O toque suave da transgressão: afetividades e subversão de estereótipos em Irina Palm

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O toque suave da transgressão: afetividades e subversão de estereótipos em Irina Palm

Tania Siqueira Montoro

Clarissa Raquel Motter Dala Senta

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Resumo: Este artigo busca refletir sobre a representação do envelhecimento feminino no cinema contemporâneo, destacando, na narrativa audiovisual, matrizes de resistência que contestam práticas hegemônicas. Parte-se da perspectiva de que, frente às representações normativas de gênero, os afetos podem despontar como potências libertadoras e transgressoras, sobretudo para o feminino. A análise do longa-metragem de ficção Irina Palm demonstra que o exercício das afetividades pode subverter estereótipos e comportamentos emoldurados pela cultura de consumo e por resquícios de práticas patriarcais.

Palavras-chave: representação audiovisual; cinema; envelhecimento feminino.

The suave touch of transgression: affectivity and subversion of stereotypes in Irina Palm

Abstract: This article reflects on the representation of female aging in contemporary cinema, highlighting, in audiovisual narrative, arrays of resistance that challenge hegemonic practices. The assumption is that, as opposed to normative representations of gender, the affections may emerge as liberating and transgressive powers, especially for women. The analysis of full-length movie Irina Palm demonstrates that the exercise of the affections can subvert stereotypes and behaviors framed by consumer culture and by remnants of patriarchal practices.

Keywords: Audiovisual representation; cinema; Female aging.

Construções midiáticas de gênero: feminilidade ou feminilidades?

Nas sociedades contemporâneas, a mídia consolidou-se como um dos principais canais de transmissão de informações, ideias e estilos de vida, estabelecendo um estreito entrelaçamento entre cultura e vida social. Nesse espaço, delineia-se uma luta simbólica que contrasta comportamentos tradicionais, considerados legítimos, e comportamentos alternativos, que apontam para uma resistência aos valores hegemônicos e permitem uma abertura para a ressignificação de imaginários.

É nesse espaço de ação e contradições que consumo e cultura se entrecruzam, onde estilos de vida transformam-se em projetos de vida por meio dos quais os sujeitos manifestam sua individualidade: nos bens que adquirem, nas aparências nas quais se espelham nas práticas e experiências de consumo que vivenciam.

Assim, dentro dessa perspectiva, ressalta-se a implicação do consumo na cultura, seja do ponto de vista econômico (os valores mais elevados da cultura sucumbem à lógica do processo de produção - quantidade em detrimento à qualidade), do ponto de vista social (modo de usar os bens para demarcar relações sociais – aspectos simbólicos da mercadoria, estilos de vida, status) ou do ponto de vista estético (produtos midiáticos com potencial lúdico, onde a criatividade se libera da arte e migra para os objetos cotidianos, corroendo a distinção entre “alta-cultura” e “cultura de massa”).

Nesse sentido, as imagens audiovisuais que visam comercialização de produtos culturais, tais como aquelas produzidas e promovidas pela TV e pelo cinema comercial, alinham-se à lógica de consumo e primam por representar comportamentos que permitam uma maior adesão espectador - produto audiovisual.  Ao orientar para determinados modos de ser e estar no mundo, as representações de determinados comportamentos criam no público a perspectiva de maior aceitação/inserção social quando suas condutas sociais se adequam àquilo que é colocado como legítimo pelas mídias. É consumindo, ou absorvendo socialmente, determinadas imagens e construções midiáticas que as subjetividades e identidades se constroem e se refazem, na medida em que essas imagens alimentam e recompõem o imaginário social.  

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Hall (1997a) trata dessa questão ao abordar a centralidade da cultura nas sociedades contemporâneas e o seu papel constitutivo em todos os aspectos da vida social. Segundo o autor, deve-se pensar as identidades sociais como construídas no interior da representação.

Elas são o resultado de um processo de identificação que permite que nos posicionemos no interior das definições que os discursos culturais (exteriores) fornecem ou que nos subjetivemos (dentro deles). Nossas chamadas subjetividades são então produzidas parcialmente de modo discursivo e dialógico (HALL, 1997a, pag.9).

Dessa forma, em uma sociedade intensamente marcada pela cultura de consumo, é, sobretudo, a mídia (a propaganda e seus “produtos dos sonhos”, os heróis e vilões das novelas e filmes) que disponibiliza aos indivíduos um repertório de representações, permitindo que eles se posicionem e/ou se identifiquem em relação aos discursos arraigados nessas representações, ajudando a definir gostos, estilos de vida e construir visões de mundo e imaginários sociais.

Embora não ajam de forma determinante, os produtos midiáticos, ao trabalharem no sentido de orientar quanto à adoção de padrões de comportamento, acabam grande parte das vezes, por reforçar a condição hegemônica de determinados grupos sociais.

Corroborando essa percepção, Kellner (2001) constata que a cultura dominante, na sociedade contemporânea, é a que o autor denomina de “cultura da mídia”. Para o autor, especialmente com o advento da TV, a mídia se transformou em força dominante na cultura, interferindo fundamentalmente nas práticas sociais, podendo legitimar o domínio da classe, raça ou do sexo hegemônico.

Numa cultura da imagem dos meios de comunicação de massa, são as representações que ajudam a construir a visão de mundo do indivíduo, o senso de identidade e sexo, consumando estilos e modos de vida. A ideologia é tanto um processo de representação, imagem e retórica quanto um processo de discursos e ideias (KELLNER, 2001, p.82).

Além disso, é dentro de uma cultura cada vez mais visual que as imagens passam não só a representar a realidade, como também a constituí-la. Na cultura de consumo ou “cultura da mídia” o que se vende e se consome são imagens transitórias, que são descartadas e substituídas tão logo percam sua utilidade, o seu fascínio.

