Coditiano e Visualidade: Costuras num modo de Ensinar Arte

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Coditiano e Visualidade: Costuras num modo de Ensinar Arte

Ursula Rosa da Silva

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Paul Ricoeur, na obra A Memória, a história e o esquecimento (2007, p. 425), distingue três espécies de rastros: “o rastro escrito, que se tornou no plano da operação historiográfica, rastro documental; o rastro psíquico, que é preferível chamar de impressão, no sentido de afecção; (...) e o rastro cerebral, cortical tratado pelas neurociências”. A presente pesquisa sobre a história do Instituto de Letras e Artes , atual Centro de Artes da UFPel/RS, iniciou como uma necessidade de ver os protagonistas como pessoas para além do registro histórico, além do rastro escrito, quem foram estes personagens no cotidiano de um ensino das artes no Sul do Brasil. Neste sentido, a memória do trabalho, das vivências e das realizações de professores, alunos e funcionários é um dos enfoques que pretendemos trazer à tona, considerando que este Centro é formador de profissionais que atuam, na sua maioria, no Sul do Brasil desde os anos 1970. Além do aspecto de historiografar os momentos vividos no ILA, este estudo pretende retomar a produção dos professores no sentido de dar ênfase as suas concepções pedagógicas, sua visão do que significa o ensino de arte, quais as metodologias e procedimentos para efetivá-lo na formação tanto de artistas quanto de professores de artes, e se este ensino nos aponta especificidades nas visualidades produzidas.

Nesse sentido, pensamos que as pesquisas e ensaios escritos por professores do Centro de Artes podem dar um panorama das características deste ensino no período de 1973 a 2010, bem como podemos perceber que as mudanças nacionais em termos de reformas educacionais e curriculares têm uma relação direta com o modo como os cursos vão se desenhando ao longo da história e produzindo visualidades que também permitam identificá-lo como formador do campo da arte na região Sul do RS.

A história do Centro de Artes passou por várias transformações e denominações – Escola de Belas Artes Carmen Trápaga Simões (1949), Instituto de Artes (1971), Instituto de Letras e Artes (1973), e Instituto de Artes e Design, de 2005 a 2010 – e pouco do cotidiano desta memória está registrada em textos com o enfoque da historiografia.

Figura 1: (da esquerda para direita) Profa. Anaizi Espírito Santo; profa. Luciana Leitão; Profa. Zunilda Kauffmann; prof. José A. Érico Cava (professores das artes visuais no Seminário de 2012). Fonte: Acervo Centro de Artes

Figura 2: (da esq.para dir.) profa. Elaci Schneider; profa.Anni Gerd; profa. Ceci Hirsch; profa. Iara Cava; Profa. Maria Dilma (professoras da área musical no Seminário de 2012). Fonte: Acervo Centro de Artes

Figura 3: Profa. Myriam Anselmo (ex-diretora e professora das artes visuais do ILA no Seminário de 2012). Fonte: Acervo Centro de Artes

Figuras 1, 2 e 3 (Galeria)

No ano de 2012, dando sequencia a uma série de atividades para retomar a história do ILA - Instituto de Letras e Artes (atual Centro de Artes) da Universidade Federal de Pelotas/RS, convidamos um grupo de professores aposentados para conversar com alunos e professores a respeito de suas memórias como docentes da UFPel, suas estratégias como gestores e de suas metodologias de ensino no campo da arte. Este encontro foi denominado Seminário Memórias do Ensino da Arte. Neste dia compareceram professores das artes visuais e da música (Figuras 1, 2 e 3). Os relatos foram registrados em video e, no ano de 2014, parte da pesquisa sobre a história do ensino de arte na UFPel foi documentada .

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Na oportunidade do Seminário de 2012, a professora Myriam Anselmo doou a nossa pesquisa alguns de seus documentos, dentre textos; imagens; cadernos de aula, para serem lidos e “queimados”, como ela mesma escreveu na dedicatória feita para mim. Este gesto de passar seus registros significou como uma entrega, muito além de uma entrega de papéis ou de um acervo que pode manter uma memória: significou uma entrega de si, uma aposta na continuidade de uma luta de anos pelo ensino e dedicação às artes, que iniciou, como ela disse: “com um contrato de serviço sem remuneração, com prazo indeterminado”, apostando que a universidade iria criar um Instituto de Artes. Os onze professores que começaram a dar aulas na criação deste Instituto pela Universidade, trabalhando literalmente por amor, deram muito de si para estruturar o ensino das artes dentro da UFPel.

