Imagens e cotidiano escolar - entre Foucault, Deleuze e outros afins

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Imagens e cotidiano escolar - entre Foucault, Deleuze e outros afins

Donald Hugh de Barros Kerr Junior

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Venho realizando ao longo da última década, observações e inferências sobre procedimentos utilizados em propostas pedagógicas em arte que especificam a imagem no cotidiano escolar. Na grande maioria dos congressos ou seminários ocorridos neste país, dos quais participo, quando os professores relatam que realizam práticas com imagem em sala de aula, predomina a utilização da “Proposta Triangular”, muito em voga desde a década de 1990.

Mas, a Proposta Triangular, que apresentou aos professores de arte brasileiros a possibilidade de trabalhar com a “re-leitura”, foi simplificada: o professor escolhe e mostra uma imagem aos alunos, geralmente de uma pintura já consagrada, pedindo que realizem um trabalho “parecido” ou no mesmo estilo, e que, ao mesmo tempo, contemple alguma diferença em relação à imagem original. O professor dá informações sobre a obra escolhida, autor, técnica, datas, movimento artístico ao qual ela pertence. Após, desenvolve o trabalho plástico, seguindo como parâmetro o estilo formal da obra. Ainda que utilizando giz de cera, orienta a busca de efeitos que só a tinta a óleo pode dar. No trabalho, o aluno deverá preservar, de alguma maneira, uma forma própria de compor a imagem. Na verdade, esta é uma mera tarefa que reduz a arte à “cópia”, bem distante do que Ana Mae Barbosa e a Proposta Triangular busca nos seus pressupostos metodológicos e filosóficos. A ação de “re-ler” obras de arte torna-se rotineira para os professores, o que conduz a pensar na diferença entre o antigo modelo da folha mimeografada, por exemplo, e o que os professores de arte acabam fazendo com as “re-leituras”.

Dentre as dificuldades observadas nos relatos, comunicações e artigos dos professores, nota-se certo aprisionamento àquela ideia tradicional, em que o desenho, por exemplo, serviria para ilustrar os trabalhos de português, ciências, geografia e para formar hábitos de limpeza, ordem e atenção [...] (ALMEIDA, 2001, p. 11). Deste modo, muitos professores reafirmam o caráter meramente instrumental e utilitário de uma arte que perde sua força e impacto transformador. São procedimentos que acabam confirmando que a imagem na escola, em grande parte, é tratada como ilustração e não como pensamento (DELEUZE, 2005, p. 93). Diante desta realidade encontrada nas salas de aula, pergunto: que alternativas podem ser levantadas no sentido de atualizar o uso da imagem em sala de aula? Como fugir dos estereótipos? É necessário um “novo modelo”? Mais uma proposta metodológica? São estas questões, dentre outras, que venho encaminhando, uma prática pedagógica com imagens da arte a partir do conceito de experiência.

Como constatação dos dados encontrados, percebe-se que muitas vezes, não há, por parte dos professores, a percepção do processo imaginativo, de criação e experimentação que viveu o artista até chegar aos seus resultados. Acredita-se, como algo que foge à previsão de Barbosa (1987), que a forma “triangular” de lidar com as imagens no ensino de arte tornou-se um modelo redutor e inexpressivo, assim como a folha mimeografada, tendo a “releitura” se tornado mais um modismo.

Nas investigações, nota-se que na maioria dos relatos sobre o desenvolvimento da “Proposta Triangular” e de outras, quando surgem, os resultados estão muito aquém do que é possível alcançar quando se quer tratar de arte como provocação, invenção, criação, como bloco de sensações. Como afirma Deleuze, a sensação é o contrário do fácil e do lugar-comum, do clichê, mas também do sensacional do espontâneo, etc. (2007b, p. 42). A sensação possui dois lados que são indissolúveis, é ser no mundo, e ao mesmo tempo, eu me torno na sensação e alguma coisa acontece pela sensação (idem, p. 42). O que nos reserva o encontro das sensações com a imagem contemporânea? Como pensar em uma imagem como uma totalidade múltipla? O conceito de heterotopia, crucial no pensamento de Foucault, passando pela estética, pela epistemologia, e pela política, nos provocando a perceber que algo pode romper com a sintaxe e se apresentar pela sensação.