É essa lógica consumista que muitas vezes convive com posições ideológicas e valores conservadores. E é dentro dessa lógica que, no que se refere às questões de gênero, o universo feminino é retratado de forma a supervalorizar a beleza e a jovialidade, colocando-as como valores primordiais e morais.

Numa sociedade onde relações patriarcais ainda se fazem presentes, os corpos fora dos padrões hegemônicos de beleza ou a velhice passam a ser moralmente inaceitáveis, pois demonstram falta de amor próprio. Contra isso, a indústria farmacêutica e a indústria de cosméticos oferecem produtos e serviços capazes de eliminar as imperfeições e sinais corporais do envelhecimento, e que vendem a promessa de perfeição física e eterna juventude.

Para Novaes (2006), a feiura caracteriza uma ruptura estética e psíquica, da qual decorre, muito frequentemente, a perda da autoestima. Para a mulher, mudar seu corpo é o mesmo que mudar sua vida, traduzindo-se as intervenções estéticas decorrentes desse processo em gratificações sociais e pessoais.

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Segundo Mori e Coelho (2004), as mudanças corporais relativas ao envelhecimento feminino impactam a autoimagem da mulher, evidenciando-se em um sofrer psíquico que é relativo às práticas sociais concernentes à sociedade onde essa mulher está inserida.

Nas ocidentais, a história das mulheres tem passado pela história de seus corpos, cuja tríade da perfeição física – juventude, beleza e saúde – têm trazido consequências psicológicas cada vez mais sérias no enfrentamento do processo de envelhecimento (MORI; COELHO, 2004, pag. 178).

A posição de “mulher-objeto” (em relação ao sujeito masculino) muitas vezes retratada na mídia, com a supervalorização do corpo feminino (fragmentado/desintegrado) e desvalorização da mulher como sujeito, contribui para essa rejeição à velhice e às imperfeições corporais. A realização feminina, tal como apresentada na “cultura da mídia”, não viria em função da experiência de vida ou profissional (ou seja, da mulher como sujeito), mas sim em função da manutenção do corpo perfeito, sustentada pela compra de cosméticos, fármacos, pela academia de ginástica e por cirurgias plásticas (ou seja, da mulher como objeto).

No entanto, se para muitos a cultura de consumo pauta atitudes e comportamentos, é preciso relativizar a influência dos produtos culturais sobre os consumidores e enfatizar que os ditames midiáticos hegemônicos são interpretados por diferentes indivíduos, de diferentes grupos sociais, que atribuem diferentes significados às mensagens.

Recorrendo novamente a Hall (1997b) em seus estudos sobre as relações entre representação, história e cultura, pode-se dizer que, se as representações são resultados de sistemas de convenções sociais, construídas ao longo do tempo por uma determinada sociedade e cultura, então os sentidos emergentes dessas representações estão sujeitos a mudanças, tanto de uma cultura a outra, quanto de um período histórico a outro (novos contextos sociais implicam em novas leituras e em novas produções de sentido ).

[...] Por tanto no hay un „sentido verdadero‟ que sean singular, incambiable y universal. [...] para nuestros propósitos, el punto importante es el modo como este enfoque del lenguaje desfija el sentido, rompiendo cualquier vínculo natural e inevitable entre el significante y lo significado. Esto abre la representación al constante „juego‟ o deslizamiento del sentido, a la constante producción de nuevos sentidos, nuevas interpretaciones (HALL, 1997b, pag. 16).

Assim, especialmente nas sociedades contemporâneas, abre-se espaço para que sujeitos cada vez mais conscientes contraponham-se aos ditames hegemônicos, sendo possível encontrar na mídia alternativa e até mesmo na mídia convencional/comercial, a construção de outros olhares sobre o feminino.  Diante da prescrição patriarcal que legitima um exercício normativo da feminilidade, aponta-se então para a expressão identitária de feminilidades transgressoras, plurais que, embora ainda de forma discreta, emergem da cinematografia ocidental contemporânea.

Hegemonia e contradiscurso feminino no cinema

Em uma sociedade de consumo, as mídias comerciais trazem a público, grande parte das vezes, representações de cunho hegemônico. Para compreender esse processo, deve-se primeiramente entender o conceito de hegemonia que, Segundo Rocha (2010), é um termo descrito pelos teóricos culturais para definir “[...] o processo pelo qual uma classe dominante conquista o consenso das classes subordinadas ao sistema que assegura sua subordinação” (ROCHA, 2010, pag. 6).

A partir desse conceito, pode-se compreender que as representações hegemônicas midiáticas definem-se pela apropriação de mecanismos institucionais, educativos, narrativos e audiovisuais, permitindo uma identificação produto cultural/espectador e legitimando determinados comportamentos convencionais. Essas representações trazem consigo modelos de conduta tomados como adequados, tendo em vista a manutenção do poder de uma classe dominante, modelos esses suficientemente reconhecíveis e atraentes para poderem ser aceitos de forma consensual pelos receptores da mensagem midiática.

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É nesse sentido que o uso de estereótipos na construção de personagens midiáticos apresenta-se como um dos mecanismos mais utilizados. Partindo dos apontamentos de Goffman (1985) sobre representação, tem-se que o ato de representar envolve o fato de que, para o observador, reconhecer o indivíduo que representa determina-se também pela sua bagagem em relação às experiências anteriores obtidas com indivíduos semelhantes.

Se o indivíduo lhes for desconhecido, os observadores podem obter, a partir de sua conduta e aparência, indicações que lhes permitam utilizar a experiência anterior que tenham tido com indivíduos aproximadamente parecidos com este que está diante deles ou, o que é mais importante, aplicar-lhe estereótipos não comprovados (GOFFMAN, 1985, p.11).

