Repensar/reclamar uma noção de tempo para a arte e criatividade no conjunto das atividades de aprendizagem humana

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Repensar/reclamar uma noção de tempo para a arte e criatividade no conjunto das atividades de aprendizagem humana

Leonardo Charréu

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A criatividade é uma habilidade, um desempenho. Ela é entendida como estando ao serviço da solução de problemas e, portanto, da inteligência, atuando aí apenas como um fator de divergência em relação às soluções habituais (Kastrup, 2007, p19).

O tempo domesticado é anti-criativo (em educação e… no resto das atividades humanas)

Um importante pedagogo contemporâneo, Andy Hargreaves, é ainda mais radical do que o epíteto “anti-criativo” utilizado no texto deste ponto, ao considerar o tempo como inimigo da liberdade. Segundo este autor, o tempo “influencia a realização dos seus desejos (dos professores), reprime a concretização das suas vontades, afeta o problema da inovação e desconcerta a implementação da mudança” (HARGREAVES, 1998, p. 105).

A escola e as práticas de escolarização impõem uma relação muito particular entre o aprendente e um conteúdo dado que, obrigatoriamente, têm que se encaixar numa organização artificial e fragmentária do conhecimento e do tempo. Na escola tradicional o conhecimento está distribuído em disciplinas e estas expressam-se, cumulativamente, em unidades ou períodos que vão de 40, 45 ou 50 minutos a 1 hora, ao longo da jornada escolar. Algumas disciplinas mais importantes podem gozar de uma maior amplitude horária como é também comum em muitos currículos escolares em várias partes do mundo.

Em certa medida esta organização temporal reflete uma parte daquilo que se pode designar como “narrativa”, que Fernando Hernández (2007, p. 11) define como “a forma de se estabelecer a maneira como há de ser pensada e vivida a experiência”, neste caso a experiência escolar.

O que acontece então é que estão naturalizadas uma série narrativas, quer da organização, quer da práxis escolar, que impede a adoção de propostas alternativas em relação àquilo que se pensou de uma determinada forma e que se julga preferível a qualquer outra que seja diferente. Entre essas narrativas que teimosamente povoam o cotidiano escolar destacam-se pelo menos três que têm relação com esta parte introdutória deste texto. Julga-se que:

  • acondicionar o conhecimento em disciplinas, separadas de forma estanque, é a melhor forma de organizar e planejar os conteúdos que se devem ensinar;
  • os horários fragmentados em unidades de tempo, sequenciados como uma grade de uma estação de televisão, são a única maneira de organizar o tempo escolar e, por fim;
  • a memória, o exercício e a repetição são as melhores formas de favorecer a (suposta) aprendizagem dos alunos.

A pós-modernidade que se caracteriza por saltos tecnológicos muito grandes, dos quais a ascensão meteórica das grandes corporações multinacionais de comunicação, que utilizam basicamente a internet (Google, Facebook, Twitter etc.) são um bom exemplo, caraterizam-se pela instantaneidade da comunicação tornando as distâncias irrelevantes e fazendo com que “o tempo se transforme num dos bens mais preciosos à superfície da terra” (HARGREAVES, 1998, p. 91).

Ora sabemos pelos estudos sobre criatividade e, muito particularmente, a partir das biografias dos artistas, dos seus “escritos”, das suas entrevistas e práticas artísticas, que na sua produção se oscila, frequentemente, entre várias disciplinas para se chegar, por fim, à realização da obra de arte. O mesmo ocorre em muitas áreas da ciência. Ou seja, a relação entre o produtor (artista, cientista...) e o objeto criativo produzido, funcionam numa outra lógica de utilização do chamado cronotempo.

