Nem de centro, nem de borda: outros cinemas e seus fazedores

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Nem de centro, nem de borda: outros cinemas e seus fazedores

Alice Fátima Martins

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Este texto integra o projeto de pesquisa intitulado Outros fazedores de cinema, que conta com o apoio do CNPq. A discussão nele proposta é desdobramento de uma primeira etapa, já concluída, intitulada Catadores de sucata da indústria cultural (MARTINS, 2013), quando o objetivo foi organizar algumas reflexões sobre a produção em excesso no campo do simbólico, pela indústria cultural, visando ao consumo, à maneira do que ocorre nas outras indústrias mais pesadas, que produzem mercadorias tangíveis.

Contudo, o recortedo projeto, naquela ocasião, não abrangeu os artefatos da cultura tomada em seu sentido mais amplo, tampouco as indústrias culturais em sua diversidade: seu foco foi o cinema, mais especificamente o exercício criador na realização de narrativas audiovisuais e na relação ativa com a diversidade de produções cinematográficas a partir de pessoas que se localizam fora dos circuitos do mercado cinematográfico e de entretenimento propriamente ditos.

Alinhadas aos Estudos Culturais, desde o campo das Artes Visuais e da Cultura Visual, as reflexões articuladas desde então, que pautam este texto, partem do pressuposto de que “a ‘arte’ – designada anteriormente como uma posição de privilégio, uma pedra-de-toque dos mais altos valores da civilização – é agora redefinida como apenas uma forma especial de processo social geral” (HALL, 2008, p. 127).

Do mesmo modo, encontra em Walter Benjamin a força motriz deflagradora das perguntas e estratégias de investigação. Particularmente, busca referenciar-se na sétima das Teses sobre História (BENJAMIN, 1994). Nela, o autor destaca que, em geral, historiadores constroem suas narrativas com base nas relações de empatia com os vencedores. Por vencedores deve se entender não apenas aqueles que vençam batalhas ou competições, mas principalmente os integrantes das classes de elite, que detêm o poder político, econômico e bélico. No entanto, para Benjamin, os bens culturais devem sua existência não somente ao esforço de gênios ou poderosos, mas também (é mesmo de se supor que, sobretudo) “à corvéia anônima dos seus contemporâneos” (p. 225). Por isso mesmo, o autor convoca à tarefa de “escovar a história a contrapelo”, desde o ponto de vista dos oprimidos, ou dos vencidos, lançando-se em insurgência não só contra a tirania, mas contra a própria corrente histórica.

A insurgência contra a corrente histórica, aqui, é interpretada num sentido amplo, incluindo não só referenciais da história da arte de matriz eurocêntrica, bem como os formatos dominantes dos mecanismos de se contar histórias por meio da projeção de luzes em movimento, sonorizadas, no cinema, projetadas ou não em salas específicas, ou em écrans os mais diversos, em aparatos que se proliferam ocupando os quotidianos.

Por essa razão, o ambiente desta pesquisa reporta-se ao trabalho de cidadãos comuns que, movidos a paixão pelo cinema, dedicam seus esforços para assegurar, não só para si, como também para suas comunidades, o acesso a histórias contadas pela indústria cinematográfica, e também à aventura de contar suas próprias histórias, em exercícios estéticos e narrativos formulados a despeito das condições precárias, e à revelia dos sempre onerosos orçamentos das produções cinematográficas disponíveis no mercado do entretenimento.

No mais das vezes, se não sempre, as experiências estéticas singulares resultantes desses processos são desenvolvidas em comunidades com acesso restrito aos chamados aparelhos culturais: salas de cinema, museus, centros de cultura, dentre outros.

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No tocante às discussões sobre cinema, tem chamado a atenção o número sempre crescente de outros fazedores de filmes, ou de narrativas audiovisuais outras, bem como exibidores dessas narrativas, que vêm atuando em quantos contextos diferenciados, ocupando – quase sempre de modo precário – lacunas deixadas tanto pelo sistema das artes, do mercado cultural e de entretenimento, quanto pelas políticas públicas do Estado no tocante às artes e à cultura de um modo geral.