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As heterotopias inquietam, sem dúvida, porque elas minam secretamente a linguagem, porque elas impedem de chamar isto e aquilo, porque elas rompem os nomes comuns ou os emaranham, porque elas arruínam antecipadamente a "sintaxe", e não somente va que constrói as frases - aquela menos manifesta que faz manter conjunto (ao lado e a frente umas das outras) as palavras e as coisas. (FOUCAULT, 1966a, p. 9)

Inventar novas possibilidades com as imagens é central para romper com os modos hegemônicos da linguagem, que definem, normatizam e enclausuram diferentes formas de ver e inventar com as imagens na escola.

[...] e é por isso que é preciso constantemente inventar, para a própria linguagem, novas regras operatórias destinadas a abrir as possibilidades de um conhecimento das "relações íntimas e secretas" entre as coisas. (DIDI-HUBERMAN apud ARTIÈRES; BERT; GROS & REVEL, 2014, p. 244)

Para que essas novas regras possam surgir, a fundamentação conceitual que venho investigando – a imagem cotidiana da arte na sala de aula, tem em sua base o conceito de experiência trazido por Jorge Larrosa, em no texto Notas sobre a experiência e o saber de experiência , no qual ele define um sujeito da experiência como alguém que se transforma e Foucault, quando ele aproxima experiência e linguagem, dizendo que seus escritos não são simplesmente exercícios com a linguagem o acerca dele, uma experiência é algo que um sujeito sai transformado: "não só porque afectam de modo singular a quem lê - como a quem os escreve - , até alterar aspectos concretos em seu modo de ser," (GABILONDO, 2004, p. 14) ambos falam de uma experiência que transforma que abre linhas de fuga, que é gesto, dança, tensão.

Voltando a Larrosa, a experiência tem sido cada vez mais rara exatamente por um excesso de opinião. Colocamos a opinião à frente da experiência, atitude que não permite o deslizamento. Tal excesso de opinião vem em decorrência da quantidade de informações que se tem acesso; o sujeito da opinião não é o mesmo que o sujeito da experiência. Para Larrosa, nosotros, en nuestra arrogancia, nos pasamos la vida opinando sobre cualquier cosa sobre la que nos sentimos informados. Y si alguien no tiene opinión […] se siente en falso, como si le faltara algo esencia (2003, p. 170). Ao se remeter a realidade predominante nas salas de aula hoje, pergunta-se: e o espaço da experimentação, da descoberta, do erro, da sensação, do tempo...? E a construção de um território de passagem? E a paixão? Quando e como estes aspectos serão trabalhados? A experiência do menino-professor-cartógrafo no ensino de arte mostra que a ação de produzir saberes, sob o modo da informação, como se aprender não fosse outra coisa que adquirir e processar informação (LARROSA, 2004, p. 155), pode ser tratada de outra maneira, objetivando desconstruir a ideia centrada na informação, acreditando na informação como um conceito mais complexo. Para que ocorra aprendizagem, um dos aspectos que se torna importante é colocar as informações em movimento, é pensar que um dos componentes fundamentais da experiência, segundo Larrosa (2004), é sua capacidade de formação e transformação, sabendo que a ênfase contemporânea na informação não deixa lugar para a experiência.

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Existe um grau de dificuldade quando se quer ensinar e aprender com as imagens sem cair em modelos, fórmulas ou métodos. Escrever sobre uma imagem, ou seja, “explicá-la” pode empobrecer sua multiplicidade de sentido,

[...] por mais que se diga o que se vê, o que se vê não está jamais no que se diz, e por mais que se faça ver por imagens, metáforas, comparações, o que se vai dizer, o lugar onde elas resplandecem não é aquele que os olhos percorrem, mas aquele que as sucessões da sintaxe definem. (FOUCAULT, 2001, p. 201). 

Para Michel Foucault, existe uma impossibilidade diante de um quadro, o que torna uma tarefa infinita a de “escrever” a imagem fixada pelo pintor. Ele nos oferece um grande material reflexivo sobre o complexo problema dado pela linguagem. Em As Palavras e as Coisas (1995), Foucault, nos textos “Isto não é um cachimbo”, obra de Magritte e em “Las Meninas”, obra de Diego Velásquez, têm como foco a pintura e o problema da representação, com a impossibilidade de, pelas palavras, referirmo-nos a tudo o que está nas imagens pintadas. Diante desta dificuldade, como pensar, como “escrever” com as imagens?

Uma maneira de pensar a problemática que envolve imagem e escrita, apresentado desde Foucault, seria buscar um entendimento acerca da imagem, quando ela pode ser pensada como linguagem, quando ela pode ser heterotopia e quando ela pode ser pensada como sensação. Aqui, então, aproximo-me de Beckett, para tentar movimentar esses conceitos.