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É inimaginável, por exemplo, uma pausa (para cumprir uma suposta unidade de 50 minutos) realizada por um(a) artista ceramista, na hora de modelar uma peça realizada com matérias de secagem rápida e que exigem um “iniciar” e um “finalizar” da forma, independentemente da duração temporal de tal operação, devido às condicionantes físico-químicas dos materiais. O mesmo se pode dizer no controlo da cozedura em forno cerâmico que requer uma tenção à curva temporal, para arrefecimento gradual, e que requer uma atenção e sensibilidade constante à performance do equipamento que pode durar horas se quiserem explorar determinados efeitos estéticos e plásticos proporcionados pela tecnologia.

Esta relação com o tempo também se coloca frequentemente quando se trabalha com pastas, resinas acrílicas, silicones, polímeros e outros materiais que exigem, ora por vezes longos processos de execução ou, ao invés, processo muito rápidos de conformação.

No campo da ciência, muitos cientistas não podem deixar experiências a meio, cortadas pelas tais unidades “escolares” de 50 minutos. Precisam observar como se desenvolvem as culturas bacteriológicas na placa de Petri, como se desenvolvem as espécies, como reage um ácido, cresce uma planta, se move um planeta... Então, se assim é, porque continua a práxis escolar a basear-se em uma relação fatiada do cronotempo com o conhecimento que nele é suposto desenvolver-se? Quantos projetos, quantas ideias criativas são cortadas pelo toque de uma campainha? Pela urgência artificial de ir de uma sala para outra, nesse nomadismo disciplinar que faz parte do cotidiano escolar e que raramente permite o amadurecimento e a experimentação de uma ideia criativa.

Figura 1: Macaca e seu filhote (Orig. franc. “La guenon et son petit”), 1951, cerâmica, dois automóveis de brinquedo, metal e gesso (56 x 34 x 71 cm). Museu Picasso, Paris. (www.museepicassoparis.fr , baixado em 12/09/2014)

Imaginemos, por um só momento, Picasso a trabalhar na peça “macaca e seu filhote” (Figura 1) importante escultura do artista. Uma parte foi realizada com materiais recuperados do lixo e “refuncionalizados”.

Um dado importante da obra é a mistura de materiais e de pastas (cerâmica e gesso) com tempos diferentes de secagem e que deve ter requerido, potencialmente, da parte do artista, um uso do tempo bem distendido até chegar à forma final. Por outras palavras, esta escultura nunca teria sido possível realizar sob o domínio de um tempo fatiado como é usual na escola tradicional.

Imaginemos também, num polo oposto, mas comunicante, o casal Pierre e Marie Curie, ou Fleming, ou outro(s) cientista(s) qualquer (quaisquer) a terem que interromper as suas experiências fundamentais que os levaram a grandes descobertas científicas da humanidade em troca de um hipotético cumprimento de um “tempo” cronológico, pois que Hargreaves (1998, p. 105 e segs.) considera a existência de vários tipos de tempo (o tempo técnico-racional, o tempo micropolítico, o tempo fenomenológico e o tempo sociopolítico). O tempo “técnico racional” será o que mais coincide com este cronotempo e o que mais se aproxima deste conceito de tempo utilizado na escola e na maioria das organizações humanas.

O que vimos atrás, é que o pulsar da vida criativa, na arte e na ciência, parece não ter nenhuma relação com os modos atuais de organização e de vivência escolar. Um dia que escola funcionar como funcionam os cientistas e os cientistas tornar-se-á um lugar bem mais interessante para quem a habita, consequentemente, deveríamos estudar mais as práticas de atelier e de laboratório antes de pensarmos em qualquer reforma educativa.

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A (dis)função da escola face aos desafios da contemporaneidade

Muitas das nossas escolas e dos nossos professores continuam a funcionar em função da época da indústria mecânica pesada, quando a justificação racionalista-economicista da educação hoje (pelo menos nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas) já nem sequer passa pela revolução industrial, mas sim pela revolução informática, como nos alertou Lyotard (1989) há mais de duas décadas.

