Epistemologias e metodologias de pesquisa emergentes em educação e artes: Para uma conscientização do que (nos) é possível fazer em formação avançada.

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Epistemologias e metodologias de pesquisa emergentes em educação e artes: Para uma conscientização do que (nos) é possível fazer em formação avançada.

Leonardo Charréu

Universidade Federal de Santa Maria

Resumo

Se, dentro do amplo espectro daquilo que poderemos entender como “conhecimento”,  as artes ocupam um lugar muito peculiar, pela natureza e pela especificidade dos seus temas, problemas e dilemas, então porque lhe deveremos impor modelos racionalistas pensados para  uma concepção de realidade e de verdade bem diferentes daqueles que circunscrevem o mundo extraordinariamente instável e inquieto dos artistas?

Esta questão de partida leva-nos a um outro posicionamento, quando pensamos e consideramos as artes mais como um fenómeno intrinsecamente social do que fruto de uma romântica inspiração individual. Se o que marca uma época, como a nossa, é a sua instabilidade e incerteza, em que “tudo o que é sólido se desmancha no ar” (uma recuperação de uma frase emblemática do famoso manifesto do longínquo ano de 1848), então a educação, como fenómeno igualmente social que é, deve adaptar-se a novas estratégias investigativas que dêem conta das novas formas de pensar que estão reconfigurando as sociedades humanas- e os fenómenos que no seu interior ocorrem - nesta segunda década deste novo milénio, por sinal, ele próprio bem instável.

Palavras chave: Epistemologia, Arte Educação, Metodologias de Pesquisa baseada na Arte

“Um método excelente acaba por perder a sua fecundidade se não renova o seu objeto” (BACHELARD, 1995, p.17)

"Mas um método puramente mecânico, que não exige ao espírito de invenção nenhum esforço, não pode ser realmente fecundo." (BACHELARD, 1995, p. 142)

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Introdução

O que nos interessa debater neste texto são as questões que atravessam e embasam, talvez de modo peculiar, a constituição de uma parte de nossa humanidade. Em particular, pugnamos por conseguir articular perguntas e questões que ajudem a nos constituirmos como seres mais conscientes dos papéis que teremos que assumir neste tempo que nos tocou viver.

Talvez a arte de hoje, ou, pelo menos, muitas das suas manifestações mais ousadas e instigantes, mais não faça do que assinalar essas balizas que servirão de guia ao nosso caminho. Por isso, talvez consigam fazer algo mais por uma determinada apreensão e compreensão do mundo do que as outras actividades humanas.

Se a educação parece ainda constituir-se como esse vector necessário capaz de inocular, paritária e democraticamente, esse bom vírus da arte em todo o tecido social, em doses que não sejam mortais (sobretudo em geografias longínquas e periféricas, sem acesso directo à cultura) então deveremos promover e melhorar tanto quanto possível essa ligação entre arte e educação. E a pesquisa, na sua incomensurável amplitude, servirá para demonstrar a exequibilidade (ou não) e a potencialidade deste binómio arte/educação em toda a sua diversidade.

No entanto, dada uma série de condicionalismos que tentarei dissecar ao longo do texto, as metodologias, que são elementos estruturantes e iniludíveis de qualquer pesquisa, se forem bem escolhidas, tanto podem facilitar a elaboração de uma narrativa de pesquisa que acrescente efectivamente algo ao território arte-educacional, como podem enredar o pesquisador numa teia absolutamente insignificante. Isto, se ela for mal escolhida, se for “imposta de fora” (essa tentação do orientador!), ou pura e simplesmente se emergir interlaçada na própria pesquisa e escrita, o ininteligível, sem que pesquisador e supervisor se dêem conta disso.

Pensar criticamente a partir das imagens do cotidiano

Esta proposta de comunicação teve múltipla inspiração. Por um lado, um conjunto de preocupações e interesses do seu autor tendo como pano de fundo o importante tema das metodologias de pesquisa (absolutamente inevitáveis quando se leciona e se investiga nos programas de pós-graduação), por outro lado, a interação que um encontro fortuito com uma dada produção artística, no campus universitário da UFSM, produziu neste mesmo autor há algum tempo atrás (finais do segundo semestre de 2013).

