O Poder Ficcional das Linguagens Plásticas: Afinidades entre os Processos de Criação na Arte e na Pedagogia

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O Poder Ficcional das Linguagens Plásticas: Afinidades entre os Processos de Criação na Arte e na Pedagogia

Angela Raffin Pohlmann

Sandra Regina Simonis Richter

Apresentamos aqui uma revisão do texto "O PODER FICCIONAL DAS LINGUAGENS PLÁSTICAS: O QUE A ARTE PODE ENSINAR À PEDAGOGIA?" que foi apresentado na VIII ANPEDSUL - Encontro de Pesquisa em Educação da Região Sul (2010). A versão completa está em: www.portalanpedsul.com.br .

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Introdução

Que relações podem ser estabelecidas entre o gesto e as marcas que aparecem pelo movimento dos corpos que transforma as matérias? Que afinidades podemos encontrar entre as práticas com materiais plásticos e os gestos que inauguram imagens? Como podemos pensar, no campo educacional, a íntima relação entre imaginação poética, ação de realizar imagens e aprendizagens que estas ações suscitam? Ou seja, como a ação de fazer “aparecer” imagens, na especificidade da experiência plástica de operar traços, manchas, superfícies e volumes, reverberam no corpo e nos processos de aprender a instaurar sentidos que significam a convivência?

Tais interrogações emergem do encontro entre nossas pesquisas que tratam tanto da especificidade da formação do artista plástico e do professor de arte, como também da especificidade da educação na infância e da formação do professor de educação básica. Nestas investigações em torno da aproximação entre artes plásticas e educação ressaltamos a importância de propor uma reflexão que considere o poder ficcional das linguagens plásticas nos instalarem no mundo, desde a infância. O interesse que mobiliza nossos estudos é afirmar que, no processo de aprender a figurar imagens, não se trata apenas de efetivá-las enquanto produto visual – as imagens em si – mas considerar o processo de torná-las visíveis. Isto supõe a intencionalidade de relevar a tensão dos ensaios, das tentativas, dos desvios, das explorações, dos acasos e repetições ocorridos no tempo do percurso para alcançá-las, pois tais tensões fazem parte dos "processos de figurar" que a imagem plástica torna visíveis.

A partir da interlocução entre as fenomenologias da imaginação criadora em Gaston Bachelard, do corpo operante em Merleau-Ponty e da ação narrativa em Paul Ricoeur, buscamos evidenciar particularmente a dinâmica operativa do fazer. Ao utilizarmos o termo “fazer” nos referimos à ideia grega de poïen – o vigor do agir – como dimensão transformativa de tudo isto que é vida e história em sua acepção de devir, em sua acepção temporal de atualização de nossas virtualidades. O processo de criação em artes plásticas ensina ao pensamento – e à pedagogia – a lidar com as temporalidades simultâneas que exigem a tomada de decisão de iniciar um gesto no mundo. É da plasticidade do pensamento arriscar-se a configurar – dar uma forma: informar– os acasos.

Não se trata aqui de explicar ou definir o fenômeno poiético, mas destacar como se chega ou se alcança algo que dá outro rumo às coisas: como o corpo aprende a produzir e a fabular linguagens ao arranjar e des-arranjar o real, isto é, no ato mesmo de instaurar e transformar gestos e imagens para significar e compartilhar o estar junto no mundo. Trata-se de compreender, com Rancière (2005, p. 59), que “a política e a arte, tanto quanto os saberes, constroem ‘ficções’, isto é, rearranjos materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que se vê e o que se diz, entre o que se faz e o que se pode fazer”. O interesse é destacar outra lógica – a poética – que não supõe explicações do mundo mas experiências no e do mundo. Por ser instauradora, é ato no mundo e não discurso sobre o mundo: algo acontece e vai ao real, o redescreve e o atualiza.

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Assim, este artigo não levará em consideração os problemas referentes ao futuro do ensino das artes visuais diante das experiências que as novas mídias e as novas tecnologias vêm incrementando em nosso ambiente, embora esta questão esteja se tornando cada vez mais importante nos dias atuais. Em contrapartida, reivindicamos a consideração educativa pela importância do gesto como aproximação possível ao mundo codificado que nos cerca e às linguagens que alinham símbolos gráfico-plásticos como contexto para relevar “com mais complacência, e até com maior paixão, a ação que faz do que a coisa feita” (VALÉRY, 1999, p. 181). A questão teórica que nos interessa é a interrogação pelo poder poético das linguagens plásticas “significarem as coisas em ato”.

