Metodologias-metáforas: um ensino da arte como cultura (não apenas) visual

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Metodologias-metáforas: um ensino da arte como cultura (não apenas) visual

Irene Tourinho

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Levei um tempo para decidir como organizar o que queria compartilhar com vocês neste texto, escrito para o IV Colóquio Internacional Educação e Visualidades – pedagogias em trânsito (UFSM/2014). É incomum saber quanto tempo um/a autor/a leva para escrever um trabalho e como vai decidindo sobre a sequência, ênfases, abrangência. No meu caso, este tempo de espera - até o dia da apresentação - foi se configurando como tempo de preparação. Imagino que isto aconteça com muitos de nós: enquanto esperamos, preparamos. Foi assim que, relendo notas, conversando com colegas e relembrando situações de sala de aula decidi pensar em metáforas que pudessem expor, reforçar e alargar minhas reflexões sobre o tema que propus. Decidi que desenvolveria as ideias a partir de metáforas – visuais/escritas, conforme faço a seguir.

Figura 1 – Leandro Erlich, Window and Ladder – Too late for help

Para iniciar, escolhi esta imagem de uma instalação do artista argentino Leandro Erlich porque ela cria sintonia com meus anseios e motivos para lidar com questões metodológicas – com a prática docente do aprender-ensinar (Figura.01). Chamado de o “arquiteto da incerteza”, Erlich inventa espaços com delimitações fluídas e instáveis, transgredindo os supostos limites da realidade. Com seus trabalhos, ele provoca nossa imaginação para pensar além do exposto, para violar o que é visto e projetar novas formas de sentir, pensar e ver.

A incerteza, instabilidade e transgressão que reconheço em muitos de seus trabalhos me levam a destacar o plural que inseri na palavra metodologia. Apesar de que nem sempre o óbvio é óbvio, este plural reforça o que já sabemos: não há uma única, correta, definitiva e eficiente metodologia para ensinar, ou aprender, qualquer conteúdo ou ação. Acreditar numa fórmula ‘certeira’ seria aderir a uma metodolatria – depender, submeter-se, prender-se a uma metodologia – atitude que congela a capacidade de explorar, de vagar em busca de caminhos possíveis, provocando desvios e novas indagações.   

Conhecemos a definição básica de dicionário: metodologia é um “caminho pelo qual se atinge um objetivo”, um “modo de proceder, maneira de agir”. Pela imagem, posso imaginar que o objetivo é chegar à janela e, sendo assim, procederei subindo as escadas.

Acontece que a janela está aberta para um desconhecido, solta, desgarrada de uma sustentação. Ao mesmo tempo, ela se atrela a uma falsa parede de tijolos, inacabada, que serve de moldura, mas também de ornamento. A sombra do trabalho, presente na imagem, amplia e desloca a janela, projetando a escada para fora dela, para um vazio incerto. O desenho recortado dos tijolos nas laterais ou a luz do ambiente expositivo são elementos que se juntam para conferir instabilidade à imagem, como se cada um desses elementos pudesse ser um aspecto do que entendemos como metodologia, ou seja, fragmentos de fazeres, pedaços que podem, ou não, se complementar com outros.

Essa multiplicidade de elementos me desafiou a buscar metáforas partindo desta imagem. Sigo um roteiro que pretende brincar com ela e tomá-la como foco para detonar outras imagens e ideias.

Segundo Veiga-Neto,

uma metáfora é uma construção linguística na qual uma palavra ou frase, que comumente designa uma coisa ou um estado de coisas, é deslocada para ser usada na designação de outra coisa ou outro estado de coisas, estabelecendo uma comparação implícita entre ambas, entre ambos os lados” (2012, p. 270).

Defini, de olho na imagem, o seguinte roteiro-metafórico para este texto:

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  • Escadas...
  • Tijolos e Janelas...
  • Sombras...

O autor nos lembra que as metáforas tem ‘alcances e limitações’. Como alcance, Veiga-Neto registra a “dupla-dimensão” da metáfora, pois, “ela é, ao mesmo tempo, poética e política”. Isso significa, como ele explica, que “as metáforas jamais são neutras: ao transportar o sentido de um lado para outro, uma metáfora empresta ao lado mais fraco, mesmo que provisoriamente, a força simbólica contida no lado mais forte”.