Muitas das escolas continuam então com professores isolados processando fornadas de jovens constituídos por turmas ou por níveis de aptidão, em grupos construídos com base em critérios discriminatórios que passam por considerar e agrupar em determinadas turmas os jovens com capacidade para chegar à universidade e, noutras turmas, os “outros”. Sabemos hoje que esta separação que parte de uma posição que encerra muito comodismo por parte dos professores (quando concebem a constituição das turmas) em pouco ou nada ajuda a uma integração e motivação de muitos destes jovens duplamente excluídos (porque já o são socialmente).

Em suma, as estruturas básicas da escolaridade e de ensino foram estabelecidas para servir outros objetivos noutras épocas ao passo que a sociedade de move no sentido de uma época pós-industrial e pós-moderna, as nossas escolas e os seus professores continuam apegados a edifícios de burocracia e de modernidade que se encontram em desagregação; a hierarquias rígidas, salas de aula isoladas, departamentos segregados, (muitos dos professores de artes visuais têm razões para se sentirem assim) e estruturas de carreira ultrapassadas (HARGREAVES, 1998: x)

A cultura está a transitar de uma modalidade escrita para uma modalidade visual, dentro de um mundo de grande complexidade tecnológica, o que leva as novas tecnologias a colocarem questões importantes para as relações entre professores e estudantes, entre o quotidiano escolar e o quotidiano familiar, entre este último e o mundo que se estende para fora da escola. Frente ao fascínio por este imaginário de alta tecnologia o velho discurso escolar oferece, na opinião de Hargreaves, Earl & Ryan, (1998, p. 255), pouca competência. Por isso, julgamos então haver razão para afirmarmos que as forças de mudança tenderão a dissolver as fronteiras entre escola e comunidade (ELKIND, 1993).

Mudar os professores supõe mudar as pessoas e esse é um processo lento” (GODSON, 1992 e FULLAN & HARGREAVES, 1991) isto significaria que as novas estratégias de ensino deveriam pôr-se em prática a um ritmo determinado e com a flexibilidade suficiente de modo a que os professores pudessem adotá-las e adaptar-se a elas com comodidade.

Seria injusto e pouco realista e inútil esperar que os professores mudem também espetacularmente a sua forma de ensinar e que para além disso, o façam num curto espaço de tempo. Mas já é mais justo, realista, e provavelmente, demonstrará ser mais efetivo, esperar que se comprometam a procurar uma contínua melhoria entre a sua comunidade de colegas e que sejam capazes de experimentar novas estratégias de ensino como parte desse compromisso. Ao tratar de melhorar as estratégias de ensino normalmente inclinamo-nos para a «conversão», quando fazê-lo para a «extensão» seria um objectivo muito mais prático e mais produtivo (HARGREAVES, EARL & RYAN, 1998, p. 250).

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Não se trata portanto de nos convertermos mas sim de nos expandirmos e isso passa por adoptarmos culturas profissionais mais colaborativas e abandonarmos a cultura individualista que ainda continua a ser uma imagem de marca da profissão docente.

As escolas secundárias defrontam agora novos desafios significativos. Não se trata de vagas necessidades abstratas e futuristas colocadas pela chegada de um novo século. As mudanças já estão ocorrendo, com maior ou menor intensidade, no interior das salas de aula. As escolas e os professores encontram-se imersos numa transformação mundial da política, da economia, da tecnologia, da cultura, da moral, e da vida quotidiana. As estruturas familiares estão a mudar, as relações tornam-se mais frágeis e mais temporais. E o conceito de si mesmos e as identidades dos jovens (rapazes e raparigas) correm agora mais riscos do que nunca. (HARGREAVES, 1998).

Em regra, apesar de viverem numa iconoesfera (na expressão de FERRONHA, 2001), termo já referido por nós anteriormente, os jovens tendem a não refletir sobre as imagens a partir de uma perspectiva crítica (BEACH & FREEDMAN, 1992, cit. FREEDMAN, 1997, p. 269), tendem, portanto, a não compreender o poder comunicativo do mundo simbólico de raiz visual que os rodeiam ou a olhar criticamente as imagens, a não ser que sejam ensinados para o fazerem.