Ao ocupar essas lacunas, também transitam em ambientes situados além delas. Alguns desses fazedores de cinema ocupam a cena, no papel de protagonistas. Dentre esses, não é difícil encontrar aqueles que organizam sua vida produtiva tendo esse fazer como uma de suas prioridades. Esse tema tem despertado o interesse de estudiosos das mídias, e do cinema. Como tendência que prevalece nessas análises e discussões, encontramos a referência à estética de periferia, ou à localização dessas produções na borda, ou em bordas. (LYRA & SANTANA, 2006; SANTANA, 2008)

Tanto nas análises que pensem (mesmo quando pretendam ressaltar qualidades e potencialidades) numa estética da periferia, ou no cinema de bordas, a base sobre a qual são formuladas é o binômio centro-periferia, ou centro-borda. E a referência à periferia ou à borda é feita desde, ou a partir de um centro. O centro é catalizador das forças, desde onde se difundem informações e modelos, normas de procedimentos, critérios de avaliação e análise. A mais, ao qualificar alguma produção como de periferia ou de borda, mais do que informar sobre essa produção, informa a localização de quem analisa a produção e sentencia a qualificação. Há uma espécie de compartilhamento de convicções nem sempre declaradas entre aqueles que ocupem o centro, algum centro, em seus diversos papéis, no tocante às discussões sobre as bordas, e suas relações, ou não, com o centro. O mesmo pode ser observado quando o binômio em questão não seja composto pela borda, mas pela noção de periferia, em relação a algum centro, qualquer que seja.

Os pesquisadores Bernadette Lyra e Gelson Santana (2006), mentores do grupo que vem trabalhando com o conceito de cinema de bordas, são enfáticos ao notar que a referência à noção de cinema de bordas não se trata de um movimento cinematográfico, ou de alguma tendência que apresente qualquer unidade, mas de um modo de produção cinematográfica ou audiovisual paralelo ao mundo do cinema legitimado pela historiografia tradicional. É realizado à margem desse circuito. Por isso, nas bordas. Ou seja, tomando como ponto de vista os discursos legitimados sobre o cinema, sua teoria e história, o cinema de bordas inclui aquilo que é desprezado, considerado trash, de segunda mão, ou de segunda categoria. Nas bordas, apesar das adversidades, continua a pulsar e a estabelecer seus modos próprios de produção e veiculação.

O grupo de pesquisa referido tem desenvolvido um trabalho consistente nessa direção, produzindo pesquisas sobre um número cada vez maior de pessoas que realizam esse tipo de produção no âmbito do cinema, e também organizando a mostra Cinema de Bordas, em São Paulo, com parceria estabelecida com a Fundação Itaú Cultural.

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No entanto, a base binomial na qual a análise opera tem propiciado algumas distorções, dentre as quais a apropriação da expressão num sentido totalizante, como se houvesse alguma homogeneidade nessas produções: aquele sujeito faz cinema de borda! Tal afirmação toma a categoria criada pelo grupo de pesquisa e a situa como um gênero a mais na prateleira do mercado. Além disso, a própria noção de borda pode funcionar, ainda que provisoriamente, como categoria conceitual no contexto dos estudos sobre cinema, mas não cabe se pensada nas tramas das relações de produção e atualização contínua da cultura como um todo. Ao considerar a inserção dessas produções em suas comunidades, não será muito difícil compreender que a noção de borda sofre um deslocamento, conquanto seus agentes ocupem, no mais das vezes, posições de centralidade nas dinâmicas da vida sociocultural de suas comunidades.

A questão da centralidade é relativa e instável, depende de quem a pronuncie, e do ponto de vista adotado. O que é borda numa perspectiva pode ocupar alguma centralidade no passo seguinte, se adotado outro ponto de vista. O contrário também é verdadeiro. Ora, porquanto estabeleça lugares de instalação e disputas de poder entre um e outro, essa relação parece ser insuficiente para a discussão aqui proposta, além de deslocar o eixo teórico-conceitual pretendido, bem como as orientações epistemológicas. 