Voltando-se especificamente para a linguagem cinematográfica, é possível entender esse reforço de estereótipos se transpusermos para essa mídia os conceitos de “expressões dadas” e “expressões emitidas”, também elaborados pelo autor e que são definidos, respectivamente, como os aspectos verbais (e seus substitutos) e os não-verbais da representação. Dentro dessa apreciação, pode-se considerar aqui “expressões cinematográficas dadas” aquelas formadas pelo figurino, diálogos, cenário, e todos os elementos que explicitamente constroem a imagem da personagem, e “expressões cinematográficas emitidas” aquelas que, em segundo plano, implicitamente, compõem a atmosfera do ator, tais como: iluminação, ângulos de câmera e enquadramentos. Inclui-se aqui, também, o que é silenciado no texto cinematográfico, ou seja, aquilo que está ausente, mas que pode significar (por exemplo, a ausência de personagens que representam determinadas construções identitárias relacionadas a gênero, sexo e/ou raça, podendo evidenciar uma escolha discursiva autoritária e excludente).

Dessa forma, e a partir dessas considerações, o reforço de estereótipos na linguagem cinematográfica é possível na medida em que a utilização dos elementos fílmicos e técnicas de realização audiovisual, explícita ou implicitamente, e no decorrer da película, reafirmam (ou silenciam) a construção discursiva da personagem. As “expressões cinematográficas emitidas”, por exemplo, podem então reforçar a mensagem que é passada pelas “expressões cinematográficas dadas”, em prol de uma representação identitária fixa, estável e desejável do ponto de vista do lugar de fala de um “outro superior”.

Assim, a questão que se problematiza em relação à utilização desse mecanismo de identificação nas representações cinematográficas é a de que os estereótipos não se limitam a identificar categorias gerais de pessoas, eles contêm também julgamentos tácitos ou explícitos a respeito de seus comportamentos.

Os estereótipos necessitam ser conceituados como estratégias ideológicas de construção simbólica que visam a naturalizar, universalizar e legitimar normas e convenções de conduta, identidade e valor que emanam das estruturas de dominação social vigentes. (FREIRE FILHO,2004, p.48).

Ainda, para Freire Filho (2004), o uso de estereótipos tende a excluir tudo aquilo que é diferente, mantendo fronteiras simbólicas entre o que é normal e anormal, aceitável ou inaceitável, funcionando como uma forma influente de controle social. Sua utilização está intimamente relacionada à representação desfavorável das minorias, ou seja, de grupos sociais cujas vozes são marginalizadas pelas estruturas de poder.

Dentro dessa visão, e voltando-se novamente para os conceitos de Goffman (1985), percebe-se assim que a representação estereotipada pode apontar para uma certa discrepância entre fachada (desempenho do indivíduo/ator capaz de definir a situação para os que observam) e realidade total, permitindo que se dissimule ou despreze atividades, fatos ou motivos incompatíveis com a versão idealizada da identidade que lhe é atribuída, primando por uma representação perfeitamente homogênea.

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Chega-se então ao conceito de “representação falsa” que, segundo o autor, é aquela na qual as aparências podem ser manipuladas, evidenciando ou omitindo certas característica dos personagens representados em prol de uma maior identificação do público com estes. É essa “representação falsa” ou estereotipada que produz um efeito cinematográfico de realismo ilusionista, estando fundamentada no cinema clássico e voltada para a reprodução de um olhar ideológico sobre determinados grupos sociais.

Ao que se refere especificamente à representação feminina, ao promover a desconstrução de grande parte dos filmes hollywoodianos, por exemplo, percebemos a presença de um discurso patriarcal que posiciona a mulher como “o outro”, sobretudo por meio do melodrama familiar que, segundo Kaplan (1995), funciona tanto para evidenciar as limitações que a família capitalista impõe à mulher, quanto para promover a aceitação das mulheres a essas restrições. Essa forma de melodrama clássico evidencia a representação estereotipada da mulher, sobretudo, por meio da dicotomia virgem-prostituta, já evidente nas representações ocidentais do feminino desde os primórdios do cinema.

Quando se trata de agregar a essa representação do feminino aspectos relacionados ao processo de envelhecimento, o reforço dessas imagens estereotipadas e a busca de adequação aos padrões masculinos torna-se ainda mais evidente. Isso porque as sociedades residualmente patriarcais tendem a rejeitar o envelhecimento feminino, tomando-o apenas como algo negativo ao relacioná-lo a perdas (no trabalho, no casamento, na atratividade/sexualidade). O discurso cinematográfico hegemônico concentra-se geralmente na negação ou no enfoque dessas perdas, seja por meio da busca descomedida da mulher por um corpo jovem, perfeito (negação das perdas), ou pela sua vitimização nos processos de perda no casamento, corpo e trabalho (enfoque nas perdas).

Segundo Montoro (2009), é nas relações sociais e culturais de cada sociedade que a imagem da velhice se edifica, e resulta muitas vezes dessa rejeição ao processo de envelhecimento. Para a autora, a cultura visual impõe um modelo único de beleza relacionado ao vigor da juventude, exigindo um “eterno aperfeiçoar-se” do indivíduo para aumentar a capacidade de sedução do corpo. 

É nesse “eterno aperfeiçoar-se”, e nessa busca por aumentar a capacidade de atratividade e sedução, que a mulher encontra, no cinema hegemônico, um reflexo e reforço dos modelos femininos que orientam para uma preocupação estética excessiva, no intuito de aprisionar a jovialidade/sensualidade e com ela o olhar masculino.