Como assinalou Freedman (1997a) infelizmente o currículo procura frequentemente filtrar e remover o conhecimento que já não considera legitimo. Mas o currículo não é uma abstração sem responsabilidade. Normalmente, é mais um “instrumento” apetecível para qualquer poder político que, em regra, demonstra um apetite muito voraz pelos aspectos educativos de uma sociedade, mesmo os mais prosaicos.

Para alguns autores como Hernandéz (2000, p. 129 e segs.), Efland, Freedman e Stuhr (1996, p. 42) Freedman (1997b, p. 51) a educação já não pode confinar-se ao ensino de aspectos selecionados da cultura, mas ser endereçada à experiência cultural dos jovens, entendida como totalidade. Assim a educação deveria focar-se não apenas na distribuição da informação factual, da alta cultura, e da produção artística dos próprios jovens, mas também deveria incluir a discussão e o debate sobre as formas de cultura popular que são determinantes na influência que exercem sobre o conhecimento do estudante (FREEDMAN, 1997b, p. 46).

A Educação Artística – que será mais do que “Educação Visual”– deverá então “manter um mínimo de conexão com os problemas culturais do seu tempo” (PERELA, 1991, p. 243). Isto passa por considerar que:

  • a criação artística (considerada como mais um elemento do nosso sistema cultural) está intimamente relacionada com as variáveis que compõem o dito sistema, de maneira que deverá submeter-se ao quadro estrutural, aos meios tecnológicos, aos nossos modelos de pensamento e, dentro destes últimos, às preocupações e questões estéticas geradas no seio da nossa sociedade;
  • a criação artística continuou a penetrar o âmbito da atividade intelectual relegando os processo materiais para um plano secundário. Fato que ocorreu e se desenvolveu, com inúmeras estratégias, durante todo o século XX. A educação artística de hoje não deverá apenas conceber-se como uma “educação perceptiva” passiva e limitada às instâncias mais elementares das nossas relações com o fato visual ou  artístico, ou como uma educação ativa frente os processos criativos de simples valor decorativo (perceptivo). Hoje a educação artística deve assumir uma concepção formativa integral, comprometida com a nossa cultura e com o perfil ou os perfis que, numa perspectiva de pluralismo, lhe corresponderá. Isto passa pela revalorização os seu fundamento intelectual e do seu compromisso com a aventura do nosso conhecimento.
  • então, a criação artística e o seu ensino, deve conceber-se a partir de um novo ponto de vista abandonando definitivamente os esquemas obsoletos articulados em função da proeminência do processo material e baseados na estanquicidade da aprendizagem. Assim a “integração das artes” segue a par com a “integração dos conhecimentos” sendo atribuída à criação artística a mesma importância que é atribuída a qualquer outro campo do conhecimento que proporcione ao aluno “mais uma forma” de relacionar-se integralmente com o mundo exterior (PERELA, 1991, p. 243).
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Assim, da mesma forma que na época da generalização da palavra impressa o papel da educação era o de ensinar as pessoas a ler e escrever, hoje na época da generalização da arte, que chega com a maior das facilidades à nossa percepção (via televisão, cinema video-documentário, internet, etc.) o papel da educação deveria ser o de lutar contra o analfabetismo estético (MENDÉZ, 1991, p. 125), mas também o de assumir a mudança paradigmática que procuramos identificar no ponto anterior e constituir-se como mais um meio de compreensão da(s) cultura(s) humana.