Nessa perspectiva, a opção pela expressão artes plásticas não é neutra. Supõe resistir à tendência contemporânea de naturalizar ou tornar hegemônica a expressão artes visuais. Consideramos que a generalizada substituição do termo plástico pelo termo visual é restritiva, pois visa “um” produto: “a imagem”, enquanto o termo plástica diz respeito à abertura aos processos de fazer aparecer imagens; ao devir do ato de tornar visível ritmos de visões ou o não visto ainda. Tal restrição traz como conseqüência para a formação de professores, seja de arte seja da educação básica, a legitimidade pedagógica de priorizar um olho descarnado por consagrar um olho racionalizado – precisão do “ponto fixo” – capaz de prescindir da mão/corpo. Trata-se da exacerbação do ideal racional de negação do corpo: o máximo do abstração em seu desejo de ocultação a todas as ambigüidades e alterações dos humores do corpo.

Concordamos com Bachelard (1989a, p. 100), que nos diz que “sempre haverá mais coisas num cofre fechado do que num cofre aberto. A verificação faz as imagens morrerem. Imaginar será sempre maior que viver”. O devaneio tonaliza o sonhador com as sombras de um mundo plástico, maleável, engendrando densidades que multiplicam ritmos de visões. As linguagens plásticas implicam considerar a inseparabilidade entre corpo/gesto e materialidade/mundanidade; a temporalidade dos percursos singulares de um corpo implicado no coletivo mundano; a radical cópula entre o sensível e o inteligível; tornando sem sentido a cisão ou polarização entre sujeito e objeto; corpo e mente.

O que está em jogo é o regime de verdade que o termo visual impõe: a “imagem visual”, amplamente abarcada como reflexo do real, elimina o mistério, exige a palavra que explicite o percebido, enquanto a “imagem plástica” carrega o implícito, exige o silencio do toque do olhar: expõe o enigma de um pensamento encarnado – um modo de pensar simultaneamente sensível e inteligível. Talvez, aqui, tenhamos que enfrentar o grande equívoco de considerar as realizações em arte como passível de serem subordinadas à palavra, ou seja, à tradução pela lógica do discurso verbal. O que explica, para Cattani (2003, p. 87), porque tantas análises fogem às questões plásticas para concentrarem-se na temática, ou ainda em teorias que acabam por não guardar nenhum ponto de ancoragem na ação que faz, privilegiando o feito, o resultado da ação, quando o que torna 

alguém pintor, não é o emprego dos materiais próprios à pintura, nem o reconhecimento social historicamente datado. A pintura coloca questões próprias, internas a ela mesma; o embate com essas questões, o seu afrontamento no próprio campo pictural, é que faz alguém pintor (CATTANI, 2003, p. 87).

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Tornar-se pintor é mergulhar na pintura. Corporalizá-la. Traços e manchas consumam a presença da mão, o vestígio do gesto. Desenhar, pintar, modelar, gravar, recortar, colar, esculpir são gestos transfigurativos do e no mundo não só porque articulam visibilidades mas porque simultaneamente produzem nossa humanização, ou seja, forjam modos singulares de ver e agir no coletivo. É porque as linguagens gráfico-plásticas favorecem relações com o campo do ficcional pelo poder de tomar posse do intangível – de trazer pelas mãos e colocar sob os olhos uma visão-imagem daquilo que é disperso e impalpável – que podem colaborar com subsídios para a experimentação e invenção de si e do mundo. Este o enigma da iconicidade figurativa e que Dagognet (1973, p. 56) denomina de “aumento iconográfico” para destacar que pintar desenhar, esculpir, modelar ou construir, não é substituir ou apresentar uma equivalência do mundo, mas portá-lo de inteligibilidade.  Implica compreender a inseparabilidade entre corpo e mundo nos processos de aprender a estar em linguagens para tornar inteligível a experiência de co-existir.