Aqui, pode-se tomar essa orientação sócio-cultural para o olhar masculino como uma maneira de designar os lugares da mulher na sociedade patriarcal, lugares estes dicotômicos e que a definem ou como a mulher inocente, submissa, a ser protegida (o estereótipo da “esposa-mãe”), ou como astuta, corajosa, independente, mas que por representar um risco deve ser dominada ou castigada (o estereótipo da “solteirona” que, ou se empenha na busca de um marido, ou está destinada a uma vida infeliz e solitária).

É possível promover uma aproximação entre essa tendência ao binarismo “dominação (masculina)/submissão (feminina)” e a relação existente entre pai e filho, a qual, segundo Bobbio (2002), apresenta-se como uma relação entre um superior e um inferior, onde o superior, mesmo que pretenda ter o direito de dominar o inferior, atribui-se o dever de ajudá-lo, de socorrê-lo ou redimi-lo da sua inferioridade.

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Desses dois tipos de poder do superior e do inferior dentro do grupo familiar nascem as duas bem conhecidas formas de Estado autoritário: o Estado paternal ou, com outra expressão derivada não da tradição clássica, mas da tradição do Velho Testamento, patriarcal; e o governo despótico no qual o detentor do poder trata seus súditos como escravos. (BOBBIO, 2002, p.17).

Assim, dentro desse ponto de vista, resta à mulher se render à “proteção” patriarcal ou “resistir” a ela e ser punida com o abandono masculino e sua consequente infelicidade. De uma forma ou de outra, o que esse tipo de discurso procura fixar nos comportamentos sociais e nas representações que compõe o imaginário social é a relação de dominação entre gêneros e entre pessoas de idades cronológicas distintas.

Mas, se é possível identificar esse eixo patriarcal na representação do feminino dentro das produções cinematográficas ocidentais, é igualmente importante ressaltar que as representações midiáticas, como expressões e construções culturais (e, portanto, tais como a cultura) não são exclusivistas, podendo também se manifestar como resistência a determinada reprodução identitária. Sendo assim, se houve (e há) uma cultura patriarcal (refletida, sobretudo, nas representações midiáticas hegemônicas), também houve (e há) uma cultura feminista (refletida em produções midiáticas contradiscursivas).

São essas produções contradiscursivas que caracterizam-se por tentar substituir o olhar patriarcal característico do discurso dominante, por representações nas quais o universo feminino possa ser efetivamente retratado (em suas singularidades, múltiplas identidades e/ou em seu diálogo com outros universos).

Em termos narrativos e audiovisuais, enquanto a produção hegemônica na representação do feminino orienta-se pelo realismo ilusionista (estereotipado), tentando perpetuar a ideia de identidades estáveis, a produção contradiscursiva apresenta um cinema que segue em outra direção, com raízes na teoria de vanguarda feminista, que se desenvolveu principalmente na Grã-Bretanha, a partir de 1970, e cujo intuito era o de desconstruir os códigos realistas convencionais, utilizando o aparato cinematográfico de modo novo.

De acordo com Kaplan (1995), os filmes produzidos dentro dessa intervenção feminista, chamam a atenção para os seus próprios processos cinematográficos, e uma de suas características é a de nos tornar cientes do fato de que estamos assistindo a um filme. São obras de contestação/denúncia e que questionam a estrutura domínio(masculino)-submissão(feminina) imposta pelo olhar patriarcal. Esse tipo de feminismo cinematográfico, segundo Stam (2003), foi particularmente intenso na Inglaterra, nos Estados Unidos e no norte da Europa, exemplificado pela obra de Marguerite Duras, Yvonne Rainer, Nelly Kaplan e Chantal Akerman.

O objetivo deste cinema era, em síntese, contestar o reforço de convenções patriarcais no cinema hegemônico, tanto na narrativa, ou seja, na diegese (o olhar das personagens) quanto no espetáculo (o olhar da câmera). A crítica, conforme elaborada por Laura Mulvey, em seu ensaio Visual pleasure and narrative cinema, de 1975, era a de que o olhar do espectador estava destinado, nesses dois aspectos (narrativa e espetáculo), à identificação com o olhar masculino.

A forma de representação defendida por Mulvey rejeitava o prazer fílmico (a identificação filme/espectador), mas foi posteriormente criticada por ser considerada extremamente determinista, “insensível às várias formas pelas quais as mulheres subvertem, redirecionam ou sabotam o olhar masculino” (STAM, 2003, p.197).

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Surgem então, na cultura contemporânea, outros cinemas que evidenciam formas alternativas de representação do feminino, sem, no entanto, negar o prazer fílmico, ou os processos de identificação filme-espectador. Ancorando-se nos ideais da crítica feminista do cinema e na sua proposta de contestação de modelos patriarcais, esses filmes utilizam-se das normas convencionais da narrativa para promover uma abertura para o novo, trazendo novos olhares sobre o universo feminino, especialmente sobre o universo da mulher envelhecida.

Assim, em contraposição à orientação ideológica hegemônica, tem-se observado uma crescente circulação de outros sentidos na construção audiovisual sobre o envelhecimento feminino. Estes sentidos, por vezes, permitem apresentar ao espectador um processo de aceitação (e não negação) das perdas associadas ao envelhecimento, conjugando-a aos ganhos advindos da chegada da maturidade.

Isso evidencia a flexibilidade do aparato cinematográfico e, consequentemente, sua participação na redefinição de modelos simbólicos.

A subversão do olhar em Irina Palm

Ao apontar para a possibilidade de novas formas de representação do envelhecimento feminino no cinema, que se distanciam das convenções patriarcais hegemônicas e preservam o prazer fílmico, nota-se que essas novas produções de sentido podem trabalhar no intuito de apropriar-se do uso de estereótipos, em um sentido subversivo.