Num esforço de superar as análises apoiadas nesses princípios binários, duais, dentro-fora, centro-borda, ou centro-periferia, a atuação desses outros fazedores de cinema é percebida no trânsito entre possibilidades e potências em devir (DELEUZE, 2006; DELEUZE & GUATTARI, 1992), em que o ato de contar histórias sobre o mundo tem a força de reconfigurar o mundo. Busca-se, assim, compreendê-los em sua rede de relações socioculturais, seu potencial de experiência estética, em seu contexto e paisagem.

Esses agentes não integram os circuitos comerciais do cinema, bem como não têm espaço nos aparelhos culturais e artísticos, ou em mostras e festivais de arte, de cinema, entre outros. Seus trabalhos se estabelecem cumprindo percursos outros. Alienígenas, afinal, que vêm de fora, seja quanto ao percurso de formação, ao modo de ingresso no campo, seja nos circuitos de produção e veiculação.

A adoção da expressão pode parecer despretensiosa, mas não desconhece algumas dificuldades de que é portadora. A primeira delas está na natureza própria do pronome outros. Não é substantivo, nem adjetivo: não nomeia, tampouco qualifica. Não é advérbio, assim não circunscreve a determinados modos ou condições. Trata-se, sim, de um pronome indefinido, variável, que sofre inflexão de gênero e número. Indica, aponta. Sobretudo, não é inocente. E também, ao modo de um camaleão, pode modificar-se, enquanto se desloca nas estruturas frasais, transvestindo-se de substantivo, ou adjetivo. Do ponto de vista etimológico, a palavra outro pode indicar aquilo que é distinto de alguma unidade referencial, o que não está presente, o que vem depois. No latin, a palavra alter, da qual é derivada, é usada também para ocupar o lugar de segundo: vicesimus alter, por exemplo, como vigésimo segundo. Outro pode também ser entendido como aquele que substitui o primeiro ou o principal. Ou, ainda, o que vem depois do primeiro. Que também pode ser pensado como de segunda categoria.

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Assim, a noção de outro, neste texto, além de delimitar um modo de produção específico, marcadamente de baixo e baixíssimo custo, também explicita o esforço no sentido de compreender esse modo de articulação de visões de mundo que é outro, que não é o meu, num exercício de alteridade, no seu sentido mais radical, da raiz da palavra.

Por outra via, vale lembrar que o outro, afinal, é todo aquele que não eu, e cujas motivações provavelmente sejam distintas das minhas. Pensadores das ciências sociais e da psicanálise (ELIAS, 1994; CASTORIADIS, 1982) destacam que o par eu-outro é indissociável: entre eles há uma inter-relação dialógica nos processos contínuos de constituição e percepção do mundo. Sem o confronto-encontro com o outro, não é possível me reconhecer ou ser eu. Ou seja, quem eu sou se configura a partir das relações estabelecidas com quem eu não sou. Esse processo se dá tanto nas relações entre indivíduos, quanto entre comunidades de diversas dimensões e complexidades, quando a noção de eu ganha a envergadura de nós, num sentido do eu coletivo. Ressalta-se, nesse processo, que as relações eu-outro são instáveis, dinâmicas, em contínua reconstrução.

Os outros, neste projeto de pesquisa, são fazedores de cinema. E aqui se encontra a segunda parte do título deste projeto de pesquisa, a requerer também uma breve abordagem. Entender esses outros como fazedores de cinema é, também, trazer à pauta das discussões as demarcações do que seja ou não cinema, nos cenários contemporâneos, ante o desenvolvimento das tecnologias digitais de imagem e som, e a popularização de seus aparatos e aparelhos.

No tocante ao campo do cinema, como seria possível pensar essas relações? Nos anos 1960, Edgar Morin (1999) discutiu a ideia de indústria cultural, com ênfase mais específica na indústria cinematográfica. O autor refere-se aos grandes estúdios norte-americanos como formadores dos núcleos mais potentes dessa produção. No entanto, o autor ressalta o fato de que, para se renovarem, as narrativas produzidas nesses eixos buscam novos elementos, dentre outras fontes, na liberdade de criação experimentada nos trabalhos realizados fora deles.