As memórias da docência estão, em geral, ligadas a aspectos biográficos, ou seja, quando se fala de uma metodologia aplicada por professores, também é preciso considerar o modo como estes professores se formaram, como vêem o mundo, quais as suas expectativas no campo do ensino, enfim, a pessoa que ensina é parte do processo de ensino, e suas escolhas estão, a todo o momento, influenciando seu modo de agir e sua atuação como docente e como formador.

Nesse sentido, a pensadora Marie-Christine Josso, que trabalha com o método biográfico, mostra como as histórias de vida são fundamentais para a constituição do processo de formação. Na obra Experiências de Vida e Formação, ela apresenta alguns tópicos que desenvolveu em sua tese de doutoramento (publicada em 1991, com o título Caminhar para Si) e também aborda a importância das histórias de vidas, como material de apoio na investigação sobre formação, principalmente no espaço universitário. Para Josso, o enfoque por histórias de vida tem dois objetivos: evidenciar o modo como o pesquisador modifica seu posicionamento ao se envolver e aprimorar a metodologia de pesquisa-formação vinculada a uma história de vida; e constituir um novo campo de reflexão, abrangendo a formação e a autoformação (2010, p. 31).

A descrição dos processos de formação e de conhecimento, sob a forma de gêneros de saber-fazer e de conhecimento, permite reagrupar o que foi aprendido em termos de transações possíveis consigo mesmo, com o seu ambiente humano [...] e com seu ambiente natural [...]. A narrativa de um percurso intelectual e de práticas de conhecimento põe em evidência os registros da expressão dos desafios de conhecimento ao longo da vida. Esses registros são precisamente os conhecimentos elaborados em função de sensibilidades particulares em um dado período. (JOSSO, 2010, p. 40-41)

Por outro lado, também se torna importante avaliar os aspectos da estrutura que a academia possibilita aos professores para que o trabalho pedagógico tenha um apoio, não apenas de base metodológica, curricular e conceitual, como também de âmbito da infra-estrutura, de um espaço que dê condições para que o processo de ensino-aprendizagem se efetive.

Pierre Bourdieu tem refletido em seus textos a respeito da abordagem didática, bem com a estrutura que está por trás do ensino. Em sua obra Homo Academicus (publicada na França em 1984), ele toma como tema os acontecimentos que ocorreram antes e durante maio de 1968, traçando uma topografia social do mundo universitário, demonstrando que existem dois lados nesta estrutura composta por sujeitos classificadores: o lado do saber, caracterizado pela liberdade acadêmica e, de outro, o lado do poder, que toma para si o que chama de responsabilidade social (2013, p. 17). Bourdieu analisada a sociedade como estruturada em campos, e a universidade, assim como a escola, possuem uma lógica organizacional que compete com o campo do saber, ou seja, ambos acabam dependendo um do outro. Nos escritos de Myriam Anselmo encontrei desde planos de aula a planejamentos de gestão, que revelam uma organização prática em um cotidiano administrativo, mas também uma elaboração de procedimentos didáticos necessário para a fundamentação do ensino na arte e no âmbito da universidade.

Figura 4 - Folha seca em caderno de planos de aula de Myriam Anselmo (texto de 1982)

Figura 5 - Folha seca e texto explicativo de como obter o ritmo na composição, em caderno de planos de aula de Myriam Anselmo (texto de 1982)

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Ao abrir um dos cadernos , dentro dele, como perdida dentre as páginas escritas, uma folha seca, de um verde desbotado, cuja cor, parte de seu verde, tinha passado para a folha de papel, deixando sua marca (figura 4). Uma pequena folha seca no meio de um caderno manuscrito. Uma simples folha, mas com tantos significados, de vivências, de memórias, de mensagens implícitas, deixadas – sem grandes pretensões para o futuro – nas páginas escritas à mão, num caderno de planejamento de aulas, um diário de bordo, revelador de um cotidiano pedagógico e administrativo, cujos temas, problemas e provocações nos aproximam muito do que nós hoje vivenciamos neste cotidiano atual.

A primeira impressão foi a de acaso, uma folha que ficou guardada sem intenção. Mas logo percebi que havia um grande sentido naquela folha, e que todo um pensamento e planejamentos de aulas foram feitos a partir dela, pois na mesma página, estava um texto e uma sequencia explicativa que utilizava a folha para exemplificar o ritmo na composição.