Como limitações das metáforas, Veiga-Neto afirma que elas são representações e, assim, devem ser entendidas, ou seja: significados e sentidos nunca são estáveis e únicos... Usar ‘escadas’, ‘tijolos e janelas’ e ‘sombras’ como metáforas atende minha necessidade de compreender que as metodologias são como metáforas: ao mesmo tempo “poéticas e políticas”.

Escadas...

Vamos imaginar que a escada é uma forma de acessar, ou seja, uma maneira de tornar viável um tipo de fazer. Uma primeira provocação desta metáfora é refletir sobre em que posição na escada eu me coloco, como eu me posiciono. Listo, de maneira jocosa, algumas opções.

(Podemos subir e descer várias vezes todos ou alguns degraus, em ritmos diferentes; mudar a escada de posição; movimentar-nos de degrau em degrau; passar do primeiro para o terceiro degrau; saltar do último para o chão... parar no meio da escada; permanecer mais tempo num degrau ou noutro... subir com um pé só; subir com os dois pés a um só tempo... etc)

São opções que não consideram que a escada é móvel e, portanto, pode ser mudada de lugar. Esta brincadeira é séria. Ensinar e aprender, não sendo ciências exatas (alguma será?), estão agarradas na vertente lúdica, poderosa aliada para pensar quem somos, como nos posicionamos e que maneiras de sentir, pensar e agir orientam nossos movimentos nos degraus de uma escada, ou, nas fases de um processo de ensino.

Se focarmos somente a escada, numa sequência e modos que imaginamos seguir, perdemos de vista outras partes da imagem/ambiente, mesmo podendo ganhar em relação à percepção da escada e suas características. Em relação à metodologia, a metáfora da escada nos ajuda a pensar sobre a responsabilidade de refletir sobre as identidades e subjetividades que estão em jogo na docência. São as escolhas que ‘cometemos’, o que fica excluído, o que ganha nossa preferência no modo de atuar, os improvisos e as repetições do agir docente.

É necessário relembrar que o campo de atuação do/a professor/a tornou-se, hoje, muito mais vasto e expandido do que a capacidade dos conceitos de ‘ensinar’ e de ‘metodologia’ podem abranger. Novamente, brincar com conceitos, ideias e práticas, ativa nossa imaginação e nos estimula a criar alternativas, possibilidades de ‘realidades’ com as quais não estamos acostumados a conviver.  

Além de sugerir um meio de realizar uma ação e, também, um direcionamento, podemos construir outras relações entre metodologia, escada e docência. Ao falar da provocação em termos de como nos situamos diante de uma escada, temos embutido um desejo que carregamos como docentes: o desejo de fazer bem, de fazer bem feito, de fazer melhor. Assim como ensinar e aprender são indissociáveis, docência e metodologia também o são.

Outro ponto em que a metáfora da escada contribui para a reflexão sobre metodologias diz respeito a quem é esse sujeito que ensina e, por que faz as escolhas que faz – metodológicas, no caso. Penso em ‘quem é esse sujeito’, ou melhor, em como somos representados enquanto docentes, para enfatizar duas coisas. Uma é a condição mutante, vulnerável, lábil, que configura nossa identidade e posições de sujeito. Um passo fundamental nas escolhas metodológicas diz respeito a reconhecer e refletir sobre as mudanças que nós próprios vivemos, as pressões que sofremos e as expectativas que projetamos como profissionais. As maneiras como nos colocamos diante de um tema, imagens e manifestações dizem para além do que somos: dizem, também, sobre vazios, expectativas e projetos que nos constituem no fazer.

Figura 2

Figura 3

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(Com exceção das imagens da obra de Leandro Erlich, as demais foram encontradas nos sites indicados nas referências, ao final do texto).

Enquanto Foucault (2004, p. 295) afirma que “o papel de um intelectual é mudar alguma coisa no pensamento das pessoas”, a escada mostra um de seus alcances como metáfora, pois sua mobilidade, na medida em que podemos muda-la de lugar e que ela pode mudar de direção, de inclinação, de tamanho, de suporte, nos ajuda a pensar sobre a importância da mudança – a nossa, em primeiro lugar - como uma mudança de olhar, de ângulo de visão, de perspectiva. Uma mudança que reforce uma persistente determinação para duvidar do que vemos, ouvimos, sentimos e pensamos (Figura 2).

Outra ênfase relacionada às questões de subjetividade e identidade docente que esta metáfora permite tem a ver com as experiências das quais participamos, como reagimos a elas, que impactos elas produzem em nós, que memórias guardamos, como elas são recriadas e quais experiências optamos por compartilhar.

