Mídias contemporâneas: narrativas e aprendizagens fora e dentro da escola

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Mídias contemporâneas: narrativas e aprendizagens fora e dentro da escola

Alice Fátima Martins

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Para início de conversa, esboços provisórios de alguns percursos

A vida social contemporânea, nos complexos urbanos, e também em boa parte do contexto rural, tem suas dinâmicas entremeadas pela grande diversidade de aparatos tecnológicos de comunicação e informação, mídias tornadas indispensáveis nas quantas atividades em curso: entretenimento, produção, informação, comunicação, publicidade, arte, formação, educação, saúde, etc.

Cada vez mais precocemente, as crianças são iniciadas aos aparatos tecnodigitais, no decurso dos processos de inserção nas malhas sociais, de socialização, de trânsito no mundo da cultura. Desde muito cedo, relacionam-se com narrativas articuladas por meio de imagens animadas, as mais diversas, sonorizadas. Apropriando-se das narrativas veiculadas ou produzindo as suas próprias, precocemente desenvolvem familiaridade tanto com as questões formais, os modos como essas narrativas são realizadas, seus elementos de linguagem, bem como com as informações por elas veiculadas, as histórias que contam, os argumentos que constroem, as linhas de pensamento que presidem. Ou seja, apropriam-se da forma e do conteúdo, construindo formas de conhecer a partir delas e na relação com elas.

Contudo, as instituições escolares, sobretudo na educação básica, ainda estão longe de reconhecer, ou de se apropriar do potencial pedagógico desses aparatos, suas narrativas imagéticas, audiovisuais, seus jogos, redes e fluxos. Mais que isso, as escolas nutrem uma espécie de embate de suas estratégias de ensino mais recorrentes contra as afinidades de seus estudantes com os modos de operar dos multimeios.

Não parece precipitada, tampouco é novidade a constatação de que as mídias contemporâneas, a despeito do quanto estejam imbricadas nas vidas das pessoas, não configuram recursos explorados amplamente pelos projetos educacionais formais. Esse fato resulta em processos e procedimentos na contramão da ampla disponibilização, aos estudantes, fora dos territórios escolares, de toda uma gama de aparatos tecnológicos e seus desafios altamente sedutores, bem como as promessas de autonomia para a produção de imagens, de vídeos, o estabelecimento de meios de comunicação, redes de relacionamentos, compartilhamentos de experiências.

Se as instituições de educação formal não incorporam tais aparatos em seus processos pedagógicos, como se dão as aprendizagens necessárias à operação desses aparatos, seus usos sociais, suas produções de histórias, as modificações de comportamentos decorrentes da sua incorporação aos quotidianos?

A interação e apropriação das quantas telas com múltiplas funções, quase onipresentes nesta segunda década do século XXI, resultam de um processo disparado há pouco mais de cem anos, quando se iniciaram as projeções das imagens animadas num telão, numa sala fechada. O impacto causado pela ilusão de verdade sobre a percepção de uma plateia ainda sem qualquer treinamento para aquela experiência não pode ser sequer imaginado pelos usuários intensivos das telas digitais dos mais diversos tamanhos com múltiplas finalidades desta segunda década do século XX.

Antes da invenção do cinematógrafo, a invenção da fotografia marcou a gênese do que Flusser (2008) denominou de era das imagens técnicas, ou seja, das imagens produzidas por meio de aparatos tecnológicos. Para o filósofo, elas redimensionaram os modos de as pessoas se perceberem no mundo e com ele se relacionarem. Das imagens fotográficas às imagens em movimento, e destas às imagens sonorizadas projetadas em grandes telas, para serem vistas por públicos em salas de cinema instaladas nos centros urbanos, transcorreram-se poucas décadas. A natureza transnacional marcou o cinema desde os seus primórdios, na capacidade de mobilizar diferentes públicos, nos mais diversos países, mesmo (talvez sobretudo) contando histórias estranhas, alheias aos contextos de suas audiências.

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A despeito dos vários pensadores que, desde o início do século XX, desenvolveram marcos teórico-conceituais sobre a linguagem cinematográfica, talvez tenha sido Walter Benjamin (1994) o primeiro a suspeitar de seu potencial pedagógico. Este potencial, deve ser feita a ressalva, não é pensado a partir das instituições educacionais formais, tampouco é a elas endereçado. Benjamin (1994) atribui, ao cinema, a capacidade de preparar seu público para lidar com as profundas transformações em curso na sociedade que se industrializava rapidamente, constituindo os grandes complexos urbanos, com todos os conflitos decorrentes, incluindo as guerras e seus cenários nefastos. Numa velocidade crescente, as pessoas passaram a ter que operar com volumes cada vez maiores de informação, em ritmos também em processo de rápida aceleração, e impactos profundos nos modos de gerir a própria vida.

