. É em torno desse discurso sobre as vidas que Foucault assinala a vida infame:

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Vidas que são como se não tivesse existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis se não, aniquilá-las ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis aqui juntar alguns restos” (FOUCAULT, 2006, p.210).

De tradição Nietzschiana, Foucault assume a vida como traço fundamental de tudo que é e de tudo o que existe. A vida para Nietzsche é vontade de potência. Foucault denuncia a vida lá onde ela é prisioneira de si mesma. Este corpo preso.Para Deleuze, é puro devir e expressão do “Fora”. Para Foucault, a vida é cheia de dobras, pregas e movimentos peristálticos. Foucault foi quem soube duplicar a vida ao infinito e, junto com ela, o corpo. Acentua José Gil: “Neste sentido, o corpo não fala, faz falar. Mas sendo ele próprio articulado, fornece à linguagem uma língua virtual e muda, uma estrutura potencial que permite passar do nível do significado ao nível dos significantes” (GIL, 1997, p.35). No entanto, ao pensar as metamorfoses e devires do corpo, o autor esclarece-nos   que se enfrenta várias resistências ao tentarmos discutir a natureza do corpo. Mas, de todo modo, enfrentar é se colocar a caminho da problematização do corpo e evidenciar a natureza complexa da linguagem. Tal resistência não deixa de nos revelar que o corpo é uma descoberta recente.  O homem ou performer que usa o corpo como arte não deixa de lutar a todo instante com seus demônios. O maior deles é o demônio da criação. O corpo é este espaço demoníaco que nos permite fazer complexos movimentos para fora e para dentro, de entradas e saídas através de pequenos gestos. Os gestos são performativos, como um evento, um acontecimento que nunca se repete. Cada corpo representa e multiplica inéditos sinais no mundo. Isso porque ele desde sempre já está no mundo e faz parte dessa representação que é o mundo. Cada corpo é um mundo e cada um inventa mundos possíveis. Paris em chamas é a invenção de mundos possíveis através do corpo, da dança, das múltiplas performances transgressoras. Em cada show os corpos se duplicam e se desdobram sob o signo da arte. 

O corpo em todas as suas esferas dramatiza visões de mundo, encena o caos e o cosmo. “A dobra do corpo sobre si mesmo é acompanhada por um desdobramento de espaços imaginários” (GUATTARI, 1992, p.153). É desse modo que o pensador de caosmose aponta-nos um novo paradigma estético, pois pensar o corpo significa pensar suas implicações ético políticas. Significa pensar a instância criadora em relação à coisa criada. O corpo instaura o caos e subverte a ordem. Ele duplica sobre si mesmo formando dobras sobre dobras criando espaços imaginários. Todo corpo é uma viagem, é um delírio, pois é capaz de nos arrastar para fora dos sulcos costumeiros da vida. Quando dança ou quando se movimenta o corpo emite uma multiplicidade de signos. Ele se afirma na sua unidade e seu surpreendente pluralismo. O corpo como obra de arte tem o poder nos afetar e sermos afetados por outros corpos, pois eles se prendem a múltiplas éticas e múltiplas estéticas da existência. O corpo existe por que ele ek-siste, ou seja, ele se projeta para além de si mesmo. O homem quando nasce, ele se joga no mundo por que ele tem o corpo, o espaço e o tempo que são construídos  e limitados pelo corpo. O corpo sente a necessidade de se jogar nas possibilidades do mundo. O corpo é mundano por excelência, pois já nasce gozando da mundanidade e das coisas deste mundo. Daí a expressão “se joga”, ou seja, se permita, corpo. O corpo se joga por que ele é do jogo do mundo e ele veio para jogar e ser jogado no mundo da vida.

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Em todo filme as vidas infames buscam a liberdade. Quando a personagem Labeija retoma o passado que na década de 70 as coisas começaram a mudar, pois começaram ase vestir como as estrelas de cinema como Marilyn Monroe e Elizabeth Taylor. Agora mudou, pois o objetivo é se parecer, diz ela. Os shows mudaram para que todos pudessem participar. Qualquer um que vai ao show pode participar. Desse modo, o que se reivindica é possibilidade de todos ferverem e sonharem juntos. Ou seja, tem categorias para todos.