Se situarmos as reflexões sobre as imagens e os artefatos como centro nervoso da existência contemporânea, não poderemos prescindir da interrogação pela experiência de pensamento que acompanha os processos de tornar algo visível. Neste sentido, não há como não lembrar do que nos diz Cardoso (2007, p. 14), para quem “os grandes dilemas que o mundo hoje enfrenta nos conflitos geminados entre tecnologia e miséria, liberdade e fundamentalismo, cultura e violência” estão diretamente relacionados ao atropelo fatal que o planeta enfrenta em seus valores mais essenciais: a crise da humanidade na sua própria sobrevivência coletiva. Ou seja, dar forma a alguma coisa pressupõe a in-formação de determinada matéria; e, se em sentido amplo podemos dizer que fabricar é informar; em seu sentido mais estrito podemos dizer que “fabricar” é inventar. Assim, estas manifestações apontam para a tentativa de atribuir sentido ao mundo por meio do poder ficcional de linguagens, procedimentos e técnicas.

Retomando a ideia de que os códigos e convenções, projetos e linguagens têm o poder de reformular o modo como imaginamos e percebemos o mundo, cabe perguntar se os processos de aprendizagem das linguagens gráfico-plásticas influem no modo como aprendemos a compreender nosso entorno e suas influências, ou seja, no modo como interagimos no coletivo.

O silêncio do desenho: o corpo com a matéria

As referências à ‘linguagem’ apontam, na maioria das vezes, ao campo disciplinar da linguagem verbal. Entretanto, aqui estamos nos referindo às linguagens do campo das artes plásticas, aquelas que convocam o poder lúdico de transfigurar a existência em gestos e marcas, manchas e volumes. Torna-se fundamental, então, destacar a importância do convívio com os outros e enfatizar as ações que transformam as coisas e lhes atribuem seus novos sentidos a partir das interações no coletivo. Admirar-se com a novidade do mundo, acolher o desconhecido, lidar com o estranhamento e com a mudança de sentido ou significado faz parte da capacidade lúdica de produzir e projetar ações em imagens e em compartilhar os sentidos que do corpo podem germinar.

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Num mundo saturado de imagens, o desenho e a pintura perderam suas funções originais de representar o visível, e procuram por novas identidades. Entretanto, o desenho e a pintura continuam sendo “expressões do corpo, registros do gesto humano sobre a superfície sensível” (POESTER, 2005, p. 50). Nas artes plásticas, o artista utiliza seu corpo em contato com a matéria como meio de expressão, e suas experiências com materiais de desenho, pintura, gravura ou escultura integram simultaneamente a energia do seu corpo em consonância com sua mente. Não utilizamos o pincel do mesmo modo que pegamos um lápis, nem serramos a madeira do mesmo modo como modelamos a argila. Estas ações específicas nos humanizam pelas ações que constituem estas manufaturas juntamente com as possibilidades de criação manual num mundo onde o sentido do tato é cada vez menos convocado (POESTER, 2005). 

No desenhar, o uso de uma ponta que risca uma linha sobre determinada superfície aparece como uma das ações próxima ao corpo e aos seus movimentos naturais. O desenhar, ato capaz de ressignificar a matéria inanimada e transformá-la em matéria pulsante, requer mínimos recursos técnicos e poucos materiais. Talvez, por isso mesmo, os desenhos despertem no espectador uma emoção tão especial: a intimidade de acolher as marcas e sinais impressos de um tremor da mão ou de uma energia vigorosa no traçado.

Para Waltércio Caldas (1997), os desenhos são “sorrisos distraídos indo em direção ao esquecimento”. Eles estão sobre superfícies de papel, cuja profundidade está “presente e ausente ao mesmo tempo”. Para falar do traçado e do gesto sobre uma folha de papel, Waltércio traz o que há de mais básico no desenho, o seu traço. No traço, há sempre a espera de que ele cumpra o seu papel: desempenhar o ritmo da imagem. Mais do que configuração, suas linhas “deveriam tocar o papel sem perturbar o silêncio branco”, e permanecer aí o suficiente para “lembrar o gesto que tornou possível a imagem. Só assim, tempo, imagem e superfície podem ser recíprocos e igualmente transparentes ”. O que nos propõe Waltércio Caldas é um convite a nos aventurarmos no mundo percebido, para redescobrir um universo sensível. Desconfiando das “inabaláveis” verdades, Waltércio Caldas joga com a linguagem da arte para nos fazer ver o que olhamos e não vemos.