Essa experiência permitiu “apropriar-se” fotograficamente (essa facilidade tão omnipotente dos celulares) de um texto-mural, impresso numa vedação de um edifício em obras junto ao Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria. E essa apropriação parece ilustrar o que muitos professores universitários que orientam projetos de pesquisa conducentes a mestrado ou a doutorado, têm vontade de dizer aos seus orientandos nos momentos iniciais da pesquisa (voltaremos a este tema em um momento mais à frente).

Figura 1: “Permissão concedida mas não para fazer o que você quiser”. Universidade Federal de Santa Maria, Campus de Camobi, Centro de Educação. Intervenção do coletivo de artistas de Santa Maria C.D.M - Centro de Desintoxicação Midiática, 2013. “Permissão” de publicação concedida pelos artistas.

Esse texto dizia (Ver Figura 1) em letras de caixa alta, com uns 60 cm de altura, realizadas a spray de lata, com a técnica do stencil: “Permissão concedida, mas não para fazer tudo o que você quiser”. Desenvolvia-se ocupando três linhas, em cor negra sob um fundo branco, preparado sob os painéis de aglomerado de madeira que serviam de muro de proteção ao estaleiro de um edifício novo, em construção. Hoje, esse edifício já está edificado e o muro, efêmero, com essa intervenção, já não existe. Ficou a fotografia para testemunhar e para contar.

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Ainda que uma “obra” com estas características não escape, naturalmente, a interpretações variadas, como qualquer obra de arte pública afinal, acredito que as intenções do(s) artista(s) tivesse(m) sido a de contestar(em), ou confrontar(em), uma falsa atitude de tolerância de quem ocupa a hierarquia de poder, para com um pedido de intervenção no espaço público pertencente à universidade.

Este trabalho merece destaque porque pressupõe uma atitude criativa e reativa interessante que levou, provavelmente, ao abandono, por parte do(s) artista(s), da ideia original de intervenção nesse muro. Fica-se então com a impressão de que, na parte final do processo, favoreceu-se e optou-se por uma intervenção textual, conceitualizada a partir do jogo de linguagem que se pode deduzir de uma resposta das autoridades acadêmicas da Universidade a um simples e inocente pedido de autorização.

O que se torna interessante nesta intervenção é que o(s) artista(s) viu (viram) mais potencial artístico nos efeitos que uma determinada ironia poderia produzir no observador do que nos hipotéticos efeitos estéticos que uma intervenção, digamos mais clássica, poderiam provocar no espectador. Parece pois que o que foi pensado inicialmente – imaginemos um mural mais ou menos figurativo – não foi realizado, tendo-se optado por utilizar um frase enquanto obra, numa deriva, ou preferência, por um posicionamento ou atitude mais política (a contestação ou denúncia de uma certa liberdade vigiada e limitada) do que estética.

Todo o sistema acadêmico de formação avançada, por muito que se negue a admiti-lo, coloca também o jovem pesquisador – mestrando ou doutorando – perante uma espécie de liberdade vigiada. Ele pode ter uma permissão de pesquisa e, naturalmente, ele obtem tacitamente essa permissão depois de frequentar um determinado numero de créditos curriculares,  mas não para pesquisar sobre tudo o que ele quer (ou desejaria).

Dos projetos de pesquisa exequíveis aos projetos irrealizáveis

A frase que serviu de mote às nossas reflexões anteriores poderia ser exatamente transferida para uma situação de orientação entre um mestrando, ou doutorando, e um professor supervisor de pesquisa. Em particular, nos primeiros momentos de definição do objeto e objetivo da pesquisa, da opção por uma metodologia mais particular, ou mais tradicional, pela seleção do referencial teórico que haverá de dar consistência e coerência à pesquisa.

Com frequência chegam aos programas de pós-graduação pesquisadores jovens (e menos jovens!) com projetos de pesquisa que, pelas condições pessoais do pesquisador, quer em termos de gestão familiar, de organização do espaço/tempo (vivem muito longe da Universidade/Centro de Pesquisa, não conseguiram dispensa de  obrigações profissionais, etc.) quer em tempos de background científico (falta de leituras teóricas aprofundadas, proveniência acadêmica de outra área, afim da pesquisa, mas descontextualizada com as novas correntes existentes no campo), procuram alavancar pesquisas que nunca vão poder controlar e dominar no tempo limitado que têm para vencer as fases que o programa exige, desde a frequência curricular, até ao momento de defesa final (com os  prazos regulamentares para defesa púbica das teses e dissertações a constituirem-se como elemento pressionante e até por vezes mesmo “odiado”). Por isso há projetos claramente irrealizáveis quando se atende a essa série de fatores elencados acima. E o melhor que os orientadores têm a fazer é elucidar, com toda a frontalidade, a impossibilidade de uma dada ideia de pesquisa poder algum dia vir a desenvolver-se dentro do campo altamente regrado e regulamentado que é o da pós-graduação no Brasil e em muitos países do mundo.