A educação, desde a idade mais precoce, deve então servir para despertar e formar nos alunos a vocação e a capacidade de aproveitar não só os livros, o teatro e os museus mas também o cinema, a rádio, a televisão, a internet, os originais ou as reproduções das obras pictóricas e musicais. A escola do futuro, segundo o que Mendéz já tinha referido há mais de vinte anos atrás (MENDÉZ, 1991, p. 125), deverá realizar um grande esforço com vista a integrar os múltiplos elementos da cultura artística para formar a “capacidade de compreensão e de utilização” desta multifacetada linguagem artística “em igualdade com a linguagem técnico-científica”. Algo que, como sabemos, está ainda num estado muito embrionário, pese embora a quantidade de literatura desenvolvida sobre a importância e a necessidade das artes na educação e das pontes que são necessárias fazer para que ambas saiam resolutamente para fora do seu âmbito restrito, afetando o tecido social onde teriam mais significado e relevância.

Uma invenção criativa banal interligada com episódios autobiográficos.

Segundo Kastrup, (2007, p. 17O) os estudos sobre criatividade surgem na literatura psicológica a partir de 1950, e daí para cá têm vindo a ocupar um espaço considerável, sobretudo nos anos 60 e 70, em particular nos estados Unidos.

O texto que segue não procura mapear exaustivamente a criatividade nas esferas de atividade humana. Antes, procura dar conta de um episódio autobiográfico com conexões com um invento (a esfregona) que levou a uma reflexão rizomática que atravessa a arqueologia, a criatividade a sua aplicação e, penso, uma certo benefício social que toda a criatividade deve contemplar. Mesmo que a história que a seguir se conta possa parecer um pouco hilária, ou um pouco ingénua, na sua intencionalidade, ela busca atingir uma conexão entre determinados aspectos da nossa biografia pessoal e os conceitos com que nos deparamos nas situações mais imprevistas.

Em meados dos anos 90 tive a oportunidade de participar em várias campanhas arqueológicas na região de Coimbra, em Portugal, na cidade romana de Conímbriga, período romano, e na igreja de Santa Clara-a-velha, período medieval, situada na margem esquerda do rio Mondego da histórica cidade universitária.

Estava terminando meu mestrado em História da Arte na Universidade Nova de Lisboa, onde tive a oportunidade conhecer um grupo significativo de arqueólogos portugueses, assim como experimentar em várias regiões do país a prática dessa fascinante ciência que é a arqueologia.

Fascinou-me, em particular, o levantamento de vários esqueletos de freiras clarissas, do século XIV, no cemitério claustral do velho mosteiro coimbrão, que tem a peculiaridade de se ter afundado pelo chão dentro devido à instabilidade freática subterrânea dos terrenos pantanosos onde foi edificado. Nessa altura tive a oportunidade de assistir, num congresso de arqueologia, àquilo que já tinha visto ao vivo “in situ” nos cortes do campo arqueológico de Santa Clara. Eugénia Cunha, antropóloga da Universidade de Coimbra, tinha estudado os esqueletos e notado caraterísticas dominantes nos ossos, na zona dos joelhos, dos esqueletos das freiras. Estavam visivelmente deformados (quase lisos) por práticas muito prolongadas (vidas inteiras, na verdade) de genuflexão, provavelmente nas práticas oratórias. Impressionou-me bastante o fato dos corpos mostrarem sinais dos aspetos sociais, culturais e religiosos da vida das pessoas que os “habitaram”.

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Alguns meses depois, em Lisboa, estacionado com o meu velhinho Renault 5, verde, comprado com alguma ferrugem, mas um excelente motor, para aí, em quinta mão (?) em França, Departamento 47, numa das campanhas como trabalhador agrícola que ali fazia, no verão, apanhando fruta em pomares, para custear os meus estudos superiores, dei comigo a observar os aspectos prosaicos da vida da cidade. Eu chegava sempre muito cedo para conseguir lugar de estacionamento junto à Faculdade e não ter que perder muito tempo. Isto permitia-me, literalmente, poder ir correndo para o meu automóvel e regressar novamente, acelerando, ao interior rural de Portugal, onde lecionava Ensino Médio numa das escolas de Santarém, a capital do Ribatejo.