Simples e diretas, as linhas desenhadas conservam a segurança ou insegurança daquele que as criou. Nelas ficam inscritas as hesitações, os arrependimentos, as indecisões, as dúvidas, as mudanças de rumo, as correções e os desvios. O olhar do espectador, ao mesmo tempo, pode preencher lacunas, decifrar hieróglifos, elucidar inscrições que expõem um campo mágico e aberto (CATTANI, 2005).

Na concepção de Cattani (2005, p. 30), “o desenho talvez seja a linguagem da arte mais próxima dos sentidos e dos sentimentos, o que demanda simultaneamente o exercício do rigor”. Cabe ao artista estar lá e cá, na entrega ao ato de desenhar e na análise do já feito. Mergulhar e depois voltar à superfície, “submergir no abismo que o grafite ou o nanquim traçam sobre o papel” e “voltar à superfície” para retomar, analisar e corrigir se for necessário ou para abandonar “aquilo que não corresponde ao que se deseja” para ir à procura de “algo novo”.

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Neste sentido, as palavras de William Kentridge (2012) também nos ajudam a pensar em "outras inteligências", que nos acompanham nos processos de criação. Para este artista sul-africano, os desenhos funcionam como impulsos: "impulsos que não conhecemos, até que de repente, você vê, em uma folha de papel, um impulso por trás do desenho".  Há um movimento de vai e volta, no qual o artista é aquele que "faz e que olha o que está sendo feito". O artista inicia com uma imagem ou uma ideia, mas na medida em que risca o papel, algo mais acontece. São estes impulsos percebidos nos riscos desenhados que sugerem o modo como o trabalho pode seguir, ou podem dar pistas a sequência de outras ideias que podem ser sugeridas pelos próprios desenhos recém iniciados (KENTRIDGE, 2012).

Deste modo, o traço e a mancha são gestos que escavam sentidos sob a materialidade da marca plástica. A repetição do traço e da mancha vincula-se a valores rítmicos nos quais a linha e a mancha são vetores, direções, intervalos. Um espaço plasmado a partir de mudanças de direção que acontecem durante o percurso do gesto sobre o suporte. O gesto enlaça o movimento em seu futuro, o significado do gesto, da figuração que há de pintar-se ou desenhar-se, é o futuro do gesto mesmo. O gesto plástico é movimento auto-analítico, autocrítico: vamos fazendo e vamos avaliando. É ato de estar presente, fazer-se real, o viver que remete à projeção de um futuro, constante reformulação de suas próprias intenções. Tais traços e manchas mostram-se sempre inacabados, sempre atuais em suas repetições. Cada marca contém a gestação de outra, o germe de outra marca, engendrando um encadeamento.

O artista está em constante busca. Ele é aquele que se arrisca, aceitando a instabilidade e a ausência de lugares seguros inerentes ao processo criador. Ele se coloca diante do abismo e se joga, porque este é o único modo de realizar seu desejo. A exigência é de uma incerteza própria diante das coisas para reiterar permanentemente o instante inaugural. O sentimento de estranheza diante do mundo se renova com a experiência de uma existência sempre em vias de ser novamente recomeçada.

Processos de criação: exigência vital de “começar-se”...

Na criação artística, a ação se faz a cada gesto e nem sempre há lugar para as idéias estabelecidas a priori. Nos colocamos diante de um eterno “começar-se”. Durante a criação plástica, as ações, numa seqüência de gestos, transformam a matéria através de seleções, apropriações ou combinações que se transformam permanentemente. A espontaneidade do gesto abre espaço, simultaneamente, para a intervenção do acaso e para o surgimento de novos sentidos.

Na percepção visual de um objeto externo e imóvel nossa observação vai acumulando informações e “dilatando” a visão que temos dele. Somos capazes de olhar as coisas que todos vêem, e se acrescentamos um novo ângulo é porque a realidade da qual todos participam, a cada um se transfigura de modo singular. Os processos que acompanham o fazer poético nas linguagens gráfico-plásticas também podem passar por inúmeros acidentes que surgem sem que pareçam ter relação nem com o que havia antes, nem com o que os seguiu. Nossa imaginação, às vezes, atua apoiada em dados incompletos. Comparamos aquilo que é com o que poderia ser, e confrontamos o que aparece com o que queríamos que fosse.