O cinema, concebido e desenvolvido nesse ambiente, conta histórias sobre esse ambiente. Ao contar histórias, e também nos modos como as conta, constitui fonte de aprendizagens sobre como se possa ali sobreviver e articular sentidos para esse viver. Que fios, fibras, elementos entrelaçam-se nas tramas e dinâmicas dessas aprendizagens?

Um dos campos importantes de modificação propiciada pela experiência com as narrativas cinematográficas relaciona-se à percepção. Muitos são os relatos que descrevem o susto, alguns referem mesmo o pânico de que teria sido tomado o público ante a visão do trem avançando sobre eles, na projeção realizada pelos irmãos Lumiere, no salão indiano do Grand Café de Paris, no longínquo 28 de dezembro de 1895. A reação decorreria do medo ante o desastre anunciado pela imagem em movimento. Alguns pesquisadores advertem quanto à necessidade de se minimizar parte da ênfase dada por muitos desses relatos, que talvez não se fundem em fontes consistentes, mas resultem dos ecos de histórias repassadas, alimentadas e reforçadas pela imaginação de cada autor que se alia ao grande raconto, como soe ocorrer, afinal, além da própria história do cinema, com as próprias histórias contadas pelo cinema...

Contudo, uma coisa é certa: a visão de um trem em movimento em direção ao público deflagrou, naquela sessão inaugural, um processo de modificação nos modos de percepção do mundo, que não teriam mais retorno à condição anterior. A partir dali, se aprenderia a ver imagens animadas, contando sobre coisas, pessoas, animais, embora não estivessem, de fato, ali. Aprender-se-iam a firmar pactos de acordo com os quais todos fariam de conta que tudo era verdade... Assim, as pessoas aprenderam a estabelecer relações com imagens de coisas, seres, lugares que não tomavam parte de seus quotidianos, integrando-os à imaginação, ampliando repertórios, tornando gradativamente mais complexas as histórias contadas sobre o mundo, numa expansão do alcance temporal e espacial, em direção ao futuro e ao passado, com ganas do infinito imponderável.

Além das histórias contadas, das imagens projetadas na tela, também integram as fontes de aprendizagem e modificação da percepção os ritmos impressos aos modos de se contar as histórias, à velocidade com que as imagens se deslocam diante dos olhos, às sonoridades que reforçam a ilusão de imersão. Aprendeu-se, pouco a pouco, num processo ainda hoje em curso, a decifrar cada vez mais rapidamente os códigos, a estabelecer relações entre diferentes informações inseridas de acordo com novas técnicas de edição, novos estratagemas de efeitos especiais. As trucagens constituem ferramentas sem as quais a mágica do cinema não se realiza: os fazedores de cinema aprenderam esta lição desde Méliès, o prestidigitador que fez do cinematógrafo sua principal ferramenta para produzir ilusões, a serviço das histórias que queria contar.

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A transmissão de imagens por meio das redes de televisão possibilitou que as imagens animadas e sonorizadas pudessem ser trazidas para o ambiente doméstico. Como pequenas janelas abrindo, no espaço privado, uma fresta por onde se podiam espiar mundos outros, as telas dos aparelhos de televisão proporcionaram aos sentidos aprender a decifrar imagens em menor dimensão, organizadas em várias categorias: telenovelas, filmes, jornais, programas de auditório, de humor, entre tantos outros.

Houve quem anunciasse o fim do cinema, subsumido pelas programações televisivas. Mas os telões das salas escuras continuaram convivendo muito bem com os écrans dos aparelhos de televisão, e seus públicos aprendendo a relacionar-se com o mundo desde ambos os ambientes.