As experiências também nos fazem perceber as nuances e diferenças entre cada um de nós, nossos colegas e ambientes. Aqui as escadas mudam de forma, de tamanho, de cor (Figura 3). Como disse, esta junção – escada-metodologia-docência – pode nos lembrar que um ensino efetivo, uma metodologia eficaz, requer uma amplitude substancial de experiência profissional, um leque de experimentações de abordagens metodológicas e, especialmente, paciência e persistência para transformar pequenos eventos, inesperados, em poderosos impulsos benéficos para a aprendizagem.

Segundo Torras (2007, p. 23) “um corpo não pode comportar-se de qualquer maneira em qualquer contexto: cada encruzilhada sociocultural atualiza determinados corpos”. Cada escada-metodologia exige e sinaliza performances corporais e corporalidades que, como professores, aprendemos a nos adequar ou somos impulsionados a criar, a improvisar... (Figura 4)

Figura 4

A experiência é algo que nos faz e algo que queremos que aconteça na escola. Mais que isso, queremos que a arte e as imagens ofereçam, provoquem, configurem experiências. Queremos capacidade e habilidade metodológicas que nos ajudem a encontrar maneiras diversificadas para lidar com um mesmo foco, modos alternativos de proceder que estimulem experiências estético-artísticas e culturais que impactem, atraiam e operem mudanças nos modos como ensinamos, como vemos o mundo e os sujeitos com os quais nos envolvemos.

Entendo, com Sewell (apud Nóvoa, 2003, p. 65), que “o conceito de experiência não se refere apenas a um simples ‘viver os acontecimentos’ mas também abarca a forma na qual as pessoas construíram os acontecimentos no tempo em que os viviam. Pensando desta forma, a professora às vezes se instala, ocupa um espaço, mas permanentemente corre o risco de enrijecer-se, de petrificar-se, de acreditar que têm ‘a’ fórmula, que sabe lidar com qualquer situação docente ou qualquer grupo de alunos.

Penso que a paciência, hoje em dia, na correria que nos arrasta entre um projeto e outro, nos empurra entre uma ‘boa dica’ metodológica e um ‘recurso infalível’ para o ensino, é uma forma estratégica de resistência radical – a de ser paciente consigo mesmo e com os outros, disposto a viver a experiência de buscar temas, imagens e experiências, vivenciá-los e experimentar maneiras de abordá-los.

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As escadas às vezes são instaladas, ocupam grandes espaços, e se tornam parte da história. Esta, por exemplo, é uma escadaria situada num bairro boêmio de Paris – Montmartre, da Basílica do Sagrado Coração – onde se reuniam, na segunda metade do século XIX, artistas como Degas, Cezánne, Monet, Renoir, etc. (Figura 5)

Figura 5

Porém, as escadas, antigas ou pós-modernas, continuam nos dando possibilidades de subir, descer, parar, saltar, sentar, esperar, observar. Se a metáfora da escada nos leva a pensar em subjetividades, identidades e experiência, também falamos de história, ou histórias, para ser mais precisa.

Falo, neste caso, da história da profissão, da história docente, e, também, da história dos métodos que predominaram e se tornaram hegemônicos no fazer docente. Ter consciência da história que nos construiu é fator decisivo para compreendermos o que estamos fazendo – ou aspirando fazer – nos dias de hoje. Segundo Nóvoa (2003b, p. 26), os professores “são o alvo mais fácil a abater” pelos mais diferentes discursos da profissionalização. Ele conta que 

No passado, [os/as professores] construíram uma imagem social respeitada: eles detinham as chaves da mobilidade social e o prestígio do saber. Hoje, há meios mais eficazes de promoção na sociedade, e o saber (ou, ao menos, a informação) expandiu-se um pouco por toda a parte. Os professores ressentiram-se dessa dupla perda e têm dificuldade em reconstruir uma nova identidade profissional.

Figura 6

Nossa história, especialmente a história do ensino de arte, mostrou um trajeto de passagem de uma cultura de memória e instrução – cópia, modelos, ornatos, etc. – para uma cultura de descoberta e invenção (Figura 6). Esta passagem teve, e tem, profundas implicações, sendo uma delas a tensão entre autoridade e experiência. Aos poucos, foi-se acalorando uma discussão que confrontava não só a escola como lugar privilegiado do saber, mas, ainda, o/a professor/a como ‘dono’ da verdade, do conhecimento.