Além do conteúdo que este caderno traz, começo a refletir a partir dele mesmo, do suporte que envolve uma escrita, uma documentação, uma narrativa muito íntima no sentido de um diário com o qual conversamos e confessamos nossos sonhos e nossas decepções, as realizações, as conquistas e as desilusões também do cotidiano. A escrita à mão nos desloca no tempo, antes do computador, antes do email, das mensagens e textos descartáveis de hoje. A tecnologia nos afastou de certa pessoalidade expressas nestes documentos manuscritos. Também tirou de certo modo a autoria, do traço escrito, da caligrafia, sobreposta pela máquina que digitamos, das impressões que nos distanciam do gesto da escrita e da marca manual no papel. O caderno manuscrito traz uma nostalgia do tempo que guarda consigo.

Há algumas constatações que podemos fazer a partir deste documento: primeiro, que existe uma estrutura na instituição de ensino da qual não se pode prescindir, e a qual, cotidianamente temos que enfrentar. Segundo, que a base pedagógica está absolutamente ligada à estrutura físico-administrativa da instituição.

Acredito que a formação de professores passa pelo convívio cotidiano também do grupo de que fazemos parte, aprendemos com nossos colegas, e isso é o que melhor define a formação continuada: dia a dia continuamos nossa jornada de aprendizagem, num cotidiano que vai dando significado ao nosso fazer. E esse cotidiano, como define Fernando Hernández, demanda que se desenvolva uma percepção aguçada para ver o novo no “mesmo”, ou seja, o mundo é o mesmo todos os dias, as pessoas são as mesmas, ou pensam ser, o segredo está em perguntar “quem vê?” e “o que vê?”. Aquele que se coloca num estado de predisposição para ver o novo vai sempre buscar outras formas de significação, não vai se acomodar com os significados dados e vividos no dia-a-dia pelo senso comum. Ao contrário, o cotidiano vai ultrapassar o sentido de mesmice para dar-nos novos olhares, outras formas de significar, desde que estejamos prontos para esta abertura para o mundo.

Figura 6 – Nesmaro – retrato de Myriam Anselmo, desenho (1971)

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Lembro do dia em que decidi ser professora, e hoje entendo porque foi num lugar de efervescência da vida acadêmica, no saguão da universidade em que fiz minha graduação que acabei tendo aquele arrebatamento para a docência. Este ano, preparando um discurso para uma turma de formandos do Centro de Artes, me dei conta que, de certa forma, escolhi ser professora num ambiente acadêmico, onde muitos estão de passagem, todos fazem sua formação e saem, mas nós professores ficamos, pelo menos por um tempo mais longo. Esta escolha de ficar, permanecer neste lugar de formação, talvez tenha sido, de certa forma, para tentar “segurar” o tempo, permanecer, fazer a vida vibrar neste espaço de formação, para que ele sempre seja contagiante. Pois alguém tem que ficar ali para dar prosseguimento, passar o bastão para outro. Acho que é isso que fazem os professores na academia, o homo academicus de Bourdieu, ficam, cuidam e dão continuidade. Assim vejo o legado de Myriam Anselmo, como motivador, inspirador de mais fazeres, de mais vida, de mais motivos para seguirmos, darmos continuidade, e para contagiar a outros com arte. É desta forma também que percebo a sua representação no desenho de Nesmaro, como uma batalhadora da arte, e esse era o modo como ela foi vista por seus colegas do Instituto de Letras e Artes.

Dentre anotações de compras, consertos e a demanda por verbas para a aquisição de um prédio para o ILA (Instituto de Letras e Artes), as questões pedagógicas sempre aparecem articuladas. Vemos que em seus objetivos para os “próximos dias” estaria presente a articulação das ações de ensino, pesquisa, extensão junto a equipamentos, material, pessoal e espaço, ou seja, sempre teve a visão de que a estrutura acadêmica e a base pedagógica devem andar juntas.