Aqui, pode-se caminhar em direção a outra reflexão: se os estereótipos funcionam (e até certo ponto são necessários à narrativa, à identificação e ao envolvimento do espectador), poderiam eles então contribuir para uma leitura contradiscursiva da obra?

Baseando-se novamente nos conceitos de Goffman (1985), em relação ao que aqui se denominou de “expressões cinematográficas dadas” (explícitas) e “expressões cinematográficas emitidas” (implícitas), é que essa possibilidade de subversão aparece, estabelecendo-se quando os elementos fílmicos e técnicas cinematográficas não se encontram de maneira “harmônica” no decorrer da película, quando não se completam dentro de um processo de significação institucionalizado e sofrem contradições ao longo da projeção (figurino x iluminação ou cenário x figurino). Isso acaba por permitir uma leitura irônica e/ou crítica da personagem (apresentada inicialmente de forma estereotipada e posteriormente de forma contraditória), em uma narrativa de contestação dos modelos simbólicos vigentes que funciona justamente a partir da constituição de determinados estereótipos (identificação/espírito crítico).

Daí pode-se chegar à reflexão de que os estereótipos só podem ser considerados “negativos” quando não são subvertidos, ou seja, quando são apresentados como uma realidade única e imutável da identidade da personagem, definindo seu lugar de fala diante de um “superior”.

Para integrar essas reflexões, e valendo-se da cinematografia ocidental contemporânea, o filme Irina Palm apresenta-se como exemplo relevante dessa possibilidade de subversão.  O longa-metragem de ficção, dirigido por Sam Garbarski e lançado no ano de 2007, conta a história Maggie (Marianne Faithfull), uma mulher de cerca de 60 anos, viúva, em busca de dinheiro para o tratamento de seu neto, Olly (Corey Burke), que tem uma doença grave. Para isso, aceita trabalhar em um sex club, Mundo Sexy, do subúrbio londrino onde mora. Sua função é masturbar homens em uma cabine, mantendo anônima sua identidade (a cabine possibilita aos clientes apenas o acesso às mãos das funcionárias). Ela se transforma na principal atração do local e recebe o nome artístico de Irina Palm.

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Por meio da análise da obra, procurou-se a seguir identificar aspectos contradiscursivos no que se refere à representação do envelhecimento feminino em Irina Palm, evidenciando elementos explícitos e trazendo à tona elementos implícitos que, conjugados, permitem uma leitura subversiva desta obra cinematográfica. Esses elementos correspondem aos sentidos da função semântica, na montagem e na narrativa cinematográficas, colocados por Aumont (1995), e que evidenciam o aspecto denotativo (explícito no espaço fílmico e que produz um significado imediato) e o aspecto conotativo (implícito no espaço fílmico, que relaciona elementos diferentes para produzir um efeito e um segundo significado).

A intenção é estabelecer conjecturas em relação ao que esta narrativa cinematográfica exprime, tendo em mente que os produtos cinematográficos são também produtos culturais e, portanto, estão inseridos dentro de um determinado contexto sócio histórico. Busca-se assim uma interpretação, sobretudo, sociocultural, evidenciando que os filmes relacionam-se a outros setores de atividade da sociedade que os produz.

“Dê-me suas mãos”: o toque suave da transgressão

Viúva, solitária, idade avançada, um relacionamento conflituoso com o filho, Tom (Kevin Bishop) e com a nora, Sarah (Siobhan Hewlett), um afeto especial pelo neto gravemente doente. Assim, Maggie, moradora de um conservador subúrbio londrino, é apresentada ao espectador de Irina Palm. Os conflitos que envolvem a personagem, logo nas primeiras cenas, parecem apontar para uma narrativa familiar ao público de cinema: a velha senhora que, após o casamento do filho e a morte do marido, mergulha em seu ninho vazio do qual emerge somente para um superficial “chá da tarde” com as amigas. Vitimizada, de profundo e concreto resta-lhe apenas um único afeto correspondido, porém ameaçado por uma fatalidade: o perigo da morte, mas que, como Maggie descobrirá depois da experiência de se tornar Irina Palm, também representa o nascer de uma nova vida.

Diante do hiato afetivo que se estabelece entre a protagonista e seu filho, é a relação com o neto que parece dar sentido à vida de Maggie, relação essa que funciona como fio condutor para uma narrativa que passa do convencional ao transgressor. A falta de recursos dos pais para pagar o tratamento de Olly envolve a personagemem uma busca inédita por trabalho formal, fazendo com que a até então “dona-de-casa” se aventure pelas ruas do subúrbio londrino apenas para confirmar o esperado: as constantes recusas dos empregadores devido à sua falta de experiência profissional e idade avançada.

No entanto, é frente aos resquícios de práticas patriarcais que afirmam a submissão feminina, intensificam o culto ao corpo e recusam o velho que o esperado vai de encontro ao inusitado.  “Dê-me suas mãos”, diz o proprietário do estabelecimento Mundo Sexy, Mikky (Miki Manojlovic), a Maggie quando, devido a um mal entendido, a protagonista adentra o sex club e se oferece para trabalhar como recepcionista. Naquele instante, a suavidade das mãos da protagonista ofusca as convenções que relacionam obrigatoriamente sexualidade à imagem de juventude, prazer à beleza física padronizada. Naquele instante, Maggie entrega suas mãos para ganhar autonomia sobre seu próprio corpo, para libertar-se do controle social como Irina Palm e para, na busca por salvar a vida do neto, desfazer os tabus que até então a ligavam ao mundo e a si mesma.