Paris em Chamas é o espaço da Diferença que se afirma enquanto tal. Essas narrativas acompanhadas de arte em que são contados no momento em que as drags estão se montando e construindo o texto. Por vivermos em uma sociedade de controle, o homossexual não pode fazer tudo. Quem é heterossexual pode até fazer sexo na rua, diz alguém no filme. Deve controlar como se veste, fala ou comporta. “estão reparando em mim? Oque pensam de mim”. Desse, modo a capacidade de se misturar, se fundir e se confundir formando uma comunidade de perdição é o que move a arte que ali instaura.Sacudira representação, a heteronormatividade. Por isso a categoria de se parecer o máximo com o heterossexual, “passar por”. Alcançar este realismo de se parecer coma mulher, ou com o homem. Não serem questionados pelo estilo de vida que escolheramsem terem que ocultar as imperfeições. A narrativa de Labeija em relação a sua mãe e seu pai que disse que ele havia se transformado em mulher... “ele tem mais peito do que eu”. Ateou fogo em seu casaco, chorou como um bebê...“enquanto usava bigode, tudo bem. Não queria que usasse roupa de mulher. Saí de casa porque não queria envergonhá-los.” Eis umas das questões fortes do filme: a família que maltrata e desampara os gays por eles serem o que eles são, “a vergonha”. Para uma sociedade heteronormativa que está acostumada com este padrão “normal”, desviar dessa norma é extremamente problemático, pois causa desconforto e embaralha essa representação. 

Os pais e as famílias rejeitam seus filhos e os mesmos se sentem sozinhos no mundo e buscam algo que preencham o vazio. Os meninos me procuraram, diz Labeija“e veem em mim um pai ou mãe porque se reconhecem como eles e daí tiro forças para fazer papel de mãe”. Desse modo, a “casa” que acolhe esse arco íris da diferença, um deles tenta explicar sobre esse lugar: “... digamos que são famíliaspara um monte de garotos que não têm uma. São famílias em outro sentido. Os hippies também formam uma família (...) grupo de pessoas com laços múltiplos (...). Vou dizer o que é uma casa... é como uma gangue de rua de homossexuais. As gangues se enfrentam nas lutas de rua. Os homossexuais se enfrentam nos shows (...). As casas surgiram porque todos precisam de um nome.”

Com isso, as casas são espécies de comunidades que dão lugares e identidades a estes sujeitos. Como em um terreiro, quando o filho de santo é acolhido, se inicia e começaa fazer parte daquela “casa”, daquele “axé”, daquela comunidade. Como em uma Universidade que tem as famílias, as linhas em que os “irmãos” se reconhecem e também se estranham como toda família, toda tribo. Somos do mesmo “barco”, ou seja, estudamos diferença, partilhamos de teorias da diferença, colocamos o mundo em chamas.

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Considerações finais

Finalmente a identidade não é algo pronta e acabada. É um processo e está em constante devir. A identidade vacila. Em Paris em Chamas é a problemática da transgressão da identidade que está em jogo em toda sua complexidade. Uma coisa é fato:

A identidade não é fixa, estável, coerente, unificada, permanente, A identidade tampouco é homogênea, definitiva, acabada, idêntica, transcendental. Por outro lado podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo de produção, uma relação, um ato performativo (SILVA, 2012, p. 97).

Ali são problematizados os sonhos, as tragédias e a vida em seus desencontros. Desenrola e proliferatoda uma problemática de gênero em quea identidade e a diferença se fortalecem formando um complexo agenciamentoQueer. Tais identidades são fabricadase construídas culturalmente no estar- junto e nas performances artísticas em que os corpos dramatizam um ethose uma visão de mundo gay.    

Tentar responder pelas identidades que se transfiguram neste filme ecomo se dá o processo de transgressão da identidade, não é uma empreitada simples na medida em que somos colocados na pergunta pela condição humana que é frágil e incerta. Talvez só possamos colocar a questão da identidade tardiamente, na velhice, em momento de graça, numa agitação discreta entre a vida e a morte. Talvez possamos nos entregar à escuta visual, plástica e sonora do filme, aprender com as drags, com os sujeitos desviantes da norma e acolher de fato essa diferença em seus processos de subjetivações.

Ao terminar o filme uma das drags mais velhas deixa seu recado que, inclusive, poderia encerrar esse texto e abrir diálogos para outras questões acerca da chama da vida: “... sempre sonhei em ser uma grande estrela... Você ainda pode deixar uma impressão... uma prova de que passaram por este mundo (...) se você sobreviveu (...) e algumas pessoas lembram o seu nome, aí então você deixou uma marca. Não precisa mudar o mundo inteiro, acho que é melhor apenas desfrutá-lo, pagar suas contas e desfrutar (...) etodos querem deixar algo nessa vida, se conseguir chegar longe com o que faz, parabéns para você!”.

Desse modo, devemos encarar a vida em sua grandiosidade e complexidade. Isso vai acontecer quando sermos capazes de deixar a nossa marca e a nossa audácia. Sermos audaciosos significa que precisamos aprender a sobreviver e fazer de cada viver um acontecimento. Deixar a marca e aprova de que passou por este mundo significa deixar seu charme, pois uma pessoa sem charme é como um morto, sem vida. O charme de cada um está em ter a liberdade de ser o que se quiser e se reinventar a cada instante.Transgredir é inventar um povo que falta pois este que aí se encontra não nos serve. Quando este povo surgir, teremos a liberdade. A pura liberdade de dizer “sim” à vida. Aquenda, mona!

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