Dia 01 de julho de 1981 – considerações em face a uma mudança de período letivo e a aquisição do prédio próprio do ILA – Mente – Mentes – Mentalidades – Vinculando a função ao espaço e considerando que para agir é preciso espaço, vejamos as providências cabíveis para a direção nos próximos dias, quanto ao: 1- Ensino; 2 – Pesquisa; 3- Extensão; 4- Pessoal; 5- Material, equipamentos; 6- Espaço. (Caderno de anotações de Myriam Anselmo - nov/1980 a dez./1982)

No encaminhamento dos itens citados, Myriam traz um estudo de reestruturação de todos os cursos do ILA, em termos de conteúdo, estrutura e avaliação, e considera as tarefas que compete a um Colegiado de Curso:

Um Colegiado por curso deverá ter condições de: atualizar constantemente o currículo de acordo com o meio; Manter os alunos atualizados com os eventos realizados no país e fora do país; Organizar o preparo, acompanhamento e a integração do alunado com os trabalhos com a comunidade através da extensão; Manter-se atento para com o mercado de trabalho aprimorando o nosso aluno – o formado e o em formação – propiciando uma constante melhoria através de cursos, seminários, encontros, excursões, levando em consideração que assim haverá uma melhoria no 1º. e 2º. Graus. (Caderno de anotações de Myriam Anselmo, dia 01/07/1981)

Ela propõe, em sua análise do contexto e contando que o ILA ganharia um novo prédio com maior espaço para ateliês, que as Graduações dos Cursos de Bacharelado em artes passem a ser constituídos em separado (Pintura; Escultura e Gravura) para que os mesmos se fortaleçam, considerando que Pelotas tem condições e demanda para formar mais artistas e o ILA tem “espaço e gente para implementar o fazer artístico”. Em seus estudos, Myriam Anselmo propõe que os cursos de Artes Plásticas tenham uma parte do currículo básico em comum; que cada aluno faça no mínimo uma mostra individual avaliada por docentes e que no fim da Graduação o aluno tenha, pelo menos três trabalhos que caracterizem sua poética, devendo esta produção passar por uma banca de avaliação. Esta proposta, pensada em 1980, está na origem dos atuais TCCs (trabalho de conclusão de curso). Vejo que o TCCs é um modo de qualificar a formação do aluno, fazendo-o não apenas elaborar um texto como resultado de pesquisa, mas principalmente faz com que haja um aprendizado no modo de pesquisar, de estudar, de elaborar textos e de expor seu pensamento.

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Para criar um elo entre os Cursos e ter um espaço para pensar a relação pedagógica no ILA, Myriam propôs a criação de um Núcleo de Apoio Pedagógico, vinculado aos cursos e departamentos que possa dar acesso a documentos fundamentais da área de artes, de outras universidades brasileiras, bem como orientações de órgãos e instituições que possam dar o apoio nas metodologias de ensino como CAPES, MEC, etc. Este Núcleo seria responsável por pensar a qualidade dos cursos. Ligada ao Núcleo, a Biblioteca setorial devia ser constituída de modo a possibilitar um acervo específico de arte e de qualidade com livros, revistas, periódicos fundamentais ao ensino das artes. A Extensão é pensada como fundamental para a melhoria do ensino, e além das atividades já existentes como o Dia da Criatividade, proposta colocada em prática junto à comunidade e às escolas, com oferta constante de atividades artísticas em espaços de praças como no prédio do ILA.

Figura 7 – Foto do cartaz em que se encontra o texto de Augusto Rodrigues. Fonte: Caderno de Anotações de Myriam Anselmo (1983)

Figura 8 – Imagens do Curso para professores estaduais de 1982. Fonte: Caderno de Anotações de Myriam Anselmo (1983)

Myriam também esboça como um rascunho, no Caderno de 1980 a 1982, a ideia de uma escola de arte infantil, a qual fica entre pontos de interrogação, refletindo um “como fazer?” Estas reflexões e esta pergunta percebo que estão presentes nestes registros escritos de Myriam Anselmo, assim como estes esboços foram a base para um curso oferecido a um grupo de professoras da rede estadual de ensino de setembro a dezembro 1982, que teve a participação de vários professores e alunos do Instituto de Letras e Artes, os quais estavam sempre presentes nas atividades de ensino e de extensão de modo interdisciplinar (com as áreas de música, teatro, artes visuais). Num outro Caderno de 1983 encontram-se os registros das aulas deste curso (Figura 8) bem como as fotografias das diversas aulas e até uma mostra que ocorreu no final do mesmo. Pode-se ver que, já na entrada da sala, é proposta a reflexão (Figura 7) a partir do pensamento de um dos defensores da escolinha de arte para crianças, Augusto Rodrigues:

sabemos que é na escola que a criança descobre o outro e seus direitos; é lá que ela se exercita na cidadania; é lá que ela descobre a existência de outros povos, costumes, paisagens. É lá que ela gradativamente adquire a consciência de sua presença no mundo, como ser construtivo e agente de comunicação. Acreditamos que não há educação sem bom relacionamento, nem bom relacionamento sem adequado desenvolvimento da sensibilidade. Se a escola se alheia em torno de uma educação dos sentimentos, afasta o homem de seu próprio destino. (Caderno de Anotações de Myriam Anselmo de 1983)