Não tardou para que os aparelhos de televisão começassem a estabelecer parceria com equipamentos de vídeo, mostrando, ao gosto público, narrativas produzidas em fitas eletromagnéticas que reproduziam filmes, seriados e outros programas televisivos, ou mesmo registros e produções feitas com câmeras de vídeo, cada vez mais populares. Esse foi um passo importante no processo de aproximação entre a produção cinematográfica de grandes proporções e a produção de narrativas audiovisuais pelo público em geral. Essa aproximação tornou-se irreversível, e cada vez mais complexa, sobretudo com a popularização da tecnologia digital na articulação de informações em som e imagem, e a multiplicação nos modos de produção e compartilhamento dessas narrativas nos aparatos tecnológicos também multiplicados, em suas telas de diversos tamanhos e quantos modos de funcionamento.

A sobreposição das funções e ferramentas disponibilizadas nos diferentes aparatos possibilitados pela tecnologia digital fez com que as câmeras fotográficas e de vídeo fossem alojadas em computadores, aparelhos celulares, tabletes, e uma série de outros abrigos, além das câmeras convencionais, sejam elas compactas, automáticas, ou com um leque maior de recursos e ferramentas aos seus usuários.

Multiplicaram-se, também, os aparelhos cujas telas servem tanto para capturar imagens quanto para mostrá-las, e veiculá-las, por meio das redes de computadores, em páginas de relacionamentos sociais, canais de compartilhamentos, publicações diversas, entre outros. Como resultado, um número cada vez maior de pessoas fotografa, grava imagens em movimento, faz edições, modifica de acordo com seus modos autorais de produzir narrativas, e as compartilha nos ambientes digitais. Nesse emaranhado imponderável, “navegantes do ciberespaço”, transitam aventureiros e flaneurs à busca de interação, interlocução, visibilidade, novidades, mas também circulam hackers orientados pelos mais diversos objetivos, novos piratas e saqueadores de informações, nem sempre bem vindos, cujas intenções não podem ser consideradas exatamente solidárias, ou fraternas...

Nos labirintos percorridos desde a invenção da câmera fotográfica e do cinematógrafo, além do desenvolvimento técnico e científico para a produção e veiculação de imagens e outras informações, bem como para o estabelecimento das redes de comunicação, para o armazenamento e disponibilização de dados, os usuários em geral (esses que, embora não tomem parte dos processos de ideação e realização desses projetos desenvolvimentistas, deles se beneficiam na gestão da vida quotidiana) foram submetidos a processos acelerados de aprendizagens diversas, para acompanhar as novidades lançadas a cada passo, sedutoras, cheias de promessas de solução para seus problemas, ou de potencialização dos sonhos, realização dos desejos. Sobretudo, usinas profícuas de novos desejos.

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Tais aprendizagens não envolvem apenas a manipulação dos aparatos, mas redundam na modificação dos modos de estar no mundo, se representar nele, relacionar-se consigo, com os demais e seu contexto. Mudam os aparatos, mudam aqueles que deles fazem uso, que com eles se relacionam, de modo cada vez mais imbricado.

Vale ressaltar, no entanto, que a referência a aprendizagens aceleradas, modificações de comportamento e modos de pensar, de aprender, de produzir narrativas, não tem em vista necessariamente os processos da educação escolar formal. Pauta-se, sim, nas dinâmicas socioculturais que pressupõem aprendizagens como condição de inserção nas malhas de relações e pertencimento, nos processos de socialização prolongados por toda a vida.

Há que se notar, também, que, embora igualmente imersas em todas as transformações em curso, porquanto parte desse contexto, as instituições escolares regulares têm incorporado de modo muito acanhado os aparatos tecnológicos, e as aprendizagens por eles deflagradas, aos seus projetos educativos. Ou seja, embora profundamente transformadas pela intervenção das tecnologias digitais, presentes em todas as dimensões da vida cultural contemporânea, as escolas tardam em incorporar as suas questões, tensões, contradições e potencialidades nas relações de ensinar e aprender que tecem os quotidianos de suas comunidades. Esta constatação ganha dimensões inequívocas quando se tratam das redes públicas de ensino.

Filmes de ação, um menino e um celular nos labirintos do mercado

O filme paraguaio 7cajas oferece uma narrativa cujos elementos, por certo, auxiliarão na tessitura das reflexões aqui propostas. O projeto do filme começou a ser pensado por Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori em 2004. “Foi pré-produzido em 2009, filmado em 2010 e finalizado em 2011 com o auxílio do prêmio EnConstrucción do Festival de Cine de San Sebastián, primeira de muitas láureas que o filme viria a receber após o seu lançamento em 2012” (FACHEL, 2014). Mas a história se passa em 2005, precisamente quando começaram a ser vendidos, no Mercado 4, em Assumpción, capital paraguaia, os primeiros aparelhos celulares equipados com câmera para gravar vídeos. Victor, um jovem que trabalha como carregador de mercadorias e conhece o território do Mercado como a palma da própria mão, se encanta vendo filmes nos aparelhos de televisão à venda nas lojas de eletrodomésticos. Seus preferidos são os filmes de ação estadunidenses. Lembra-se de memória as falas das personagens e, enquanto acompanha as cenas, repete-as em sua própria língua, misturando guarani e espanhol. E imagina ver seu próprio rosto projetado nos écrans, transformado numa estrela do cinema.