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O que podemos deduzir (ou aprender. Aprender?Não seria melhor sentir!) de um poema sobre esse conflito, mais ou menos latente, ou que por vezes emerge, numa determinada fase da pesquisa, entre orientador e orientando, queimando o terreno entre os dois, minando a confiança de um no outro, enfim, dificultando um relacionamento de compromisso e partilha que não terá como não se projetar posteriormente na qualidade da pesquisa produzida.

Cântico negro

José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.

- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou..
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Daí que o poema que se usa para tensionar este texto, possa ser sempre lido, interpretado, ou vivido de duas formas antagônicas. Pode veicular uma teimosia, geralmente conflituante, por parte do jovem (ou menos jovem, como por vezes acontece) pesquisador, em seguir um determinado caminho de pesquisa. Quando “todos” parecem ir por “outro” lado (leia-se outra metodologia, outro referencial teórico, outra temática, etc.), ele, pesquisador, ainda que inseguro da via que tem que seguir, quer ir pelo “seu” caminho, que é completamente diferente do percurso da maioria.

Ou, ao invés, podemos interpretar o poema, tendo como pano de fundo os momentos iniciais de arranque de uma pesquisa acadêmica, como o momento em que o pesquisador está na posse de uma certeza e de uma confiança inabalável, tendo bem consciente da dificuldade da tarefa que se lhe apresenta pela frente. Ele não sabe explicitamente por onde vai, mas quando sabe que não vai por “aí”, acaba por revelar nessa recusa, afinal, uma pista que poderá indicar por onde poderá ir. Corresponde a um estado de desorientação apenas tácita e que se pode aceitar tranquilamente quando, bem o sabemos, muitas metodologias, das quais se falará mais adiante (como a Grounded Theory, a Cartografia e a A/r/tografia, entre outras) preferem até que não se tenha totalmente definida, no início da pesquisa, a todo poderosa “pergunta da pesquisa” mas apenas uma problemática, ou temática, ainda difusa, aos quais, a pesquisa, sempre em progresso, por vezes auto-organizada e auto-fundamentada, se encarregará de lançar um cone de luz.

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Por isso, pode parecer cientificamente incorreto um professor supervisor científico delimitar as possibilidades de pesquisa de um jovem mestrando ou doutorando. Reclamar-se-á por liberdade acadêmica. Mas também é verdade que ele, orientador, conhecerá melhor que ninguém o campo de pesquisa, assim como as suas limitações e as suas dificuldades. Por outro lado, uma pesquisa exequível, isto é, que possa efetivamente  realizar-se, situa-se sempre dentro de uma balizagem definida entre o que é desejável e o que é possível.

O que se apresenta a seguir procura, de algum modo, reduzir a angustia e ansiedade dos jovens pesquisadores que chegam aos programas avançados de estudos na universidade. Em particular aqueles que se situam num “entre-lugar” científico, disciplinar e epistemológico, que faz com que não pertençam, em bom rigor, a nenhuma área disciplinar concreta, mas a uma campo bi-disciplinar, como o é o da educação e arte ou da arte educação. Às vezes, até, tri-disciplinar  ou, definitivamente, multidisciplinar, que é o campo poroso definido pela arte, pela educação, pela sociologia (da cultura) pela sociopsicologia, pela antropologia (não necessariamente por esta ordem) e por muitas mais disciplinas que, de forma crescente, tendem a transversalizar-se partindo de temas e de problemáticas comuns.

Epistemologias de fronteira para compreender a transversalidade disciplinar

Parece importante, antes de mais, aclarar conceitualmente, quer a epistemologia, quer a metodologia enquanto entidades fundamentais de qualquer pesquisa científica. Quer transitemos pelo campo qualitativo, quer  adotemos a plataforma quantitativa de pesquisa, a confusão, um tanto ou quanto comum, entre epistemologia e metodologia, exige, portanto, um esclarecimento cuidadoso da especificidade de cada uma delas.