Ali, na capital portuguesa, ao alvor do dia, ia apreciando o desenrolar da vida quotidiana da cidade, as pessoas que passavam, o polícia pendular, para cima e para baixo, a senhora de preto, elegante nos saltos altos de agulha, que passava sempre à mesma hora (7h25m) no sentido descendente... enfim, as rotinas foram sendo absorvidas com o passar dos meses. E assim esperava quase duas horas até que os portões da faculdade abrissem. Por vezes adormecia de cansaço e era acordado pelo polícia com dois toques no vidro do carro. Ele conhecia também as rotinas dos ocupantes sazonais da rua e eu ocupei inofensivamente aquele lugar daquela Avenida 5 de Outubro o período das manhãs, entre finais de Setembro e finais de Junho, numa altura em que o estacionamento automóvel ainda não tinha sido transformado em negócio. Chegava invariavelmente noite escura e ficava a ver o dia clarear.

Desta rotina fazia parte, a partir das 8h, as operações de limpeza que duas senhoras imigrantes, africanas, muito gordas, realizavam à frente do Edifício do Banco Nacional Ultramarino. Mais metro, menos metro, eu estacionava sempre por ali, no outro lado da Avenida. Sobre o chão de rocha granito escura e polida, as senhoras, de joelhos, lado a lado, iam lavando o chão com um esfregão de mão, seguindo uma ao lado da outra, empurrando cada uma seu balde, falando crioulo sem parar, não sei se para protestar contra algo ou alguém, se para amenizar a dureza daquele trabalho. Nas cabeças, dois lenços garridos, de cores quentes, contrastavam com uma bata azul clara uniformizadora.

Figura 2: Publicidade ao “novo” esfregão em Portugal, esfregona, em espanha “lavasuelos” ou “fregona”) (sobreorisco.blogspot.com.br , baixado em 10/09/2014)

Lembrei-me dos ossos planos dos joelhos dos esqueletos das freiras clarissas de Coimbra que viveram outro tempo, outro lugar e, provavelmente, outra fé. E um certo dia fui à feira de Marinhais, uma povoaçãozinha próxima de minha cidade. Nesta terra realiza-se uma feira todos os penúltimos domingos de cada mês. É daquelas feiras onde se vende de tudo: ferramentas, sapatos, roupa, comida, pintos para criação, gado, mobiliário, guloseimas, utensílios de cozinha, vassouras, baldes e esfregões... roupa contrafeita, perfumes de imitação. Literalmente tudo o que se precisa e o que não precisa. Eu precisei, literalmente, de comprar dois baldes com dois esfregões com vara. A vantagem das feiras populares é que podemos regatear os preços. E eu regateei. Setenta e cinco escudos cada um, cento e cinquenta os dois.

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Na segunda feira seguinte, depois de esperar, no meu automóvel, pelas oito da manhã, hora a que as duas mulheres, invariavelmente, iniciavam a sua jornada de trabalho, sai do carro, abri o porta mala e retirei os baldes e as esfregonas (que seguiam, meio atravessadas, no banco de trás) e dei-as com o meu melhor sorriso a essas mulheres que se entreolharam, bem admiradas. Ficaram um momento expectantes, atrapalhadas com essa situação imprevista. “Ofereço! São oferecidas” Disse eu com delicadeza. Logo soltaram um “Muito obrigado siô!” quase simultâneo.

Não foi preciso muito para que entendessem como “funcionava” ergonomicamente aquele equipamento de limpeza, que permitia fazer exatamente o mesmo trabalho, de pé, sem experimentar a dor física do contato dos joelhos com o chão. Fui presenteado, todas as manhãs, com um largo sorriso daqueles rostos grandes e redondos, durante um bom par de meses. Os “chefes” da empresa de limpeza, que passavam com uma camionete, no final da manhã, a recolher este pessoal, não tiveram outro remédio senão aceitar a inovação. Senti uma enorme satisfação. Um sentimento difícil de descrever.