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A partir de então, a mulher vitimizada vai dando lugar a uma mulher ativa, astuta e aberta a novas experiências. Como Irina Palm, Maggie torna-se autora de sua própria vida, talvez pela primeira vez. Contraditoriamente, a protagonista parece apropriar-se de uma cultura patriarcal que explora o corpo feminino como objeto do desejo masculino, para devolver a essa mesma cultura, criticamente, o seu reverso: a mulher que, consciente da transitoriedade e incompletude de estar objeto, torna-se sujeito. E, tornando-se sujeito, dá voz ao seu corpo para que ele trabalhe conscientemente a favor de seus desejos e afetos.  

Indo além, pode-se dizer que o filme insinua uma inversão dos padrões hegemônicos comumente identificados nas representações de gênero, permitindo, a partir das estratégias da narrativa clássica, que o espectador se identifique com o olhar feminino. Embora as mãos de Irina Palm representem no filme o corpo fragmentado, que atende aos desejos masculinos, são os protagonistas desses mesmos desejos que aparecem no filme objetificados, simbolizados apenas pelos seus órgãos sexuais e desprovidos de qualquer subjetividade. Em contrapartida, a complexidade identitária de Irina Palm, poupada aos inominados é revelada ao público. As mesmas mãos que, para os personagens masculinos anônimos, aparecem recortadas, como objetos de desejo, são para o espectador as velhas mãos que se ligam a um corpo e seus sentimentos. Para muito além de sexualizadas, são para o público do filme mãos que trabalham e que, naquele momento, encaram o corpo masculino como ferramenta produtiva de sentidos afetivos.

Essa passagem do olhar masculino para o olhar feminino na narrativa, que direciona o ponto de vista do espectador, pode ser simbolicamente representada pela cena na qual a ainda Maggie, ao conhecer a cabine na qual trabalhará, espia pelo pequeno orifício que lhe dará acesso às genitálias masculinas no decorrer do filme. Aqui, a escopofilia, ou, conforme os conceitos freudianos, o prazer de olhar os demais sem ser visto, representada no cinema hegemônico pelo ato voyeurista dos personagens masculinos de observar o corpo feminino por uma pequena abertura (um rombo em uma porta ou o buraco de uma fechadura ), é ressignificada. Em Irina Palm, quem espia, não por prazer ou desejo, mas por curiosidade, é a mulher. Nesse momento, a imagem apresentada ao espectador, embora em câmera subjetiva do ponto de vista masculino (ou dos personagens anônimos que se colocam do outro lado da cabine), é inusitada: o que aparece na tela não é a sensualidade estática do corpo feminino jovem, centro das atenções para a apreciação masculina, mas sim, um rosto feminino envelhecido que, emoldurado pelo orifício da cabine, parece investigar e procurar respostas para o desconhecido.

Interessa aqui colocar que essa leitura narrativa, possível de ser extraída do filme, e que determina um olhar mais plural e transgressor sobre as subjetividades femininas representadas pela narrativa cinematográfica, evidencia-se a partir de uma identificação inicial do espectador com a personagem, por meio de construções identitárias familiares e estereotipadas (a “mãe dona de casa”, a “viúva solitária”), e pela subsequente utilização criativa dos elementos narrativos e técnicas cinematográficas no decorrer do filme, construindo novos sentidos a partir do convencional.

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Assim, na medida em que Maggie vai se adaptando ao novo trabalho, dá-se vazão a uma outra identidade da personagem: Irina Palm, identidade essa que, longe de ser excludente, se mescla à inicial. Essa complexidade identitária é reforçada na edificação e transição dos cenários, contraditórios (ambiente familiar/casa de Maggie x ambiente transgressor/sex club), mas que passam a se encontrar e se (re)combinar no decorrer da narrativa.

Determinada e envolvida com a nova profissão, Maggie decora seu ambiente de trabalho com objetos retirados de sua casa (quadros, porta-retratos, vasos de flores). Parece que a intenção nessa superposição de cenários convencionalmente contraditórios é permitir que se capte a fluidez com que a personagem passa a transitar pelos ambientes que frequenta, tornando-os todos adequados às suas múltiplas identidades e possibilitando o despertar de um olhar crítico do espectador a respeito de comportamentos que, tradicionalmente, são orientados como contraditórios. 

Essa escolha cenográfica relaciona-se ainda à valorização daqueles objetos que Bosi (1983) denomina de “objetos biográficos”, ou seja, todos aqueles que envelhecem com o dono e que representam suas “aventuras afetivas”. Em contraposição aos “objetos de consumo”, descartáveis, transitórios, efêmeros, os “objetos biográficos” são duradouros e produzem sentidos.   

Assim se, para Maggie, por um lado, o trabalho no sex club tem uma dimensão objetiva (fonte de remuneração dentro da estrutura capitalista), por outro traz também uma dimensão subjetiva. Decorar seu ambiente de trabalho com “objetos biográficos” passa a ser, então, uma tentativa da protagonista de transitar com mais leveza entre subjetividade e objetividade, funcionando essas duas dimensões do trabalho como intercursos para as suas identidades.

Diferentemente de uma autonomia liberal, individualista, cujo objetivo é permitir que os sujeitos galguem, pela acumulação monetária, novas posições sociais dentro de uma dada estrutura de poder e de valores, a autonomia produtiva da protagonista é crítica, contestadora: é o corpo feminino velho que escolhe se vender para o prazer masculino, mas se vende porque é capaz, por meio do trabalho, de produzir sentidos para além da exploração do homem pelo homem.