À epistemologia compete a problemática inerente aos fundamentos teóricos («razão de ser») e estruturais («modo de ser») da ciência, ou do campo de conhecimento onde transitamos. Enquanto à metodologia se ligam precisamente as questões relativas aos procedimentos que a ciência em geral segue na determinação daquilo que é designado como «fato científico», e que em educação e arte, e nas ciências humanas em geral, pode ser designado como descobertas (“findings”) ou resultados (“outputs”), que por não serem assim tão fatuais, e muito menos replicáveis universalmente, tornam as metodologias quantitativas inadequadas para pesquisar muitos dos vastos campos das ciências humanas.

Mas onde fundamentar então epistemologicamente as pesquisas atuais que emergem de um território tão alargado que vai da arte educação até às próprias práticas artísticas (mesmo as de ateliê) e destas ao campo expandido da Cultura Visual? No racionalismo, que afirma a razão como a única fonte de conhecimento e que considera que a realidade pode, por princípio, ser apreendida pela nossa capacidade mental. Ou no empirismo, que defende que as percepções sensoriais e as experimentações concretas no contacto do sujeito com o mundo, são a única fonte e a derradeira pedra chave do nosso acesso ao conhecimento. Haverá ainda alguma algum terceiro lugar onde possamos fundamentar o conhecimento da cultura visual que possa escapar do binarismo centrípeto racionalista-empirista?

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A tendência para um embasamento empiricista destas epistemologias conectadas ao mundo da arte educação, parte do princípio de que é fundamental viver a experiência, “colocar as mãos na massa” inspirados, longínquamente, pelas permissas de John Dewey (1934) e Herbert Read (1943) . No entanto, nunca antes como hoje se fala tanto numa epistemologia de fronteira, onde os fundamentos teóricos tendem a enraizar-se em campos de conhecimento próximos que se unem pelas temáticas comuns que atravessam, por vezes inexoravelmente,  esses campos. Epistemologia(s) de fronteira porque  na verdade são plurais e entrelaçam diversos territórios do conhecimento e da experiência humana. E por isso mesmo não têm sido muito apreciadas em determinadas áreas da academia, em particular, naquleas onde impera a concepção disciplinar, restrita e fechada do conhecimento.

Poderemos utilizar “a construção subjetiva”, uma forte tendência nas pesquisas contemporâneas, como um dos exemplos mais emblemáticos em como um tema, ou problemática, poderia “atravessar”, ou melhor transversalizar, por uma série de áreas disciplinares, como sejam: a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, a Arte. A questão seria então o que cada área poderia contribuir para esse estudo, abdicando de qualquer veleidade hierárquica, ou posição de poder, sobre outra disciplina parceira qualquer, naquilo que seria um estudo transdisciplinar e não um estudo interdisciplinar. No primeiro obtem-se um conhecimento híbrido que, em regra, não pertence necessariamente a nenhuma das disciplinas “atravessadas”, sendo no entanto um produto comum e derivado de todas, enquanto que na interdisciplinaridade, fica sempre latente uma espécie de hierarquia disciplinar baseada e legitimada pela própria academia. Não é incomum, em muitos estudos (ou projetos) ditos interdisciplinares, que o papel das artes visuais seja, quase sempre, o decorativo ou ilustrativo, enquanto fica reservada para as disciplinas “maiores” um papel mais incisivo e de maior visibilidade.

Por fim, e adentrando já no campo das chamadas Metodologias Artísticas de Investigação(VIADEL, 2011; ROLDÁN & VIADEL, 2012), cuja caraterização (e nomenclaturas alternativas) se sintetizará mais abaixo, importa ressaltar que elas não podem deixar de nos colocar, logo preliminarmente, vários problemas, tanto de natureza epistemológica, como de natureza metodológica. É importante que os jovens pesquisadores se conscientizem desses problemas logo no início de suas pesquisas

Podemos destacar, pelo menos, três desses problemas que tendem a chocar com os embasamentos metodológicos das pesquisas quantitativas e, até, com muitos dos princípios gerais das pesquisas qualitativas (VIADEL, 2011, P.181). Consequentemente, é natural que reclamem e justifiquem a utilização de novas metodologias mais adequadas a um conhecimento, que sabemos ser bem particular e que circunscreve o campo da arte, da arte educação e áreas afins.