Nos demos conta de que estética e criatividade são tão importantes quanto conhecimento técnico neste mundo contemporâneo ao mesmo tempo globalizado e localizado. Esta questão que confrontamos, o global e o local, nos chama a refletir sobre a ideia, ainda oriunda da Europa, de que devemos sempre “pretender ser globais”.

Para Pérez-Oramas (2012, p. 28), “seria importante aprender a ser locais, a estar situados: a reivindicar um lugar no mundo, a pensar a partir de um lugar”. Isso porque, diz ele, “pensar a partir de todos os lugares [é uma] falácia como poucas que nos conduz à ilusão de crer que vencemos para sempre as distâncias, as diferenças e os tempos”. 

Tem razão Moacir dos Anjos (2005, p. 60-61) ao discutir a relação global/local mostrando que há, aqui, “um rompimento da associação imediata entre lugar, identidade e cultura”. Para ele, vivemos “um ambiente cultural complexo e diversificado, instituidor de uma nova, conflituosa e ampliada cartografia da produção e circulação simbólicas”.

Um dos limites desta metáfora é pensar que as escadas podem ser substituídas por outros objetos que nos ajudem a elevar-nos do chão, sem nos impedir de voltar e encontrar novamente o espaço que ocupávamos para rever onde pisamos, por que escolhemos aqueles movimentos e direções. Assim estaríamos ampliando significados para as metodologias e seus usos, ou pensando em como descarta-las.

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Tijolos e janelas...

No trabalho de Leandro Erlich, a janela é circundada por tijolos que desenham contornos irregulares e não eliminam a sensação de suspensão de ambos, janela e tijolos (Figura 7).

Figura 7 - Leandro Erlich, Window and Ladder – Too late for help (vista parcial)

Pensando primeiro nos tijolos, projeto alguns significados que eles podem adquirir neste contexto das metodologias do ensino da arte como cultura (não apenas) visual. Começo por uma questão básica, apesar de ainda pouco vivenciada: ver/ouvir as diferenças. Espera-se que nós, professores, nos confrontemos com crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, os chamados ‘normais’ ou com ‘necessidades especiais’ ou ‘super-dotados’ tendo sido formados sem que essas especificidades fossem levadas em consideração... Então, pergunto: metodologias para quem? Que saberes contribuiriam para orientar meu trabalho com crianças? Que diferenças caracterizariam as metodologias de trabalho voltadas para jovens pré-adolescentes ou para adultos?

Estas diferenças, que se somam às diferenças dos diversos ambientes escolares e, ainda, dos projetos político-pedagógicos de cada instituição, fragilizam nossas capacidades de planejar e imaginar possíveis práticas para, com, e de nossos alunos. Precisamos de mais informações e pesquisa sobre demandas de ensino para cada um desses grupos, em fases diversas de escolarização e seus possíveis efeitos. Mas não podemos esquecer que experiências riquíssimas são desenvolvidas com grupos de alunos de idades diferenciadas, misturados num mesmo projeto, sem a armadura da seriação que adotamos, muitas vezes sem questionar.

Ver/ouvir as diferenças significa não apenas entender que há muitos tipos de tijolos, como reconhecer que podemos fazer coisas diferentes com eles (Figura.08). Assim é também em relação às metodologias e às pessoas com as quais atuamos. Toda metodologia é uma construção que busca mediar e ampliar saberes e fazeres dos grupos nas escolas.

Figura 8

Entretanto, há aprendizagens não quantificáveis que buscamos quando interagimos com arte e com imagens: observar, imaginar, inovar, refletir. Estas seriam, talvez, as capacidades que resultariam de uma orientação metodológica aberta que visa ser bem sucedida. Tais capacidades talvez nos estimulem a mais implicação e menos explicação, mais exemplos e menos respostas.

Parafraseando Jones (apud Bhabha, 2012, p.21), poderíamos dizer que “necessárias em nosso mundo presente, as metodologias também são necessárias para questionar sua própria necessidade”. Este questionamento, que coloca em cheque a necessidade da metodologia, ressalta os contornos incertos que os tijolos podem criar, compreendendo aqui, cada tijolo como um micro episódio que marca as interações entre professores, alunos, arte e imagem (Figura 9).