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Em determinados momentos, nosso pensamento nos afasta do que está exatamente diante de nós. E, com alguma freqüência, a experiência nos mostra como obter determinado resultado, cujas operações utilizadas são precisamente aquelas sobre as quais nunca tínhamos pensado. Através do contato, da manipulação com as materialidades diferenciamos e aferimos nossas capacidades, disponibilidades, nossas tendências e eficiências. Estas coerências e incoerências nos permitem verificar o que decorre de cada uma destas ações durante o processo de construção e/ou destruição das matérias até que algo seja fabricado.

O trabalho do artista em seu atelier (ou do estudante em contato com as materialidades) não elimina o acaso de seus atos; nem exclui o mistério de seus procedimentos; ou suprime a embriaguez dos horários . A mobilização da intuição motiva a invenção de formas novas e imprevisíveis. A capacidade de conviver com a bagunça, tolerar a incerteza e mesmo os erros decorrentes do processo passam a ser as marcas distintivas do trabalho manual.

O atelier é este lugar em que há espaço para os excessos. Para Kentridge (2012), o atelier é simultaneamente o espaço físico, mas também o espaço metafórico: "um lugar seguro para a estupidez, ou para não se saber o que fazer, um lugar para que as dúvidas tenham espaço, para que o fracasso seja acomodado, para que a indecisão tenha um espaço e que não seja criticamente julgada". Não se trata de dizer que neste trabalho que está sendo realizado tudo pode acontecer, ou que nele as ações sejam aleatórias, ou que tudo ocorra por mero "acaso". Mas também não é algo planejado de antemão, não é um "programa" que segue uma ordem. O atelier, ao mesmo tempo em que abre espaço para o acaso, necessita também de um mínimo planejamento ou projeto. "É nesta distância entre o acaso e o projeto que o trabalho acontece" (KENTRIDGE, 2012).

As tarefas artesanais, além disso, demandam a habilidade em executar ações até certo ponto repetitivas que possam favorecer o aprimoramento da técnica. A eterna busca pela qualidade e a motivação em realizar atividades que procuram pela perfeição destacam a paciência necessária para um lento aprendizado no qual há um preponderante papel do hábito. Apesar do pragmatismo que possa parecer envolver estas ações, trata-se de uma minuciosa sensibilidade em perceber e experimentar o mundo exterior com emoção e intimidade. Há uma precedência da mão, do contato, do fazer e do corpo que não deixam de levar em consideração o papel do tempo, da prática, do aprendizado, da repetição e mesmo da incerteza e do erro como partes constituintes deste fazer .

Para Merleau-Ponty (2002, p. 87-88 e 102), os dados que compõem a dimensão do mundo dos acontecimentos transformam-se em “sistema significante” na expressão. Assim, vemos que cada pintor monta um “sistema de equivalências” para expressar os dados que percebe do mundo. Nem sempre temos uma visão clara de nossos enunciados, já que “as mais puras verdades supõem vistas marginais” e seu sentido depende do horizonte que a linguagem dispõe em torno delas. Isto significa que ao falarmos ou ao escrevermos, o que temos a dizer não está pronto diante de nós, pois é através do esforço de constituir os signos (e a linguagem) que damos forma ao que queremos dizer. Tudo ainda está por fazer.

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Do mesmo modo, na pintura há uma constante “deformação coerente” imposta ao visível. Deste modo percebemos o sentido próprio de cada obra de arte. Nelas, as “deformações coerentes” se manifestam conforme o estilo de cada pintor, cujo “sistema de equivalências” aparece para mostrar-nos os significados ainda esparsos de sua percepção, mas que através de sua expressão pictórica retomam e ultrapassam o mundo percebido. Ou seja, a percepção nunca está acabada, pois ela não visa um objeto já dado, mas o “constitui” ao mesmo tempo em que o “inaugura” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 82-87). A significação aparece, então, quando submetemos “os dados do mundo a uma ‘deformação coerente’”. Quando isso ocorre, o pintor nos apresenta um mundo novo, do qual ainda não temos a chave. Ele nos faz ver e nos faz pensar de outro modo, totalmente distinto de uma obra analítica que nos mostra apenas o que nela já está contido .