O primeiro desses três problemas ressaltados é o da pluralidade de linguagens de (re)presentação. O que coloca em foco o aspeto morfológico do produto da pesquisa: a dissertação ou tese. Isto é, a forma como a pesquisa se mostra física e visualmente ao seu leitor. Frequentemente apresentam-se “fora de formato”, com páginas desdobráveis, com texto sobrepondo imagens, com fios, costuras, papel de gramagem diferente, texto impresso em papel transparente, tecido (e outros materiais) no interior da paginação e, sobretudo, imagens. Na verdade, muitas imagens.  Busca-se, essencialmente, que não tenham uma função decorativa ou ilustrativa, mas que produzam um tensionamento com o texto, que tenham um valor e uma função per se.

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O segundo dos problemas é a complexidade semântica e a amplitude conotativa dos resultados. O cruzamento de linguagens, muito comum neste tipo de pesquisas, não pode senão trazer e desenvolver alguma (ou muita) complexidade semântica. Os resultados não se encerram em si mesmos e muito menos constituem um corolário final, ou uma única resposta relativamente ao objeto da pesquisa. Normalmente, há uma abrangência, ou melhor, uma interpenetração da pesquisa (que muitas vezes é intencionalmente procurada) em campos paralelos e áreas afins. Também é frequente os resultados acabarem por mostrar bem a dimensão transversal da pesquisa, que é uma das principais características deste tipo de metodologias.

Por fim, o terceiro problema, a flexibilidade dos dados empíricos, chama a atenção para várias aspectos fulcrais destas Metodologias Artísticas de Pesquisa. Não sendo expressos em números (como acontece tradicionalmente nas pesquisas quantitativas) ou em excertos de texto significativo (como é também comum nas pesquisas qualitativas normais) os dados empíricos tanto podem ser um conjunto selecionado de imagens (entenda-se, fotografias artísticas, e não-artísticas, desenhos, pinturas, ilustrações, colagens, técnicas mistas, etc.), como uma série de movimentos corporais realizados em determinado contexto. Considerar dados deste tipo pode implicar, concomitantemente, romper com os tradicionais “sistemas de interpretação” (análise de conteúdo, análise de discurso …) e adotar outros modos e outras estratégias hermenêuticas em seu lugar.

O conjunto de metodologias ou processos de pesquisa baseados nas artes que consideram, simultâneamente, a produção artística (do próprio pesquisador, ou de outro artista) como dado e como método, não deixarão, portanto, de expressar em diferentes níveis, as respostas, sempre contextuais, sempre moventes, dos pesquisadores relativamente aos seus “problemas de pesquisa”.

Perguntas que reclamam por novas metodologias de pesquisa no campo expandido da arte e da educação

Elencamos um conjunto de perguntas podem levar-nos a uma conscientização que torne mais ou menos claro que o binarismo metodológico quantitativo/qualitativo pode não enquadrar as respostas (se é que existem de fato) para o que se quer saber, ou experimentar, com essas perguntas.

  1. Qual é o lugar da "arte" numa "investigação com base nas artes”?

  2. Uma determinada força de uso, ou tradição de pesquisa, tende a utilizar a obra de arte (seja qual for o seu suporte) ora como elemento decorativo, ora como elemento ilustrador ou exemplificador de determinadas ideias ou conceitos. O lugar da arte é, em regra secundarizado ou menorizado em função de uma superioridade da narrativa e do texto (supostamente) científico, sobre o campo experiencial que uma obra de arte pode potencialmente oferecer. Algo que não esteja no texto, mas com o qual o texto possa dialogar e tensionar. Algo que friccione o sensível (não verbal) com o inteligível verbal. A adopção de tais perspectivas de pesquisa por vezes até privilegiam uma espécie de dimensão literária do texto (ESINER & BARONE, 2006) o que implica a ultrapassagem de determinadas ideias feitas sobre a predominância da racionalidade e da objetividade na linguagem científica.