Figura 9

O homem-tijolo e o carro-tijolo surpreendem não apenas pelas formas que apresentam, mas pelos diferentes temas que podem suscitar: deslocamentos, precariedade, perícia, trânsito, congestionamento, aprisionamento... A busca por imagens e temas que revelem os cotidianos dos sujeitos, que coloquem os alunos como protagonistas de processos de compreensão e criação são nossos maiores desafios. Enfrentar este desafio é buscar abordagens metodológicas que visem associar vínculos obscurecidos que a arte e as imagens oferecem, escutando sensivelmente as vozes dos processos através dos quais nos relacionamos com as imagens. Enfrentar o desafio de reunir cotidiano, sujeitos e seus processos de aprendizagem significa, ainda, construir metodologias que nos ajudem a lidar com as armadilhas do mundo, principalmente aquelas que podem nos surpreender. 

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Sabemos que, como professores, construímos sobre/através do conhecimento que os estudantes trazem para a situação de aprendizagem. Um dos nossos papéis é ajudar alunos e alunas a desenvolver uma compreensão sobre importantes conceitos e temas que a arte e as imagens sugerem, aludem e provocam; sobre conceitos e temas que eles insinuam, indicam e imaginam.

Fazer, neste sentido, é também construir teorizações, ou seja, “teoria em ato”, como nos fala Veiga-Neto. Compreendo que nossas opções metodológicas e a necessidade de questioná-las inclui considerar a capacidade humana de improvisar, de contribuir para que nós e os alunos possamos ser criativos, apreciando interpretações múltiplas, que nem sempre são novas, mas que podem ser revistas sob um novo olhar.

Os tijolos, então, nos falam de construções cotidianas, de contornos cambiantes, de imagens inesperadas que podem fazer cintilar, expandir os limites de onde e para onde queremos olhar.

Figura 10

Nesta imagem (Figura.10), o movimento de ver, da esquerda para a direita, mostra desde o escuro, o líquido, talvez o impensado, até pontos que brilham como faíscas quase que nos libertando do padrão e da textura que domina o desenho dos tijolos.

Talvez, grande parte da nossa vida docente seja construída com base nesses padrões que aprendemos a modelar: metodologias adquiridas, seja através de exemplos de professores que admiramos ou daqueles aos quais queremos resistir, seja através das maneiras como mais facilmente nos aproximamos daquilo que queremos aprender.  Porém, seria angustiante se nesse desassossego diário na docência, não encontrássemos lugar para liquefazer tijolos ou transformá-los em faíscas que brilham detonando ousadias pedagógicas, experimentações inconclusivas, poéticas por fazer.

Janelas...

É lugar comum dizer que janelas são múltiplas, diferenciadas, que criam cenas diversificadas e marcam épocas e histórias diferentes. Nós, das artes visuais, ouvimos sempre que as imagens são as janelas da alma e as palavras são apenas os pensamentos que as acompanham...  Mas, que outras ideias podem ser pensadas a partir das janelas?

Figura 11

Uma delas é reconhecer que a vida não é só o que olhamos lá fora, através da janela (Figura.11). De fora, também posso ver/imaginar o que se passa dentro. Nesse sentido, a janela pode nos falar das relações interior-exterior, dentro-fora, que caracterizam o que Hall (2001) configura como ‘nossa falta de inteireza’.

Segundo ele,

a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros (p. 39). 

As janelas trazem para nossas reflexões sobre metodologia, a necessidade de instaurarmos relações entre o dentro e o fora, entre o individual e o coletivo para que nossas identidades possam ser constantemente redefinidas e ganhar sentidos nas experiências que propomos ou abraçamos. Deixando marcas, as janelas podem se abrir possibilitando arejar os pensamentos que construímos enquanto nos deslocamos ou prolongamos ‘estados’ de ver, sentir, refletir (Figura 12).  

Figura 12

Assim, o

olho não é mais entendido como a janela da alma, como dizia Descartes, mas é uma guloseima canibal que (...) pode ser reconhecida no rosto de um matador ensanguentado ou no olho que se revira durante o sexo de uma heroína de romance pornográfico (GREINER, 2005, p.79).

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Cabe lembrar aqui que aprender, muitas vezes, significa sofrimento, isolamento, um esforço para distanciar-se da experiência concreta, vivida, e lidar com uma visão abstrata, diferenciada do mundo da vida cotidiana, porém, sem perder a chance de voltar a encarar a vida vivida, o todo-dia do nosso viver.