Para pensarmos o currículo, a aprendizagem e o ensino, levando em consideração o campo da arte, talvez tenhamos que retomar a idéia de inacabamento em Merleau-Ponty: recuperar a perplexidade diante do mundo e restaurar o desejo de reaprender a ver esse mundo .

Experiência poética e aprendizagem

Frente a ‘modelos educacionais’ que pretendem “fabricar” um humano, é possível pensar a educação em ‘fluxos descontínuos’, como ato complexo de temporalização (BENJAMIN, 1994), e pensar a ‘história suspensa pelas rupturas na tradição’. Neste sentido, vale à pena considerar a educação como acompanhamento, hospitalidade e acolhimento do outro em sua radical alteridade (MÈLICH e BÁRCENA, 2000). A inseparabilidade entre o corpo e o mundo, e entre o corpo e as múltiplas linguagens, pressupõe uma provocação e uma sedução que contagie e modifique a ambos.

A interrogação, o espanto e a admiração fazem parte da perplexidade diante do mundo. Há sempre a sensação de inacabamento e de indeterminado. Mas, o que significa isso? Talvez, signifique que este seja um percurso infinito, porque vamos em direção a um lugar que parece nunca chegar. Quando iniciamos a escrita de um texto ou começamos algum projeto, nos colocamos perante passos ilimitados. O que nos move em direção a esta possibilidade de concretude é a procura por aproximar-nos de algo que corresponda ao que inicialmente tínhamos em mente. Entretanto, desta experiência só teremos conhecimento depois de realizar alguma coisa no plano físico da matéria (se é que se pode tentar separar estas duas coisas).

Uma coreografia se instala entre o plano “interior” e o plano “exterior”, entre a mão e a matéria. Nossa tarefa consiste em encontrar equivalências, pois estamos permanentemente relacionando ao menos duas coisas: o que temos diante de nós e o que podemos imaginar a respeito. Muitas vezes, as imagens e os objetos produzidos pelos artistas determinaram o modo como vemos as coisas. Ver é construir coisas, e, por isso, só podemos lembrar novamente de Merleau-Ponty (1984): “o ser é o que exige de nós criação para que dele tenhamos experiência”. Assim, falar em percepção é muito mais referir-se a agir, associar, justapor, aproximar, juntar, separar, dissociar, analisar, sintetizar do que pensar em alguma coisa que já esteja no interior da mente. Perceber é uma ação que envolve organizar, ordenar, compor, juntar, coletar. E, para isso, há que se ter disponibilidade e envolvimento com o que está sendo “percebido” .

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O processo de criação possibilita que novas coerências sejam formuladas no modo como compreendemos cada coisa. Avanços e recuos, opções e indecisões fazem parte de um trajeto que não é linear nem tampouco aleatório (OSTROWER, 1978, p. 77), pois durante o processo de criação há sempre uma seletividade interior junto com uma tensão dirigida. Nos movemos entre as formas dos inúmeros estímulos que recebemos, e estabelecemos algumas relações entre elas, compondo determinadas ordenações. O que sentimos também faz sentido, mesmo quando hibridizado por sentimentos ou percepções inconclusivas.

Essa construção de sentido pode ser potencializada pelo “outro”, o outro que entra em nosso campo visual, o outro que interrompe uma continuidade, o outro que chega como provocação aos hábitos de pensamento. Os ‘acidentes’ que se instalam no nosso campo visual desafiam nossa estrutura psíquica, redefinem nossas disponibilidades afetivas, nossas limitações internas e nossas respostas cotidianas à vida. O mesmo acontece com o artista diante de seu trabalho a fazer.

Assim, tornar inteligível a estrutura de um objeto é encontrar o conhecimento e a unidade de um sólido pelo movimento do olho sobre o que vê, pelos caminhos do lápis sobre o papel, que apalpa cada detalhe, e acumula cada elemento de contato com a forma ao adquirir intimidade com ela (VALÉRY, 2003, p. 87). Degas retoma indefinidamente seu desenho e nunca admite que tenha alcançado "o estado póstumo de sua obra". Sua vontade domina o lápis, o pastel, o pincel, sem que o traço esteja suficientemente perto do que ele quer. O que ele deseja é alcançar a precisão última da sua forma, e para isso multiplica os rascunhos, rasura o que já fez se for necessário, avança ou recomeça inúmeras vezes, aprofundando, ajustando, envolvendo seu desenho de folha em folha, de cópia em cópia. São construções feitas, muitas vezes, à custa de destruições. Seu trajeto se dá por um rumo vago, que direciona seus movimentos, e, apesar de possuir uma intuição amorfa, seu senso de direção vai em busca da perseguição de uma miragem (SALLES, 2004, p. 28).