Ainda no que se refere à seleção de pontos de vistas cinematográficos em Irina Palm, percebe-se que a iluminação “quente” do sex club, contraposta ao figurino de Maggie (iluminação x figurino), também aponta para essa visão multifacetada na representação da personagem. O tom avermelhado da iluminação (característica de seu ambiente de trabalho), que no início contrasta com a aparência envelhecida da protagonista e suas roupas escuras e fechadas, vai se tornando familiar a ela na medida em que um outro lado de Maggie vai sendo mostrado. O lugar não é mais visto pelo espectador como um ambiente totalmente estranho à personagem.

Assim, diante desse trânsito fluido por identidades, o conselho da colega de trabalho Luisa (Dorka Gryllus) que, ao surpreender Maggie decorando o ambiente, adverte: “Separe-as, Maggie, separe-as”, parece impossível de ser seguido. Como separar o inseparável? Como evitar que a sensibilidade de Maggie dê sentido à existência de Irina Palm, se é a própria afetividade que dá corpo ao exercício da transgressão? Como impedir que a liberdade e a força de Irina Palm inundem a vida de Maggie, se já não é possível a ela mesma permanecer enclausurada na redoma conservadora que durante tanto tempo a aprisionou? Para a protagonista, parece incoerente separar o contraditório, quando o diálogo entre os opostos enriquece e liberta. Ao subverter dicotomias, Maggie abre as portas das delicadas prisões que a limitaram aos rótulos de “esposa-mãe” e de “viúva-solitária”, para redescobrir o aconchego, agora inquietante e obsceno, de expandir-se como a “mãe-puta” e a “viúva-punheteira”.

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A atitude conservadora se rende então, ao final, à perspectiva libertadora da mulher que, determinada, aceita sua transformação. Maggie não esperava que, ao alcançar seu objetivo inicial, conseguir financiamento para evitar a morte do neto, também evitaria a própria morte, renasceria. Maggie agora não é mais simplesmente Maggie. Também não é simplesmente Irina. Transformou-se para, em uma mescla de subjetividades simplesmente ser, assumindo todos os seus desejos, acertos, falhas e contradições.

“Fraco como um chá”: ternas prisões e a força libertadora dos afetos produtivos

Segundo Brah (1996), as identidades estão intimamente ligadas às experiências, subjetividades e relações sociais, sendo marcadas pela multiplicidade de posições de sujeito que podem constituir o próprio sujeito. É nesse sentido que Irina Palm procura apresentar a coexistência de discursos e matrizes de significado na representação do feminino.

No filme, essas “posições de sujeito” vão além da contradição, manifestam-se em um paradoxo que parece ter seu alicerce no exercício dos afetos. Se, por um lado, esse exercício oprime e aprisiona (no início do filme, Maggie, mesmo após a morte de seu cônjuge e a consequente libertação de um casamento já desgastado pelas traições do marido com a suposta amiga, se mantém na passividade afetiva que a liga a seu filho) por outro, pode ser também um exercício libertador: é a força do afeto por Olly que a leva à ação, dando vazão à sua nova identidade como Irina Palm.

É essa possibilidade de liberdade apresentada no filme que Negri (2001) denomina de “valor-afeto” ou de uma “potência de agir” capaz de mover os indivíduos. De acordo com o autor, hoje não se pode mais separar os afetos da produção, da geração de riquezas ou de qualquer outra atividade da sociedade que resulte em um valor. Indo além, ele coloca que esses afetos, que constituem o cerne de todas as realizações humanas, determinam também uma potência expansiva, um “não-lugar” que a economia, a política, os discursos autoritários não conseguem controlar por completo. As afetividades funcionam, nesse sentido, como potências libertadoras, podendo promover mudanças sociais e o exercício de práticas que se contrapõem às orientações hegemônicas.

Assim, Maggie se movimenta, subverte comportamentos, se refaz, delineia novos caminhos, tendo como motor o afeto que nutre pelo seu neto, afeto esse que se expande: para a aproximação afetiva com a nora, para um início de contato mais profícuo com o filho, para o relacionamento amoroso com Mikky.

Nesse sentido, é na relação que se desenvolve entre a protagonista e o dono do sex club que, conforme a análise de Neves (2007) sobre os conceitos elaborados por Anthony Giddens – evidencia-se uma transição do modelo de “amor romântico” para o “amor confluente”.

Essa transição está diretamente associada com as transformações operadas no estatuto social das mulheres, transformações essas que decorrem da exigência de homens e mulheres partilharem relações íntimas igualitárias. O “amor confluente” diz respeito então à tendência para um comprometimento afetivo e emocional igualitário entre os sexos (NEVES, 2007, p. 620).

Ainda, de acordo com Neves (2007), essa contribuição evidencia a emergência de discursos e práticas sociais alternativas que repõe a possibilidade de uma consciência social mais comprometida com os valores da igualdade. Aqui o amor é considerado com um “motor de ação social” que permite construir novas relações sociais.

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Nessa realidade, o resgate dos valores afetivos combinados a uma maior liberdade pode subverter tanto uma lógica patriarcal ainda presente de forma velada, como uma lógica consumista/imediatista característica dos tempos atuais. Ressignifica-se, assim, o amor no diálogo entre os gêneros e na efetiva interação do “eu” com o “outro”. O amor que aqui sobressai é o amor que cresce a partir da igualdade, mas que também afirma diferenças: no encontro dialógico de subjetividades, na construção singular de uma relação amorosa que se evidencia na criação de códigos distintos dos convencionais.

Conforme colocado por Negri (2001), “A vida é uma prisão quando não a construímos e quando o tempo da vida não é apreendido livremente.” (NEGRI, 2001, pag.21). Apreender o tempo da vida livremente significa, para o autor, viver as paixões positivas, que libertam as relações e que determinam a alegria.