A gente estuda, experimenta, pensa, reflete, brinca e vai encontrando maneiras de abordar certos temas, com diferentes turmas, em contextos específicos, cientes de que conflitos e enfrentamentos sempre estarão presentes. As metodologias-janelas consideram abordagens que possam estimular os alunos nos seus encontros com as artes visuais, as imagens e os ‘outros’, através de diferentes ângulos internos e externos ao nosso campo de visão, levando em conta aquilo que professores e alunos entendem como um ensino que possa ser atraente para ambos.

Para saber o que alunos e professores consideram fatores de atratividade nas aulas de artes, uma pesquisa (BRAMFORD e WIMMER, 2012, s/p) ouviu suas respostas em várias escolas, concluindo que

  • os alunos valorizam o ensino quando: (Coloquei em itálico os conceitos que constituem preocupações que nos inquietam quando pensamos em metodologias)
    • tem possibilidade de trazer para a escola suas referências e histórias individuais e culturais;
    • se sentem vistos como sérios, motivados e estimulados;
    • os conteúdos de aprendizagem são relacionados com sua vida cotidiana e abordados com instrumentos de sua preferência (tecnológicos) além de respeitarem seus estilos de aprendizagem;
    • a aprendizagem cultural é orientada pela/para pesquisa;
    • quando auto-conhecimento, empoderamento e experiências individuais são interligadas ao envolvimento com as arte, e quando seus papéis de gênero são articulados e discutidos culturalmente.
  • ...e os professores valorizam o ensino quando podem:
    • trazer para a sala de aula um amplo leque de suas competências pedagógicas;
    • cooperar com colegas ou parceiros externos;
    • trabalhar num clima de bem-estar;
    • ser eles mesmos num processo permanente de aprendizagem, e
    • compreenderem a si próprios como agentes de mudança

Algumas abordagens, como as narrativas visuais, os diários de campo, as autobiografias visuais, os portfólios, as interferências coletivas etc., tem sido propostas e realizadas com alto grau de envolvimento de alunos e professores, fazendo a inserção da pesquisa como aliada da docência e da aprendizagem.

Questões temáticas também representam uma espécie de trilha que pode nos ajudar a estimular os alunos à pesquisa – de conceitos e imagens – e à criação, abrindo possibilidades de fazer experiências que alarguem visões de mundo, instaurando a dúvida, a transgressão e a curiosidade. Antes de sair da janela e, para finalizar este texto, me encontrar com as sombras, mostro um exemplo de temáticas apresentadas como eixos de um recente congresso sobre masculinidades e feminilidades. Além de terem me servido para trabalhar com meus alunos, este exemplo nos dá uma perspectiva da multiplicidade oriunda das diferentes temáticas com as quais podemos nos defrontar no dia-a-dia docente: 

  • História dos gêneros e os gêneros na história;
  • representações de gênero na cultura, arte, filme, literatura, media;
  • gênero e política;
  • performatividade de gênero;
  • androgenia;
  • o corpo e suas transgressões;
  • feminismo lésbico, eco-feminismo;
  • gênero e raça;
  • gênero e nacionalidade;
  • gênero e maturidade;
  • gênero e religião;
  • gênero e necessidades especiais…
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Imagens de arte, de publicidade, de cartoons, de filmes e/ou de clips são um repertório rico e diversificado para abordar estes temas provocando ações artísticas/estéticas e reposicionamentos subjetivos na escola. Imagino que muitos de nós já tenha trabalhado com algumas destas questões, mas o importante aqui não é a novidade, o ineditismo; o importante é diversificar a forma de abordar, ou seja, ser inventivo metodologicamente falando. Nem tudo que fazemos é um sucesso, nem podemos sofrer a síndrome dos 100% que significa achar que todos os alunos estarão igualmente atentos e motivados para as questões que levamos ou que surgem nas aulas para serem trabalhadas. Poder trabalhar um mesmo tema, um mesmo conceito ou ideia de várias maneiras é um aprendizado que deveríamos tomar como um dos principais nas nossas trajetórias como docentes.

Sombras...

Encher os olhos de sombras é minha primeira ação neste final de texto. A intenção não é apenas ilustrar – ato que, além de servir para exemplificar, também serve para instruir-se, transmitir e adquirir conhecimentos – mas deixar motes que possam inspirar a continuidade destas metáforas, se o/a leitor/a assim desejar... (Figuras13,14 e 15)

Figura 13

Figura 14

Figura 15

As sombras podem reforçar coisas que são incômodas para lembrar ao final de um texto, mas, pensando em capacidade, autonomia e criatividade metodológica, é irresponsável não dizer que o investimento na educação, na formação inicial e continuada de professores é uma das questões que têm ficado à sombra das políticas públicas na área de ensino de arte. Um dado conhecido é de 2010, que apresentava apenas 32% dos professores de arte do Ensino Médio com licenciatura na área.