Mas a própria noção de núcleos mais potentes, ou importantes, deve ser relativizada, tendo-se em vista os alcances das produções, seus destinatários, as reverberações. Assim, eventualmente, núcleos considerados mais importantes num determinado contexto deixam de sê-lo tendo-se em vista outras circunstâncias. Em outras palavras, alguns cineastas brasileiros que estabelecem trânsitos entre diversas temáticas, contextos socioculturais, estilos narrativos, podem ocupar lugar referencial, logo central, em relação a outros cineastas brasileiros cujos trabalhos têm menor abrangência, seja na produção quanto na divulgação. Contudo, em relação a outras equipes internacionais, apoiadas por sistemas de produção e distribuição economicamente mais potentes, esses mesmos cineastas situam-se fora do centro. Ao mesmo tempo, os cineastas com trabalho de menor alcance, em termos midiáticos e geográficos, assumem papéis relevantes, centrais, em suas comunidades, realizando projetos que não caberiam para os outros cineastas. Ou seja, as relações eu-outro, fundantes na constituição de identidades, também aqui, mostram-se instáveis, dinâmicas, flutuantes, e envolvem trocas contínuas de posição.

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É nesses termos que Seu Osorinho ocupa espaço de centralidade em Serranópolis/GO, com uma atuação que ganha alguma reverberação fora do pequeno município onde vive. A seu turno, Hugo Caiapônia, de Caiapônia/GO, tem uma capacidade imbatível de mobilização de público e admiradores nas cidades de pequeno e médio porte do interior do Estado de Goiás, sendo capaz de mobilizar milhares de pessoas para uma sessão de exibição de seus filmes. Um e outro ocupam lugar de centralidade desde os seus contextos socioculturais de inserção, a despeito de não integrarem os grupos que produzem e estudam cinema na capital do Estado. Do mesmo modo, Martins Muniz cumpre papel de centralidade também na interlocução com os vários grupos que dialogam com o Sistema CooperAção Amigos do Cinema, em Goiânia/GO.

Serranópolis é uma cidade com pouco mais de 7000 habitantes, em cujo território se encontram muitas grutas e sítios arqueológicos com pinturas rupestres que datam de cerca de 11000 anos. O Seu Osorinho, natural dali, tem familiaridade com as gentes, as paisagens e os caminhos do lugar. Há cerca de 10 anos, começou a produzir imagens das coisas e das pessoas, para que, mais tarde, quando já não existissem, os novos pudessem conhecer, ou saber como eram. Inicialmente, fez fotografias com uma câmera compacta analógica, de foco fixo. Fotografou plantas, animais, paisagens, pessoas, eventos, tudo que julgava relevante registrar, para que se pudesse depois contar como teria sido. Posteriormente, adquiriu uma câmera filmadora, que funcionava com fitas VHS. Mais tarde passou a trabalhar com câmeras menores, e atualmente opera uma pequena câmera HD, que ganhou de uma cineasta. Aos poucos, também foi refinando sua técnica de captação das imagens e do som, inventado soluções, operando a câmera de maneiras diferenciadas. Desde o início desse processo, tem registrado, em vídeo, tudo quanto o cerque: pessoas, festas, eventos, caminhos, percursos, passeios, flores, pássaros, etc. A lista das coisas que registra tem a forma de inventário. Muitos dos registros que produz, ele entrega aos interessados, de modo que boa parte do seu material já não está disponível para ele.

Amigo de Hugo Caiapônia, Seu Osorinho prepara-se para fazer uma participação no próximo filme do criador de Imbilino. Hugo Caiapônia, que sempre gostou de contar piadas, há 10 anos pensou em criar uma personagem, a partir da qual poderia montar argumentos e realizar filmes. Imbilino é um caipira do oeste goiano. Muitas vezes referido como o Mazzaropi do Cerrado, a personagem guarda algumas aproximações, mas também traz traços muito próprios que a diferenciam do caipira paulista. Suas histórias contam com um núcleo principal de personagens, chamado por seu mentor de “a família”. Essa família tem uma estrutura mais ou menos estável, e toma parte de todas as histórias. As personagens incluem vizinhos, amigos, compadres, e correlatos. São interpretados pelos filhos de Hugo Caiapônia, irmãos, amigos, e outras pessoas de sua relação.