Mas onde entra a criatividade neste episódio? O que se pode extrair educativamente dele? Não deixa de ser curiosa a relação entre a arqueologia e a invenção sublinhada por Virginia Kastrup:

O que deve ser entendido como invenção, retorno a etimologia da palavra latina invenire, que significa encontrar relíquias ou restos arqueológicos (...). Tal etimologia indica o caminho a ser seguido: a invenção não opera sob o signo da iluminação súbita, da instantaneidade. Esta é somente sua fenomenologia, a forma como ela se dá à visibilidade. A invenção implica  uma duração, um trabalho com restos, uma preparação que ocorre no avesso do plano das formas visíveis. Ela é uma prática de tateio, de experimentação, e é nessa experimentação que se dá o choque mais ou menos inesperado com a matéria (KASTRUP, 2007, p. 27).

Na realidade a esfregona (esfregão com vara, ou pau) foi “inventada” e foi o resultado de um processo criativo. Ela não nasceu assim com essa configuração, fruto do acaso.  Ficamos até com a sensação que é/foi feita com “restos”. Na realidade “a criação pode ser medida através de várias formas e em diversas dimensões; pode ser verificada quanto ao processo criador e quanto ao produto que dele resulta”(MARIN, 1976, p. 41). E a criatividade não é apenas apanágio de um grupo restrito de iluminados, ao invés ela “é, portanto, inerente à condição humana” (OSTROWER, 1997, p. 53) ou “distribuída, até certo ponto, por todos seres humanos” (KASTRUP, 2007, p. 17).

Essa invenção está bem datada (finais dos anos cinquenta do século passado) ainda que não haja unanimidade entre as fontes web pesquisadas sobre a paternidade da invenção.

Segundo algumas fontes foi Emilio Bellvis Montesano, segundo outras, foi o engenheiro aeronáutico Manuel Jalón Corominas. Todas confluem na nacionalidade do inventor: espanhola, e no local da apresentação desse “invento”: a feira de Saragoça, em Espanha realizada em 1958, onde a 23 de dezembro foi apresentado esse extraordinário invento. Já foi replicado mais de 100 milhões de vezes em modelos cada vez mais diversificados mas que seguem, no essencial, a simplicidade do processo.

Segundo Modinger, (2012, p. 45) “o pensamento criativo, ou ato de criação, provoca abertura ao inesperado, à imaginação, ao lúdico, a associação inusitadas”. Neste caso, um pau com algodão, no caso de outro invento, também radicalmente simples: o chupa chups, um pequeno pau (ou pequeno bastão de plástico, ou de papel encerado enrolado) com um rebuçado esférico na ponta, permite ir saboreando sem lambuzar os dedos.

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E o que estes dois inventos nos ensinam, porque é de um inventos que se trata, é que o resultado da criatividade aplicada pode ser radicalmente simples. No caso da esfregona, um pau, ou uma vara curta, de madeira (plástico, ou metal) com umas fibras grossas de algodão ou tecidos absorventes numa ponta, que pode ser torcido e exprimido num nicho vazado, preso horizontalmente sobre um dos bordos de um balde.

O processo de melhoria deste invento, que nos interessa, precisou do “seu” tempo. Testou-se vários tipos de tecidos absorventes até se chegar à opção final e mais comum hoje em dia. Consequentemente, o tempo utilizado na progressão e melhoria qualitativa do invento foi relativamente distendido.

Em educação, por vezes, faz falta essa “paciência” temporal para desenvolver ideias simples e torná-las mais eficazes. Na realidade, com bem ressalta Virgínia Kastrup:

a invenção implica o tempo. Ela não se faz contra a memória, mas com a memória, como indica a raiz comum a invenção e inventário. Ela não é corte, mas composição e recomposição incessante. A memória não é aqui uma função psicológica, mas  o campo ontológico do qual toda a invenção pode advir. Não é a reserva particular de um sujeito, nem se confunde como o mundo dos objetos. Ela é a condição mesma do sujeito e do objeto (KASTRUP, 2007, 27).