Esta sombra aponta para um embate entre status e significado das disciplinas, como analisa Goodson (2005, p. 168). Para ele, as disciplinas que tem maior significado pessoal/social nas escolas – e as artes e as tecnologias estão entre elas – são as de menor status acadêmico, exatamente porque estas disciplinas são inclusivas, oportunizam fazeres imprevistos e resultados múltiplos, além de permitirem que a liberdade expressiva de todos possa ser ampliada.

As sombras podem ser vícios da docência e/ou projetos de transformação. Pode ser um lugar de abrigo onde o docente estimula o protagonismo dos alunos e pode ser um indício de que situações imprevistas vão aparecer e devem ser aproveitadas e alargadas. São muitas possibilidades de ver/fazer sombras nas quais ideias, sentimentos e reflexões guardadas, largadas ou abafadas voltam a preencher espaços de indagações, inquietudes e descobertas.

Porém, concluo esta viagem metafórica usando um trecho de Homi Bhabha (2012), retirado do catálogo da penúltima Bienal de São Paulo e que dá às sombras um significado especial para terminar esta reflexão. Ele diz:

Trabalhamos forçosamente nas linhas de sombra entre nossas construções urgentes, projetivas, de um modo mais justo, e nossos apegos ansiosos, teimosos, ao mundo parcial, tenso, de imperfeições existenciais que pertence à arte como a conhecemos e à história como a vivemos – em parte brutas, em parte belas. (p.24)

Desejo que as linhas de sombra nos conduzam a fazeres metodológicos pedagogicamente impertinentes, ousados, e, sempre, íntegros!

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Referências

ANJOS, M. Local/Global: arte em trânsito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.

BAMFORD, A. e WIMMER, M. The Role of Arts Education in Enhancing School Attractiveness: a literature review. EENC Paper, February 2012, s/p.

BHABHA, H. K. Arte e eminência. In: A eminência das poéticas. Catálogo da 30ª Bienal de São Paulo. Fundação Bienal: 2010, p. 20-24. 

FOCAULT, M. Verdade, poder e si mesmo. In: Ditos e Escritos: ética, sexualidade e política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 294-300.

GOODSON, I. Learning, Curriculum and Life Politics. London: Routledge, 2005, p. 168.

GREINER, Christine. O corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005.01

HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

NÓVOA, A. “Textos, imágenes e recuerdos. Escritura de ‘nuevas’ historias de la educación”. In: Historia Cultural y Educación –Ensayos críticos sobre conocimiento y escolarización. Thomas Popkewitz, Barry Franklin, Miguel Pereyra (compiladores). Barcelona: Ediciones Pomares, 2003, p. 61-84.

NÓVOA, A. Entrevista. Pátio, Porto Alegre, n.27, p.25-28, ago./out. 2003b.

PERÉZ-ORAMAS, L. A eminência das poéticas (ensaio polifônico a três e mais vozes) In: A eminência das poéticas. Catálogo da 30ª Bienal de São Paulo. Fundação Bienal: 2010, p. 26-50.

TORRAS, Meri. El delito del cuerpo. De la evidencia del cuerpo al cuerpo en evidencia. In Torras, M. (ed): Cuerpo e identidad. Estúdios de gênero y sexualidade. Barcelona, Edicions UAB, 2012.

VEIGA-NETO, A. É preciso ir aos porões. Revista Brasileira de Educação, v. 17, n.50, maio-ago, 2012, p.267-283

Sites para imagens:

Escadas: www.google.com.br , acesso em maio, 2014

Tijolos e Janelas: www.google.com.br e www.google.com.br , acesso em maio, 2014.

Sombras: www.google.com.br , acesso em maio 2014.

Irene tourinho é doutora pela University of Wisconsin Madison  (EUA) e Pós-doutora em Cultura Visual pela Universitat de Barcelona, Espanha, onde foi professora visitante. Professora do programa de pós-graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG. Membro do GEPAEC da Universidade Federal de Santa Maria e do GPCVE da Universidade federal de Goiás. E.mail: irenetourinho@yahoo.es