[...]
como era eu cito antes de Pim com Pim depois de Pim como
é três partes eu digo como ouço

voz uma vez fora quaqua por todos os lados então em mim
quando a ofegação pára conte-me outra vez termine deme
contar invocação

momentos passados velhos sonhos de volta outra vez ou novos
como os que passam ou coisas coisas sempre e memórias eu
as digo como ouço murmuro-as na lama

em mim que estavam fora quando a ofegação pára sobras de
mal-recapturada mal-murmurada na lama breves movimentos
de face inferior perdas por toda a parte [...]

(Beckett, Samuel. como é, 2003, p. 11) (fragmentos)

Pensar com Beckett é procurar o sentido no sem sentido, é dar voz a outra sintaxe ou até mesmo a assintaxe, como Deleuze anuncia em seu texto “O ato de criação”, publicado pela Folha de São Paulo, no qual ele diz que ter uma ideia, assim como o autor de como é, “não é da natureza da comunicação” (1999, p. 6). Beckett não trabalha com a ideia de códigos e sua transmissão, mas aproxima-se a maneira de Foucault, como rupturada sintaxe. Quando nos aproximamos de outra língua, como aYahoos, percebemos que a palavra nrz, sugere a compreensão de manchas ou dispersão, e que pode ter como significados um leopardo, um céu estrelado, um voo de aves a dispersão ou a fuga que acompanha uma derrota, dentre outras. Se aqui há um código, este é aberto, é movimento, é dispersão.

Em como é parece que Beckett tem ideias literárias que fazem eco com ideias das artes visuais, e que levam a pensar em criação na arte sem comunicação, sem transmissão de códigos, sem uma linguagem. Acredita-se que é necessário hoje, discutir alguns conceitos que fazem funcionar a arte como sensação e não através de uma linguagem.

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A comunicação é a transmissão e a propagação de uma informação. Para Deleuze:

Uma informação é um conjunto de palavras de ordem. “São sempre ideias conformes a significações dominantes ou a palavras de ordem estabelecidas, são sempre ideias que verificam algo, mesmo se esse algo está por vir, mesmo se é o porvir da revolução. (1998, p. 53)

Quando nos informam sobre algo, nos dizem o que julgam que devemos acreditar, isso é comunicação, o que equivale a dizer que a informação é o sistema de controle. Sendo assim, a informação é o sistema controlado das palavras de ordem que têm curso numa sociedade. (1999, p. 7) Será que a arte deve se submeter e ser mais um veículo de controle? A sociedade não estaria precisando mais de liberdade e menos de aprisionamentos?

Nas sociedades de controle encontramos além da informação uma contra-informação, e esta contra-informação se torna um ato de resistência. Para Deleuze (1999) uma ato de resistência não é nem informação nem contra-informação. Ele diz que entre uma obra de arte e a comunicação não há relação alguma, pois a obra de arte não é instrumento de comunicação, por não conter a mínima informação. No entanto, existe uma afinidade fundamental entre a obra de arte e a resistência, pois a arte seria aquilo que resiste à morte, ou seja, aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resista.

Para Deleuze são os acontecimentos que tornam a linguagem possível. Começa-se sempre na ordem da palavra, não na linguagem. Para o autor há sempre alguém que começa a falar; aquele que fala é o manifestante; aquilo que se fala é o designado; o que se diz são as significações (1998, p. 187). Mas o acontecimento não é isso, o expresso não se confunde com a expressão. Não lhe preexiste, mas lhe pré-insiste. (1998, p. 187)

A linguagem não é um meio de informação, mas um sistema de comando. Para compreendermos esta definição, Deleuze diz que devemos inverter o esquema da informática.

A informática supõe uma informação teórica máxima; no outro polo, coloca o puro ruído, a interferência; e, entre os dois, a redundância, que diminui a informação, mas lhe permite vencer o ruído. É o contrário: no alto, seria preciso colocar a redundância como transmissão e repetição das ordens ou comandos; embaixo, a informação como sendo sempre o mínimo exigido para a boa recepção das ordens; e mais embaixo ainda? Pois bem, haveria algo como o silêncio, ou como a gagueira, ou como o grito, algo que escorreria sob as redundâncias e as informações, que escorraçaria a linguagem, e que apesar disso seria ouvido. (1998, p. 56)

Tornar a linguagem possível significa com que os sons não se confundam com as qualidades sonoras, ou no caso de Beckett, quando inova não apenas no formato do texto, nem nas indeterminações de sentido que anuncia, mas na desestabilização dos elementos estruturais, como por agrupamentos em vários acentos tônicos, compreendidos entre duas pausas, sejam elas lógicas, expressivas ou respiratórias.