Nas imagens é possível perceber o envolvimento dos professores nas aulas, o interesse pelas propostas e a grande produção que é realizada pelos integrantes do curso.  O interessante é que, conversando com um dos professores do atual Centro de Artes, professor José Luiz Pellegrin – que foi aluno de Myriam e depois, como professor, participou ministrando aulas neste curso de 1982 – percebe-se que o envolvimento com as atividades, desde as aulas até os cursos de extensão, são promotores constante desta formação continuada, e transformador de metodologias de ensino, na medida em que este envolvimento com a comunidade e com professores da rede de ensino provocava também que os formadores estivessem em permanente processo de criar novos caminhos para o ensino. Marie Christine Josso relaciona a formação com as experiências, a partir das quais as identidades e nossa subjetividade se constituem e se transformam.

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Dado que todo e qualquer objeto teórico se constrói graças à especificidade da sua metodologia, o mesmo também se passa com o conceito de formação, que se enriquece com práticas biográficas, ao longo das quais esse objeto é pensado, tanto como uma história singular, quanto como manifestação de um ser humano que objetiva as suas capacidades autopoiéticas (...) Formar-se é integrar numa prática o saber-fazer e os conhecimentos, na pluralidade de registros. (2010, p. 35).

 E como Fernando Hernández, é no cotidiano que precisamos ser catadores de novos sentidos, de novos caminhos para significar em arte. Do mesmo modo, percebo que o professor Pellegrin teve nas aulas com Myriam, um ambiente de formação criativo e criador de pensamentos e de fluir da arte. Como ele nos diz:

Diferenciadamente, as disciplinas de Expressão Plástica – cabe lembrar que as disciplinas identificadas no grupo das Expressões eram todas desenvolvidas em quatro semestres – trabalhavam inicialmente sem referência no real. Sua referência inicial era o universo de signos adotados pela arte abstrata em decorrência da crise da representação. Os elementos da linguagem visual eram explorados a partir da proposição de Kandinsky para uma linguagem de signos. Os princípios da gestalt orientavam a articulação dos elementos e o objetivo era aguçar a percepção do aluno para o fazer artístico, mas também para a formação de um profissional qualificado, sensível para qualquer área profissional. A vida do campo e a experiência da cidade da região eram trazidas para a sala de aula como motivação para uma redescoberta do cotidiano, como possibilidade de identificação das habilidades que os fazeres desses espaços compreendiam. Como muitos deles foram sendo considerados obsoletos e excluídos do repertório cultural em decorrências das soluções que as máquinas industriais representaram, a retomada dessas opções ampliava a vivência do aluno sobre o passado e sobre as mudanças; como profissões que foram morrendo ou sendo reduzidos os espaços das suas funções também se tornaram raros. (Pellegrin, 2015)

Do legado de Myriam Anselmo, nas propostas tanto de aulas como de cursos de extensão, é possível perceber uma visão de formação que relaciona o meio; o mercado de trabalho, as visualidades do cotidiano; as questões sociais e as demandas da arte. Como relata Pellegrin:

A vida do campo e a experiência da cidade da região eram trazidas para a sala de aula como motivação para uma redescoberta do cotidiano, como possibilidade de identificação das habilidades que os fazeres desses espaços compreendiam. Como muitos deles foram sendo considerados obsoletos e excluídos do repertório cultural em decorrências das soluções que as máquinas industriais representaram, a retomada dessas opções ampliava a vivência do aluno sobre o passado e sobre as mudanças; como profissões que foram morrendo ou sendo reduzidos os espaços das suas funções também se tornaram raros. Esse olhar que revisita o saber no circuito cultural e a respostas às demandas que o mercado impõe era explorado como aplicação dos princípios que integravam o conteúdo das disciplinas e como modo de instaurar uma ética do trabalho que permitisse, a partir da experiência artística, instaurar um lugar para desenvolver habilidades e capacidades que pudessem refinar a percepção e educar os sentidos. O germe da inclusão social sempre permeou essa orientação que presume o fazer e o saber enquanto marcos de um sistema que valoriza a memória, os afetos, os cuidados e a potência da realização. Revela também um repertório e um saber do professor que é da ordem da vivência, aqui vivência como experiência. Um saber que se constitui enquanto realiza e repete o fazer e tanto faz que se diferencia pela repetição. Esse viés da inclusão definiu com o tempo o perfil extensionista que caracteriza até hoje a área de arte. (2015)