No decurso de 10 anos, o tempo exerceu transformações nas pessoas que fazem parte de seu projeto. As mudanças mais visíveis estão nas crianças que, de pequenas, no primeiro filme, já comparecem como adolescentes nas produções mais recentes. Essas transformações acabam trazendo novos referenciais, também, às histórias tecidas.

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Hugo Caiapônia constrói o argumento, escreve o roteiro, cuida da produção, dá vida à personagem principal, o Imbilino. A direção dos filmes e edição são feitas por Aroldo de Andrade Filho, com cuja parceria conta desde o primeiro trabalho. Depois de pronto o filme, Hugo Caiapônia cumpre extensa programação para exibi-lo em espaços improvisados, em cidades onde não há salas de cinema: salões paroquiais, pontos de cultura, salas de escola, salões de festa, ginásios, dentre outros, recebem milhares de pessoas para verem as sagas do caipira goiano. Ao final das projeções, o Imbilino comparece, em pessoa, para receber o carinho de seus fãs. Tira retrato com eles, conta piadinhas, diverte-se em meio à multidão. Seu mentor conhece bem os mecanismos de relação com o público. Merece registro o fato de que, quando seus filmes são exibidos em cidades onde há salas de cinema, recorrentemente o público em suas sessões é significativamente maior do que o público dos filmes da rede regular de projeções.

Conhecedor do poder de sua personagem, o mentor de Imbilino tem conseguido montar um empreendimento capaz de lhe render algum lucro, e manter um pequeno grupo que o ajuda na produção e veiculação dos filmes. O quadro por ele desenhado é inédito em todo o Estado, na medida da conciliação entre o exercício criativo, da produção, do acesso a um público numeroso, e do retorno financeiro minimamente satisfatório, com considerável autonomia em relação ao mecenato das políticas públicas de financiamento para o setor do audiovisual.

Apesar do sucesso inquestionável do trabalho desse cineasta, na capital do Estado ele é pouco conhecido pelas pessoas ligadas ao setor. Além disso, sua produção tende a ser desqualificada pelos poucos que entram em contato com ela, por sua natureza mais popularesca, de narrativa quase ingênua. Naïf, talvez referissem alguns críticos de arte, fazendo alguma concessão à natureza estética de suas narrativas. Tal avaliação contraria a percepção de seu público, particularmente dos segmentos formados por crianças e idosos, que cultivam pela personagem um entusiasmo marcante.

Na mesma capital que pouco conhece do trabalho de Hugo Caiapônia, atua outro fazedor de cinema, Martins Muniz, líder de uma trupe aberta, conhecida como Sistema CooperAção Amigos do Cinema. Martins Muniz, apaixonado por cinema desde a infância, foi exímio artesão no decurso de sua vida profissional, atuando em várias frentes, dentre as quais realização de cenários para teatro, centros comerciais e carnaval, direção de teatro, produção em agências de publicidade, produção e atuação no cinema. No início dos anos 2000, passou a liderar um grupo de amigos para o exercício de realizar filmes de modo colaborativo: sem qualquer tipo de financiamento, contando com a colaboração dos envolvidos, em jornadas intensivas de gravação com duração média de um final de semana, o tempo necessário para a realização de um filme sempre foi muito pequeno, considerando-se o tempo médio geralmente consumido para as produções no cinema.

Pode-se dizer que seja uma ação entre amigos, com vistas a construir aprendizagens sobre cinema: desde o planejamento, as gravações, a edição e a sessão de lançamento do filme, todas as etapas ganham o tom de festa e celebração. Dentre os títulos realizados nesse sistema, encontram-se muitos filmes de curta metragem, alguns de longa-metragem, e muitos com duração entre 30 e 50 minutos.

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Destaca-se, nesse processo, a capacidade de liderança de Martins Muniz, articulando um grupo heterogêneo nos interesses, formação e atuação, de modo a cumprir o que seja proposto. Esse grupo conta com um núcleo reduzido de pessoas, mais ou menos regular, que participa de todas as produções, e um círculo bem maior, flutuante, que recebe novos integrantes a cada etapa, e deixa de contar com outros, por razões as mais diversas. Também chama a atenção a capacidade de Martins Muniz para atuar nas adversidades, buscando modos de equacionar impasses, minimizando a perda da coerência e da consistência no resultado final: ausência de atores que já tinham gravado cenas anteriores, falta de elementos de cena, locações restritas, limitações técnicas para atuação, etc.