A irmã de Victor lhe mostra um aparelho celular que uma colega de trabalho quer vender. Com ele, se podem gravar vídeos caseiros. Desejoso de comprá-lo, mas sem dinheiro para tanto, Victor aceita um serviço pouco comum: pegar sete caixas num açougue, cujo conteúdo desconhece, para levá-las a qualquer lugar longe dali, mantê-las em segurança, a salvo de qualquer curioso, devendo trazê-las de volta quando solicitado. A partir daí, vários fios de histórias são entrelaçados, enquanto o jovem, com a amiga Liz, metem-se em várias complicações que incluem a polícia, um grupo de carregadores que trabalha no Mercado, além dos próprios contratantes do trabalho e seus desentendimentos. Os aparelhos celulares tomam parte ativa em todo o desenvolvimento do enredo que envolve ação, suspense, humor. São também centrais no desfecho da história quando, por caminhos surpreendentes e arrevesados, ao menos parcialmente o sonho do jovem é realizado.

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7cajas foi filmado inteiramente nas dependências do Mercado 4, e integrou ao seu elenco pessoas comuns, trabalhadores do Mercado 4 que, se habituados aos labirintos formados pelos corredores e bancas de venda, não tinham qualquer familiaridade com os rituais de produção de narrativas audiovisual e seus aparatos. Assim, o filme conta com atores que dão vida a personagens pensados a partir de seus próprios territórios. Dito de outra forma, em alguma medida os atores interpretam a si mesmos, ou brincam com o seu próprio estar no mundo. Apesar de, por alguns críticos de cinema mais conservadores, ser considerado apenas um filme de ação, um thriller nem tão bem realizado, de baixo custo, inspirado nas produções hollywoodianas, esse trabalho constitui uma instigante narrativa na qual as histórias do cinema, as novidades no campo das tecnologias da imagem e da telefonia, o imaginário e o desejo se entrecruzam, demandando de suas personagens aprendizagens inevitáveis, num cenário que é, ao mesmo tempo, palco de (des)encontros de culturas, circulação de mercadorias, negociações as mais variadas. A noção de mercadoria é cara ao filme, e também às questões-eixo deste ensaio.

Victor, o jovem que conduz a história, sonha estrelar um filme de ação. Imagina seu próprio rosto projetado. Também deseja adquirir o último modelo de aparelho celular com câmera de vídeo. Assim, quem sabe, possa produzir suas próprias histórias, e mostrar-se nelas. Sua relação com as histórias contadas pelo cinema em nada se parece com a das pessoas que assistiram à projeção do trem chegando à estação, no final do século XIX, em Paris. Mais que isso, Victor bem poderia ser um dos milhares de estudantes trabalhadores que frequentam as salas de aula das escolas de educação básica, nas redes públicas de ensino. Ou também poderia ser um dos outros tantos que evadiram das instituições escolares, movidos pela necessidade de trabalhar, e pelo desinteresse experimentado nas aulas com pouca ou nenhuma relação com as dinâmicas de sua vida.

Diante dos monitores de televisão, nalguma loja do Mercado 4, na capital paraguaia, ele se perdia no tempo do desejo e da imaginação, sonhando em ser o mocinho num dos muitos filmes cujo texto já sabia “de cor”, ou seja, tinha gravado no próprio coração.

Ao mesmo tempo, a câmera de vídeo incorporada ao aparelho de telefonia celular, novidade naquele mercado, mostrou-se alavanca para a possibilidade de realização do sonho. Como obstáculo, o preço do aparato. Isso o empurrou a aceitar um trato de trabalho incomum, em troca de um valor que financiaria a compra. Esse trabalho também o enredaria na trama de ação e suspense com elementos buscados nas fábricas norte-americanas de filmes para entretenimento, a alimentar salas de cinema, redes abertas e fechadas de televisão, canais de internet, entre outros meios de veiculação dessa mercadoria cultural.