    Considerada a literatura com uma das artes, a perspectiva literária adotada por muitas das pesquisas baseadas na arte é aquela que trata de conectar num relato as diferentes formas de experiência dos sujeitos, utilizando, para isso, formas literárias como a poesia, inserção de diferentes tipos de relatos, - inclusive de ficção – com a finalidade de que as histórias a que se referem não só contenham as experiências de quem fala mas que permitam aos leitores encontrar espaços onde vejam refletidas as suas próprias histórias (HERNÁNDEZ, 2013, p.47)

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  3. O que caracteriza as artes neste contexto? O que transportam consigo? Em que momentos da investigação?

  4. As artes neste contexto, em particular as artes visuais, têm tido uma utilização que se pode, em regra, caracterizar como ilustrativa, como já se disse acima, mas nas pesquisas baseadas na arte que ultimamente se têm vindo a desenvolver, crescentemente, em vários programas de formação avançada, as artes são uma componente paritária do texto, transportando ou apresentando algo de indizível, algo que, no fundo, está no substrato da sua própria existência enquanto produção humana para suprir a incapacidade expressiva humana (oral-verbal) de dar conta de um conjunto significativo da sua experiência no mundo.

  5. Como lidamos com as imagens? Sons? Movimentos corporais? Que usos lhes damos?

  6. Mitchell (1994) já afirmou que apesar de vivermos rodeados por imagens, nós não sabemos muito bem o que é uma imagem devido ao fato dela nos poder surgir sob uma míriade de “formas”, ou representações, que podem até, paradoxalmente, nem ser visíveis (como as imagens mentais, por exemplo). Daí que tenha proposto anteriormente (MITCHELL, 1987, p.70) uma espécie de taxonomia baseada em cinco grandes “famílias” de imagens (as gráficas, as óticas, as perceptivas, as mentais e as verbais) Apesar do esforço de classificação e catalogação, continuamos a ter dificuldades em utilizar imagens na pesquisa, não só como parte integrante, mas como parte intrínseca e operante da pesquisa. E para isso também tem contribuido a tradição acadêmica que sempre favoreceu, durante muitas décadas, esse uso funcionalista, ilustrativo e decorativo da imagem na materialidade da pesquisa.

    Com risco de voltar a repetir o que se disse atrás, as imagens, e tudo o que é imaterial (como os sons e os movimentos) quando usados como “dados” da pesquisa, tendem a assumir na maioria das pesquisas um papel de signo para apoiar uma narrativa textual quando, na maioria das vezes, o que reclamam é uma interpretação de uma outra ordem. Talvez até nem reclamem uma interpretação, dado que tal significaria colocá-las sempre sob uma perspectiva semiótica. Em certas pesquisas baseadas nas artes, o que as imagens solicitam ao leitor é uma capacidade de sentir  algo inexprimível verbalmente e que procura ultrapassar a limitação da própria linguagem para dar conta de determinadas características da experiência humana (EISNER, 1998). Esta percepção leva-nos à próxima pergunta.

  7. Em que medida as artes são uma porta que nos permite cruzar barreiras da experiência que tivemos e que de outra forma nos estariam inacessíveis?

  8. Para cruzar essas barreiras, precisamos então de sair da perspectiva tradicional logocêntrica, de separação do observador, ou leitor, do objeto observado ou lido. Neste caso, referimo-nos à “materialidade” da pesquisa realizada com arte (qualquer que seja) e ao que nela poderemos encontrar que nos aproxime de uma experiência que não pode ser apreensível dentro do eixo tradicional oral-textual-racional da comunicação humana.

  9. Em que medida a investigação pode (e deve) transformar-se? E transformar-nos?

  10. Com a resposta a esta pergunta fica ferida de morte outra das importantes permissas da pesquisa tradicional, que é a da suposta neutralidade do pesquisador face ao seu objeto de pesquisa, seja ele qual for. Nas metodologias de pesquisa emergentes baseadas nas artes começa a ser aceite, com naturalidade, que o pesquisador já não “será o mesmo” no final da pesquisa. E será tanto mais assim quanto mais vibrante, ousado e instigante for o seu projeto de pesquisa.

  11. Em que medida pode  a arte contribuir para o desenvolvimento humano?

  12. Apesar do esforço de pesquisadores (GARDNER, 1997) e organizações (COMISSÃO NACIONAL DA UNESCO, 2006) continuando e ampliando esforços de outros autores de há mais de meio século atrás (DEWEY, 1934, READ, 1943) parece evidente a importância das artes no desenvovimento humano. Talvez algumas dimensões e efeitos da arte sobre os indivíduos careçam ainda de alguma pesquisa, mas é inegável, ao longo do último meio século, a imensa produção acadêmica sobre o assunto. Se não consegue ser confirmatória de uma forma taxativa e definitiva é porque, tanto o(s) conceito(s) de arte, como a própria ideia de “desenvolvimento humano”, são idéias moventes e, como tal, dificeis de estabilizar numa relação de causa efeito.