Evidentemente, por se tratarem de produções com orçamento quase nulo, com gravações intensivas, que demandam pouco tempo, a improvisação é uma das marcas fortes do resultado, sobretudo no tocante aos materiais de cena, aos vazamentos de som, dentre outros elementos de ordem técnica. Contudo, quando, por essa razão, o trabalho é qualificado como trash, o diretor contesta, argumentando tratar-se, sim, de um cinema artesanal. Pesa, em favor do seu argumento, o fato de que os problemas de acabamento dos filmes não decorrem de uma intencionalidade, mas das contingências precárias de produção, o que não é o caso dos filmes trash, nos quais o acabamento grosseiro integra o projeto, além de tratarem, em sua maioria, de temáticas voltadas a histórias de terror.

Nos três casos trazidos nesta reflexão, alguns traços comuns podem ser ressaltados. O primeiro deles está na relativa autonomia econômica que preside essas produções. Ou seja: tanto Seu Osorinho, quanto Hugo Caiapônia e Martins Muniz não reivindicam apoio financeiro de outrem como condição para buscar meios de realização de seus projetos, sobretudo em relação a editais públicos de financiamento. Quando, porventura, o apoio possa existir, as produções já estão em curso, e dele se apropriam, sem, contudo, dele dependerem.

Para a realização de seus trabalhos, contam com grupos formados por pessoas de suas relações mais próximas, que envolvem familiares e amigos, em geral com pouco ou sem conhecimento prévio sobre os procedimentos técnicos e estéticos das produções fílmicas. Desse modo, operam em processos nos quais todos aprendem a fazer fazendo, lançando mão de seus repertórios audiovisuais, de suas referências culturais, de suas percepções particulares. Dialogam, de modo direto, com seus contextos: constroem suas histórias a partir deles, falam sobre eles, destinam suas produções a eles.

Cada qual ocupado com projetos próprios, seja visando a produzir imagens de coisas e pessoas para serem preservadas no tempo, seja para contar histórias em torno a uma personagem-síntese do caipira interiorano, seja para produzir filmes de modo colaborativo como forma de aprender sobre cinema, a noção de cinema artesanal parece adequar-se nos três casos – o que não significa ser esta uma noção passível de generalização. O sentido do artesanal pode ser buscado na forma de produção em que os realizadores respondem por todas as etapas do trabalho, tendo o domínio e a familiaridade com as características de cada uma delas, e deixando suas digitais na totalidade do resultado. A mais, o resultado decorre da maximização das mínimas condições de produção, nas três situações.

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Seu Osorinho, Hugo Caipapônia e Martins Muniz, fazedores de outros cinemas, podem ser considerados artífices do audiovisual, com projetos que se consolidam no decurso do tempo, tomando feições e narrativas próprias, autorais. Em suas atuações e inserção sociocultural, não participam de festivais. Seus filmes não são projetados em salas comerciais, tampouco naquelas devotadas ao cinema-arte. Por isso são referidos, aqui, como outros. No entanto, como pesquisadora, ao me posicionar diante de seus trabalhos, eu é que me coloco como outra, considerando o protagonismo de cada um em seus ambientes de inserção.

Experimentar ser outra ressalta a condição de alteridade e de um não saber que precede o encontro com cada um deles. Nesse sentido, neste trabalho não se faz nenhum exercício de “dar voz” ou “dar visibilidade” a quem esteja nalguma suposta obscuridade. Ao contrário, trata-se de dar-se a conhecer, por parte de quem ignora, no caso a pesquisadora, trabalhos produzidos por quem estabeleça relações profícuas em seus contextos, e façam uso de narrativas audiovisuais para atribuir sentidos a tais relações. Ao dispor das ferramentas do cinema e do audiovisual, esses agentes propiciam a articulação de imagens visuais e sonoras, portadoras de movimento, que jogam com o espaço-tempo. Neste recorte, ocupam a cena suas configurações próprias de espaço-tempo, com as quais eu, outra, tenho propiciadas possibilidades de articular reflexões teóricas e conceituais sobre a temática em questão. E assim construir aprendizagens .