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Concordo com Josso que a abordagem biográfica pode ser um bom lugar para perceber aspectos relevantes das situações educativas, para ela “a experiência formadora é uma aprendizagem que articula, hierarquicamente: o saber-fazer e os conhecimentos, funcionalidade e significação, técnicas e valores num espaço-tempo que oferece a cada um a oportunidade de uma presença para si e para a situação” (2010, p. 36). E, nesse sentido, podemos verificar que a experiência e as práticas de ensino pelas quais passamos, são tão formadoras quanto o conteúdo formal das disciplinas. A vivência de um cotidiano que proporcione o questionamento constante do “como fazer?” é desafiador, pois, ao darmos uma resposta, não percebemos, mas uma transformação aconteceu.

A experiência de ensinar e aprender se regia por uma espécie de compreensão e certeza de que o lugar de trabalho deverá ter características de acolhimento. O espaço de trabalho se ordena pelo cuidado com os materiais, com a adequação ou apropriação dos instrumentos e a exploração da linguagem se dá pela singularidade da solução que a própria experiência incita. A sala de aula de Expressão Plástica sempre foi uma espécie de cozinha equipada para o trabalho. A cada aula as motivações eram diferenciadas e os espaços poderiam ser ampliados; do espaço formal para a rua; da reconfiguração do espaço formal para a simulação de um espaço de trabalho que fosse representativo para o grupo ou para possíveis profissões onde o exercício de relações sociais e de saberes pudessem ser praticados: da feira ao protesto na rua. Os cenários, os figurinos, os personagens, a maquiagem, os produtos, os valores de troca, os modos de comunicação eram todos elementos das mais diversas disciplinas que poderiam ser exercitados na arte. Traziam implicados nessa vivência a memória afetiva, o domínio técnico, a capacidade expressiva, a experiência social e a fluência para agir e reagir às novas circunstâncias por cada integrante. (PELLEGRIN, 2015)

Figura 9 – Alunos da disciplina Expressão Plástica, ministrada por Myriam Anselmo (à dir.) – anos 1980.

Assim, ao realizar esses encontros com pessoas e com seus textos, reveladores de um tempo enriquecedor de vida como formadores, espero poder registrar algo do que foi a vida e o ensino das artes deste Centro de Artes, desde as suas origens, principalmente por meio dos rastros destes professores que aqui deixaram sua marca, seus sonhos, seus afetos e realizaram obras, proporcionaram grandes momentos de ensino, de testemunho de vida, de dedicação à instituição acadêmica e inventaram um cotidiano múltiplo de visualidades, com o qual nos comprometemos a dar continuidade. E encerro com uma imagem da aula de Myriam Anselmo (Figura 9), com um grupo de alunos, dentre alguns dos que se tornaram professores.

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Referências

Arquivo do Centro de Artes. UFPEL, Pelotas.

Caderno de anotações de Myriam Anselmo - nov/1980 a dez./1982.

Caderno de anotações de Myriam Anselmo - 1983

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PELLEGRIN, José Luiz de. RELATO – texto digital, não publicado, maio de 2015.

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SILVA, Ursula R. da. A Fundamentação Estética da Crítica em Arte de Ângelo Guido: a crítica de arte sob o enfoque de uma história das ideias. Tese de Doutorado, Pós-Graduação em História. PUC/RS, 2002.

SILVA, Ursula R. da; LORETO, Mari-Lúcie. História da arte em Pelotas: a pintura de 1870 a 1980. Pelotas: EDUCAT, 1996.

URSULA ROSA DA SILVA – Graduada em Licenciatura em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (1988), mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1992), Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2002) e Doutora em Educação (UFPEL/2009). Professora Associada na Universidade Federal de Pelotas, desde 1995. É professora do programa de Mestrado em Artes Visuais (UFPel). Atualmente é diretora do Centro de Artes da UFPel/RS. É líder do grupo de pesquisa: NEAP - núcleo de estudos em artes e patrimônio, junto ao CNPq.