O amor construído entre Maggie e Mikky parece então liberar o casal das “prisões sociais” de gênero, apresentando possibilidades de realização amorosa diferentes das institucionalizadas.

Feminino e masculino apresentam-se no filme como instâncias que contém uma a outra. A tradicional feminilidade inicialmente predominante em Maggie - marcada por traços como o do acolhimento e da unidade - e a tradicional masculinidade inicialmente predominante em Mikky – marcada por traços inerentes à objetividade e fragmentação - tornam-se móveis, ou seja, presentes em proporções variadas nos dois personagens. Antes única e estável, a identidade da protagonista se fragmenta, subverte-se em Irina Palm, ainda afetuosa, mas agora determinada, ativa e objetiva. Mikky, antes rígido e obstinado por seu trabalho, se rende a uma inesperada sensibilidade, aparentemente incomum aos experientes empresários do sexo.

É a partir desses outros sentidos afetivos que a autonomia produtiva feminina ganha força na narrativa. Maggie se destaca por seu trabalho, sendo disputada entre o sex club Mundo Sexy, de Mikky e o Sex o Roma, de Dave (Jonathan Coyne). Aqui, pode-se recorrer novamente a Negri (2001) quando este ressalta que as afetividades que ressignificam as relações humanas, constituem também parte fundamental da força produtiva nas sociedades contemporâneas, onde o feminino possui função especial. O autor entende que, se a ferramenta de trabalho está encarnada no cérebro (que representa o racional, o masculino, durante muito tempo considerado o único meio de produtividade legítima), esse mesmo cérebro faz parte do corpo e, portanto, relaciona-se a tudo o que pertence ao “sentir” (ao emocional, ao feminino, durante muito tempo excluído dos processos de produção). Ao apropriar-se da ferramenta de trabalho/cérebro (razão), os indivíduos colocam a própria vida em produção, já que, ligada ao corpo (emoção), ela passa a exprimir-se por meio das “potências de viver”, ou seja, dos afetos.

Dessa forma, o trabalho no sex club apresenta-se, para Maggie, como uma forma de produção de subjetividades (o trabalho como expressão de afetos, ou seja, de potências de viver), o que se contrapõe às tradicionais visões de passividade e inatividade feminina, sobretudo na velhice.

Por fim, são essas produtividades afetivas que, em Irina Palm, contrastam com a improdutividade e inércia que limitam a criação feminina. Ao assumir, para as amigas de “chá da tarde” sua identidade como Irina Palm, Maggie ironiza a hipocrisia de uma sociedade que julga, a portas abertas, o diferente, e trata, a portas fechadas, as próprias contradições.  “Fraco como um chá” é a forma com que Maggie se refere ao seu marido, Trevor, ao revelar à sua “amiga de chá” e parceira nos antigos jogos de cartas, Jane (Jenny Agutter), que tem conhecimento do relacionamento que ela teve com ele. “Fraco como um chá” é também a metáfora que Maggie encontrou para o insustentável moralismo patriarcal e para a precariedade dos tabus sexuais que valorizam a submissão feminina. Frente à força subversiva de Maggie/Irina, fracas como um chá parecem ser todas aquelas que insistem em se afirmarem Janes.

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Reflexões finais

Dentro do contexto contemporâneo, a negação do envelhecer, ancorada pela cultura de consumo e pelos estilos de vida proclamados pelas grandes mídias, parece ter um impacto diferenciado e por vezes mais intenso na construção identitária feminina. À valorização dos papéis de esposa e mãe, herança de uma sociedade patriarcal, conjuga-se a busca pela manutenção do corpo perfeito, principal instrumento de conquista e sedução da mulher tendo em vista o olhar masculino.

Assim, os processos de perda relacionados ao envelhecimento, sobretudo na mulher pertencente às sociedades ocidentais, evidenciam-se nas condições a que estão submetidas grande parte dessas mulheres, seja em relação ao trabalho (situação de dependência financeira, subemprego, baixos salários), ao casamento (processos de perda dos filhos, separações, viuvez) ou ao corpo (sinais estigmatizantes que as tornam menos atraentes fisicamente).

No entanto, a despeito dessas práticas sociais que reforçam comportamentos femininos convencionais, é possível compreender que, apesar da prescrição normativa patriarcal, existem mulheres que a subvertem e inventam novas relações na cotidianidade de suas experiências, contrárias ao discurso hegemônico patriarcal ainda existente no imaginário social (NARVAZ e KOLLER, 2006).

Novos discursos e novas formas de representação cinematográficas emergem então na sociedade contemporânea, tendo em vista que essa mesma sociedade capitalista que define papéis femininos (esposa e mãe) e masculinos (sustento econômico da família), não fornece condições para o desempenho desses papéis.

Nesse sentido, o longa-metragem de ficção Irina Palm apresenta-se como um exemplo significante de subversão de estereótipos, abordando criticamente o que normalmente se vê nas produções hegemônicas ocidentais. O filme aponta, assim, para uma representação que vislumbra a possibilidade de reação/realização da mulher em processo de envelhecimento dentro de realidades hegemônicas, por meio da valorização dos afetos libertadores, que se conjugam às novas descobertas e novas experiências femininas possíveis.

É essa capacidade de agir, percebida em Irina Palm, que traz em si um caráter subversivo, transformando as afetividades em infrações às orientações patriarcais e aos comportamentos efêmeros característicos de uma cultura de consumo. Se, conforme Barthes (2207), por ser anacrônico, fora de moda, o amor é obsceno, então a obscenidade de Maggie/Irina reside menos na exploração da sexualidade feminina para o gozo masculino, do que nos investimentos afetivos simbolizados pelo trabalho de suas mãos.

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