Do encontro entre eu-outra e cada um deles-outros, talvez seja possível deflagrar processos dialogais a partir dos quais nos modifiquemos mutuamente, em dinâmicas de ensinar e aprender que escapam às demarcações das instituições regulares de ensino, ganhando espaços múltiplos nas malhas da cultura, sempre em movimento, em devir, nos termos pensados, por exemplo, pelas pedagogias culturais (MARTINS & TOURINHO, 2014).

Mas essa possibilidade não deve dar lugar à ingenuidade de supor que tais relações possam se dar sem tensões ou conflitos. A reivindicação de superação dos binômios centro/periferia e centro/borda não pode ser entendida como se tais binômios tenham sido efetivamente superados. Tampouco a reivindicação da condição dialogal equiparada entre pesquisador e agentes de cultura que integram a pesquisa não altera a condição de discriminação com a qual esses produtores se deparam em relação aos circuitos legitimados de arte e cultura.

As tensões decorrentes desses (des)encontros sugerem a urgência no exercício crítico a respeito de alguns discursos correntes no seio das discussões sobre cultura contemporânea, e suas contradições. A Declaração da pós-modernidade anacrônica (MARTINS, 2013, p. 167-168) resulta de um esforço nessa direção, como quadro-síntese de um conjunto de desconfortos que movem o projeto de pesquisa gerador deste texto:

1. Declaro a morte do autor formal. Ao final, assino o texto, publico e cobro o pagamento dos direitos autorais.

2. Declaro a morte do artista autoral. E inscrevo meu último trabalho no próximo salão de artes, exijo que meu nome conste do catálogo, e registro essa referência em meu portfólio cada vez mais numeroso em itens e títulos.

3. Declaro a dissolução do binômio erudito/popular (mas não a extinção da separação entre ricos e pobres...). E absorvo em minha obra elementos da produção de atores inominados da cultura, e apresento os resultados entre meus pares, ganhando reconhecimento pela ousadia e pelo sentido de ruptura de que o meu trabalho esteja impregnado.

4. Declaro a quebra das estruturas hierárquicas que cristalizam as relações de poder. Depois, tranco a chaves a porta da sala de cristal onde me abrigo à sombra do poder, evocando para mim o papel de porta-voz da revolução possível.

5. Declaro o desfazimento das fronteiras. E, da janela do avião, olho a paisagem sem qualquer envolvimento. E, nos percursos entre aeroportos e hotéis, não arrisco ultrapassar as outras fronteiras que preservam meu conforto em condições privilegiadas de instalação.

6. Declaro instaurada a pós-modernidade desterritorializada, portadora de múltiplas identidades, marcada pelos fluxos em escala planetária de pessoas, imagens, informações, capitais, desejos. Depois de redirecionar meus saldos bancários para melhores investimentos ao momento, recolho-me aos jardins de inverno do meu palácio, onde posso brindar com meus convivas, enquanto a corveia anônima prepara o lauto banquete do qual não tomará parte ativa alguma.

Mas, por outra,... et pur si muove!... Ponto.

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Referências

BENJAMIN, W. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DELEUZE, G. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Editora 34, 1992

HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

LYRA, B. & SANTANA, G. (Orgs.). Cinema de bordas. São Paulo: A Lápis, 2006, pp. 08-15.

MARTINS, A. F. Catadores de sucata da indústria cultural. Goiânia: Editora da UFG, 2013.

MARTINS, R. & TOURINHO, I. Pedagogias culturais. Santa Maria: Editora da UFSM, 2014.

SANTANA, G. (org.). Cinema de bordas 2. São Paulo: A Lápis, 2008.

Alice Fatima Martins é arte-educadora (UnB) com experiência na Educação básica e na formação de professores. Mestre em Educação UnB) doutora em sociologia (UnB) pós-doutora em Estudos culturais (UFRJ), professora do curso de licenciatura em artes visuais e docente permanente do programa de pós- graduação em Arte e Cultura Visual da Faculdade de Artes Visuais da UFG. Pesquisadora do PACC/UFRJ. E.mail: profalice2fm@gmail.com