As imagens produzidas em contato com a matéria (sejam desenhos, pinturas, modelagens ou construções tridimensionais) estabelecem ligações entre a memória que temos dos objetos que conhecemos e o inusitado que elas podem provocar ao mesmo tempo em que abrem fendas e rasgam o nosso pensamento (GOMES, 2004, p. Ec. 2). Por seu poder transfigurador, a arte desorganiza para reorganizar em outra formatação, produzindo novos sentidos, alargando espaços e nos mostrando novas aparências do mundo. Simultâneas e diferentes, reversíveis e entrecruzadas estas marcas produzem as experiências que se constituem em linguagem. O corpo que age opera no mundo, transfigura a realidade, como modo de torná-lo inteligível.

Por proliferação e irradiação, o poder do campo ficcional decifra e recria o mundo, nos reapresentando novos modos de ser e existir no mundo e no coletivo. O ficcional não propõe engodos ou mentiras, como queria Platão – ou como quer a racionalidade técnica – mas elabora coordenações entre atos que fazem efeito no real ao definirem regimes de intensidades sensível em seu poder de abertura à outras dimensões de realidade. Quando real e ficção fundem-se não há como retroceder.

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O que aqui está em questão é o poder do vínculo entre o sentido poético das linguagens e o sentido dos sujeitos na coletividade – de todos os sujeitos que temos em nós. Se concebemos as palavras não apenas como designações das coisas mas também como único modo de designá-las, mostramos o quanto podemos empobrecer o poder das linguagens nos instalarem no mundo. Por isso, podemos afirmar a partir de Bachelard (1990, p. 44), que o modo como imaginamos é mais instrutivo ou formativo do que aquilo que imaginamos.

Ao comentarmos as relações ou afinidades entre os processos de criação nas artes e os processos próprios da pedagogia, retomamos aqui a inseparabilidade entre o sensível e o inteligível no ato de aprender a decifrar e interpretar o vivido. Inseparabilidade que acontece no tempo da ação do corpo. Ação que não tendo fundamentos últimos além da história da corporização, nos permite abarcar tanto a experiência vivida quanto as possibilidades de transformação inerentes à experiência do viver. Nessa concepção, aprender – ou mudar hábitos de pensamento – supõe considerar a temporalidade da formação lenta e contínua promovida pelo esforço da razão e pela astúcia da imaginação exigidas – juntas – a garantirem para o pensamento sua função agressiva de projeção ao porvir no mundo contra a inibição intelectual da adequação à explicações e nomeações pré-concebidas do mundo.

(Agradecemos o apoio financeiro do CNPq: auxílio financeiro às pesquisas e bolsas de iniciação científica).

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ZUBEN, Newton Aquiles Von. “Fenomenologia e Existência: Uma Leitura de Merleau-Ponty” Disponível em: www.fae.unicamp. br . Acesso em: 13/dez.2009.

Angela Raffin Pohlmann - Possui Bacharelado em Artes Plásticas (UFRGS), Mestrado em Artes Visuais e Doutorado em Educação (UFRGS), com estágio (bolsa-sanduiche) na área de gravura na Universidade de Barcelona. Atualmente é professora Associada da UFPel e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (Mestrado) da UFPel. Lider do Grupo de Pesquisa "Percursos Poéticos: procedimentos e grafias na contemporaneidade" (CNPq/UFPel). Trabalha com gravura em metal, processos alternativos não-tóxicos para gravura, processos de criação, e artefatos interativos com artistas e engenheiros eletrônicos.

Sandra Regina Simonis Richter - Possui Licenciatura em Educação Artística: Artes Plásticas (UFRGS), mestrado e doutorado em Educação (UFRGS). Atualmente é pesquisadora e professora adjunta do Departamento de Educação, atuando na Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UNISC. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação, Arte e Infância, principalmente nos seguintes temas: aprendizagem, imaginação criadora, experiência poética, artes plásticas, educação infantil e ensino fundamental.