O que torna a linguagem possível é o que separa os sons dos corpos e os organiza em proposições, torna-os livres para a função expressiva. O que torna a linguagem possível é o acontecimento, não se confunde, nem com a proposição que o exprime, nem com o estado daquele que a pronuncia, nem com o estado de coisa designado pela proposição (1999, p. 188) A tríplice distinção na proposição da designação, da manifestação e da significação.

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O acontecimento resulta dos corpos, de suas misturas, de suas ações e suas paixões. A paixão é da carne e a ação é da face. Para Deleuze

A organização da linguagem apresenta as três figuras da superfície metafísica ou transcendental, da linha incorporal abstrata e do ponto descentrado: os efeitos de superfície ou acontecimentos; na superfície, alinha do sentido imanente ao acontecimento; sobre a linha, o ponto do não-sentido, não-sentido da superfície co-presente ao sentido. (1999, p. 189)

Para pensarmos nesta outra organização da linguagem (uma vez que para Deleuze a linguagem é um efeito de superfície) junto a Beckett, teríamos que deslizar de uma organização para outra ou da formação de uma desorganização progressiva e criadora. “O problema é também o da crítica, isto é, da determinação dos níveis diferenciais em que o não-senso muda de figura, a palavra-valise de natureza, a linguagem inteira de dimensão” (1999, p. 86). Esta outra dimensão, provocada por um deslizamento, faz com que estejamos em outro mundo e em outra linguagem, mas centrado em um ato de criação, o que Deleuze chama de a linguagem da esquizofrenia. “Podemos inventar nossa própria língua e fazer falar a língua pura com um sentido extra-gramatical, mas é preciso que este sentido seja válido em si, isto é, venha do pavor...” (1999, p. 87) (pavor = terror: positivo, produz).

A primeira evidência esquizofrênica é que a superfície se arrebentou. Artaud diz que não há, não existe mais superfície. Não há fronteira entre as coisas e as proposições, precisamente porque não há mais superfície dos corpos. Ao efeito de linguagem se substitui uma pura linguagem-afeto, um procedimento de paixão, de ser afetado.

Trata-se menos, portanto, para o esquizofrênico de recuperar o sentido que de destruir a palavra, de conjurar o afeto ou de transformar a paixão dolorosa do corpo em ação triunfante, com a obediência em comando, sempre nesta profundidade abaixo da superfície cavada (Deleuze, 1999, p. 91)

Quando analisamos algumas palavras no texto de Beckett, como quaqua, podemos pensar que “não somente não há mais sentido, mas não há mais gramática ou sintaxe e, em última instância, nem mesmo elementos silábicos, literais ou fonéticos articulados” (Deleuze, 1999, p. 94). Artaud produz um ensaio intitulado Tentativa antigramatical contra Lewis Carroll, para produzir mergulhos de não-senso na superfície, como forma de reduzir outra coisa que não a gramática e a sintaxe. É uma tentativa de estar na própria língua como um estrangeiro, “traçar para a linguagem uma espécie de linha de fuga” (1998, p. 56). É lidar não com verdadeiras informações.

Anteriormente mencionou-se que a arte conserva, embora não dure mais que seu suporte e seus materiais, pedra, tela, cor química, etc. Se a arte conserva, a coisa tornou-se independente de seu modelo, dos próprios artistas e espectadores, a arte é “independente do criador, pela auto-posição do criado, que se conserva em si. O que se conserva, a coisa ou a obra de arte, é um bloco de sensações, isto é um composto de perceptos e de afectos.” (DELEUZE, 1996, p. 213).

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Os perceptos não são percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. (DELEUZE, 1996, p. 213)

Pensando assim, a arte existe na ausência do homem, e a obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si (DELEUZE, 1996, p. 213). O que o artista cria são blocos de perceptos e afectos, mas a única lei da criação é que este composto fique em pé. Importante ressaltar, que para que os blocos fiquem em pé, além dos elementos de saturação, encontramos também bolsões de ar, vazios, pois até mesmo o vazio é uma sensação. Encontramos esta captura de forças na pintura chinesa.