Por outro lado, é importante fazer deslocar as questões da criatividade de uma certa esfera elitista, que é normalmente absorvida pelas artes, para um terreno mais vernacular, mais próximo do cotidiano do indivíduo. Sobretudo que tenha, de algum modo, uma aplicabilidade, que faça parte de uma práxis. Em suma, como bem afirma Ostrower:

A imaginação criativa foi definida por nós como um pensar específico sobre um fazer concreto. O pensamento se torna necessariamente específico ao indagar a natureza da matéria através de formas que são referidas a ela. Nesse processo, a especificidade se confunde com ampliação de possibilidades. Acrescentamos aqui que isso jamais significa que à especificidade de propostas de pesquisa devam ou possam corresponder especializações em nosso vivenciar, compartimentos estanques na experiência vivida. (OSTROWER, 1997, p. 38).

Continuando com a ideia da criatividade ligada a um “fazer concreto”, ou a uma resolução para um problema, Virgínia Kastrup acrescenta que

a noção de criatividade mistura duas tendências que, segundo Bergson, diferem em natureza. Por um lado, ela é definida como função de criação, por outro, como solução de problemas. A criação encontra-se, então a serviço de problemas já dados, que são, em ultima análise, os da sociedade (...)(KASTRUP, 2007, p. 19).

Assim, a uma criatividade, que pode ser artística, e que tem uma “utilidade” mais intelectual, do que efetivamente prática, contrapõe-se uma outra criatividade aplicada à solução de problemas. Esta última é de natureza diferente e até acontece que podem ser permutáveis.

Figura 3 – Theo Jansen “Animal Cinético” (Strandbeests) (Tubos de plástico de uso comum, garrafas de plástico vazias, tecido, baixado de www.jebiga.com , em 10/08/2014)

São bem conhecidas as esculturas-brinquedo-cinéticas do neerlandês Theo Jansen. No seu trabalho (ver um magnífico resumo em vimeo.com ) fica difícil perceber a “utilidade” de todos os mecanismos movidos a vento ou a força humana. Em todo o caso, o que se sente, ao ver as suas mega-esculturas movendo-se, como seres vivos, é algo que dificilmente se pode traduzir em palavras. Sente-se, nestes trabalhos, que o caminho para uma aplicação mecânica é muito curto. E, portanto, para uma solução de um qualquer problema.

Recuperando a tese inicial que aqui se discute, não nos parece viável que tal produção artística e criativa tenha sido possível dentro de um tempo de idealização e concepção espartilhado. E essa é, infelizmente, a prática da escola.

Quando conseguir sair desse colete de forças definido pela divisão cronométrica do tempo e pelo funcionamento estanque das disciplinas, augurar-se-ão tempos bem instigantes para a educação contemporânea. 

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Leonardo Augusto Verde Reis Charréu - Licenciado em Artes Plásticas (Pintura) pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto (1990). Mestre em História da Arte pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (1995). Doutor em Belles Arts pela Universitat de Barcelona, Espanha (2004) e Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Évora (2004). Atualmente é Professor Adjunto I do Departamento de Artes Visuais, Centro de Artes e Letras, da Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil, atuando nos cursos de Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais e no Programa de Pós Graduação em Educação. Foi professor visitante na Universitat de Barcelona, entre 2007 e 2010. É investigador colaborador do Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade, da Universidade do Porto (I2ADS). Pesquisador membro efetivo e vice-líder do GEPAEC - Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura, do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria. Neste grupo coordena o NEPIC (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ilustração Científica). Desenvolve pesquisa na área de Educação, com ênfase em Educação das Artes Visuais, atuando principalmente nos seguintes temas: Formação de Professores e Educadores de Artes Visuais, Cultura Visual, Pedagogia Crítica em Artes Visuais, Arte e Cognição (ilustração científica), Metodologias Artísticas de Pesquisa e Transdisciplinaridades.