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O que buscam os pesquisadores qualitativos? No que diferem os pesquisadores que utilizam as metodologias baseadas nas artes? Um sobrevoo pelas metodologias de pesquisa mais adequadas aos artistas

Se os pesquisadores das metodologias qualitativas “tradicionais” buscam explicações e predições sólidas e seguras, os pesquisadores que se baseiam na arte procuram sugerir novas formas de olhar os fenômenos educativos(BARONE & EISNER, 2006, p.96).

Nas últimas duas décadas um número crescente pesquisadores têm vindo a explorar as possibilidades de abordagem à pesquisa que na realidade, por explorarem a metáfora, os aspectos sensíveis e emocionais que, para além de outras dimensões, são artísticas em seu verdadeiro caráter. Essas novas abordagens são formas daquilo que tem sido  chamado de Pesquisa Educacional Baseada nas Artes, PEBA (ou ABER no orig. ing. Arts-Based Educacional Research).

No entanto, é preciso cumprir dois critérios para podermos afirmar que uma pesquisa educacional é baseada nas artes. O primeiro critério afirma que a pesquisa baseada nas artes está, naturalmente, relacionada com um objetivo frequentemente associado à atividade artística. A pesquisa baseada nas artes é concebida para facilitar o desenvolvimento de novas perspectivas pertencentes a determinadas atividades humanas, de natureza mais intuitiva e expressiva, que os outros métodos de pesquisa, mais racionalistas, deixam escapar.

O segundo critério sustenta que pesquisa baseada nas artes é definida pela presença de certas qualidades estéticas ou elementos de concepção (“Design Elements”, no orig. ing.) que interferem no processo de investigação e na redação do texto da pesquisa.

Quer as nomeemos de Metodologias Artísticas de Investigação (VIADEL, 2011), quer as denominemos de Investigação Baseada nas Artes (BARONE & EISNER, 2006; IRWIN, 2004, HERNÁNDEZ, 2008), Investigação Educacional Baseada nas Artes, Investigação Baseada na Prática (CANDY, 2006, SULLIVAN 2005) ou ainda a A/R/Tography (IRWIN, 2012; SPRINGGAY, IRWIN, LEGGO e GOUZOUASIS, 2008) o que de alguma maneira caracteriza transversalmente todas estas perspectivas de investigação é a ideia de que o conhecimento também pode derivar-se da experiência (EISNER, 1988; citado em HERNÁNDEZ, 2006) e que esta não se pode naturalmente configurar (em todos os seus contornos) logo no início de qualquer projeto de investigação que a contemple nos seus procedimentos.

Estas metodologias, estando ainda “quentes”, tendo começado no mundo universitário anglo-saxônico há relativamente pouco tempo, passaram entretanto para o mundo latino e já estão aí, encontrando-se, por vezes de forma hesitante, na sua fase de arranque, em muitos ambientes universitários de formação avançada.

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Referências

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Leonardo Charréu tem a graduação em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Mestre em História da Arte pela Universidade Nova de Lisboa. Doutor em Belas Artes pela Universidade de Barcelona e em Ciências da Educação pela Universidade de Évora. Leciona atualmente na graduação do Departamento de Artes Visuais do Centro de Artes e Letras e na pós-graduação em Educação, linha de pesquisa Educação e Artes, na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). É pesquisador vice-líder do GEPAEC (Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura), onde coordena o NEPIC (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ilustração Científica). É membro colaborador no I2ADS (Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedades, da Faculdade Belas Artes da Universidade do Porto, Portugal) e do CIEP (Centro de Investigação em Educação e Psicologia da Universidade de Évora). Co-editor da Revista Digital do Laboratório de Artes Visuais. Investiga e escreve sobre metodologias de pesquisa baseadas nas artes, visualidades em ambientes informais de aprendizagem, arte e cultura visual, ilustração e cognição, educação e formação de professores. E-mail: leonardo@gmail.com