Segundo Deleuze, pintamos, esculpimos, compomos, escrevemos com sensações (1996, p. 216) o que se conserva é o percepto e o afecto, mesmo se o material só durasse alguns segundos, daria à sensação o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que coexiste com esta curta duração (1996, p. 216).

O objetivo da arte, com os meios do material, é arrancar o percepto das percepções do objeto e dos estados de um sujeito percipiente, arrancar o afecto das afecções, como passagem de um estado a outro. Extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações. (1996, p. 217)

Toda a matéria se torna expressiva. É assim que o pintor faz vir diante de nós, não a semelhança, mas a pura sensação de uma flor torturada, ou uma nova forma de vida. É passarmos da sensação colorida para a colorante. O material particular dos pintores são os traços, as cores, e a sintaxe a sintaxe criada que se ergue irresistivelmente em sua obra e entra na sensação (1996, p. 218). Este modo particular de transformar a sintaxe em sensação, Deleuze chama de estilo. Sempre é preciso o estilo – a sintaxe de um escritor, os modos e ritmos de um músico, os traços e as cores de um pintor – para se elevar das percepções vividas ao percepto, de afecções vividas ao afecto (1996, p. 220). A forma de se arrancar as sensações seria através da torção da linguagem, para fazê-la vibrar, abraça-a, fende-a.

Composição é a única definição da arte. A composição é estética. Não confundiremos, todavia a composição técnica, trabalho do material que faz frequentemente intervir a ciência e a composição estética, que é o trabalho da sensação (1996, p. 247). Somente a composição estética merece o nome de composição.

Só há um plano único, no sentido em que a arte não comporta outro plano diferente do da composição estética: o plano técnico, com efeito, é necessariamente recoberto ou absorvido pelo plano de composição estética. (1996, p. 252)

Há uma condição para que toda matéria se torne expressiva, deve acontecer que o composto de sensação se realizará no material, ou o material entrará no composto.

A estética não é um saber sobre as obras, mas um modo de pensamento que se desdobra acerca delas e que as torna como testemunhos de uma questão: uma questão que se refere ao sensível e à potência de pensamento que o habita antes do pensamento, sem o conhecimento do pensamento. (RANCIÈRE, 2000, p. 505)

A função da arte é desfazer o mundo da figuração ou da doxa, de despovoar esse mundo, de apagar o que está previamente sobre uma tela, de fender as imagens, para em seu lugar colocar um deserto (vazio). Na estética pictural deleuziana, o sentido é o de mostrar e alegorizar o momento da metamorfose, de mostrar a arte se fazendo em seu combate com os dados figurativos. (RANCIÈRE, 2000, p. 510) A estética seria uma figura do pensamento, assim a estética não centra mais sua atenção sobre a obra, mas no que se sente. Desta forma, a estética não remete mais a um pensamento da obra como regras de sua produção, remetendo a ideia de um sensível particular, a presença no sensível de uma potência.

A estética é a história das formas de coincidência entre o espaço da representação artística e o espaço de uma apresentação do espírito a si mesmo no sensível. (RANCIÈRE, 2000, p. 513) Isto significa que o espaço da representação não é mais o espaço de apresentação. É, portanto, sob a forma de tarefa que se apresenta o projeto de igualar a potência da obra à de um puro sensível, de um sensível a-significante. Assim a análise entre Deleuze e Foucault, junto a imagens do cotidiano inscreve-se como um modo de pensamento, como um modo de pensar arte.

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Referências

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BARBOSA, Ana Mae e CUNHA, Fernanda Pereira da (orgs.). Abordagem Triangular no Ensino das Artes e Culturas Visuais. São Paulo: Cortez, 1987.

BECKETT, Samuel. Como é. São Paulo: Iluminuras, 2003.

DELEUZE, Gilles. A literatura e a Vida. In: Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

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FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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LARROSA, Jorge. Entre las lenguas: lenguaje y educación después de babel. Barcelona: Laertes S.A, 2003.

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RANCIÈRE, Jacques. La división de losensible. Estética y política. Slamanca: Consorcio de Salamanca, 2000.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro, RelumeDumará, 2004.

DONALD HUGH DE BARROS KERR JUNIOR possui graduação em Licenciatura em Educação Artística pela Universidade Federal de Pelotas (1989) e Mestrado em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (2000). Doutor em Educação pela UNISINOS (São Leopoldo, RS), é professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense (IFSUL) - campus Pelotas. Tem experiência na área de Educação com ênfase em Ensino de Arte.