É no mercado que o menino trabalha, sonha, encontra o amor, corre perigos. Aprende. O mercado, esse ambiente labiríntico e pouco acolhedor, propicia sobrevivências precárias, negociações suspeitas, encontros e parcerias fraternas, narrativas de quantas naturezas. Aprendizagens...

Curiosamente, não há escolas, nem material escolar sendo negociados nesse mercado... ao menos não diante das câmeras de captura para o filme.

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Sobre cinema e escolas, algumas considerações

Já foi dito: com a popularização da tecnologia digital, a produção de fotografias e a produção de narrativas fílmicas deixaram de ser privilégios dos grandes estúdios, dos quais participa um grupo seleto de iniciados, detentores dos conhecimentos alquímicos sobre processos de captura e fixação da imagem, e senhores de equipamentos caros. Do mesmo modo, os ambientes de veiculação das imagens fixas e em movimento extrapolaram as mídias impressas e as tradicionais salas de cinema, agregando, a essas, opções de suportes com múltiplas possibilidades.

Apresentam-se, assim, novas questões relativas à natureza e às categorias do que se produza atualmente, sobretudo em relação às narrativas com imagem em movimento. Por exemplo: o que define a especificidade da narrativa cinematográfica, hoje?

Em 2006, um ano depois da data diegética da história contada pelo filme 7cajas, o diretor sul-africano AryaKaganof anunciou aquele que foi considerado o primeiro filme de longa metragem totalmente realizado com câmeras de telefones celulares. (o sonho da personagem Victor, do filme paraguaio, ficou demonstrado, era exequível!). Trata-se do filme SMS Sugar Man, que, tendo sido realizado com um orçamento de US$ 160 mil, naquele ano concorreu no Festival Olhares, em Portugal, um evento totalmente voltado para filmes feitos por meio das lentes dos telefones celulares (PORTAL TERRA, 2006).

Ao tratar de sua escolha em termos de equipamento e tecnologia, Kaganofalega que o cinema convencional (feito em película, nos grandes estúdios, envolvendo grandes produções) é uma mídia com orçamentos muito caros, o que dificulta o acesso da maior parte dos cineastas de seu país. Ainda segundo ele, o perfil dessa mídia não se mostra apropriado para representar as questões e os olhares dos segmentos mais pobres da população, em especial a população negra. Ele destaca, então, a necessidade de se buscarem modelos de cinema com orçamentos mais acessíveis para realizadores e, consequentemente, para o público (REUTERS, 2006).

Nos procedimentos para a execução técnica do filme, as imagens capturadas foram ampliadas para 35mm, bitola padrão dos filmes de longa-metragem. No resultado final, o filme de Kaganof atende a alguns itens arbitrados para o formato convencional de filme: duração, bitola, modo de distribuição e exibição. E caracteriza-se por ser totalmente digital em todos os processos de sua realização e veiculação. Ou seja: não há quaisquer registros em película, mas em arquivos digitais.

Os recursos disponibilizados nos aparatos móveis, atualmente, permitem a veiculação de filmes, narrativas em diversos formatos, nas pequenas telas, em quaisquer lugares onde estejam seus usuários, e sem a necessidade de transcrição dos arquivos para outros formatos. Resulta que as relações com as narrativas fílmicas, audiovisuais, se dão muito além das salas de cinema (embora também nelas), em espaços determinados pelos sujeitos, à sua escolha e decisão.

Já não constituem novidade as iniciativas na direção da produção e veiculação de filmes a partir dos aparatos móveis. Do mesmo modo, multiplicam-se os eventos com foco voltado para as produções dessa natureza, ampliando as fronteiras do que se entenda por cinema, ou do que se tenha aprendido da arte de contar histórias com imagens animadas e sonorizadas, pouco mais de um século desde a primeira projeção pública.

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A propósito, em 2008, foi realizada em Paris a quarta edição do Festival PocketFilms, com a participação de filmes brasileiros em sua programação (EUGÊNIO & LEMOS, 2007). Nessa ocasião, os chamados filmes de tecnologia de bolso ganharam abrigo na Cidade Luz, cenário onde surgiu o cinematógrafo, no século XIX, e também onde o mágico George Méliès transformou esse invento, uma engenhoca à qual não se atribuía futuros mais promissores, sobretudo do ponto de vista comercial, num dos principais esteios da indústria do entretenimento do século XX. Em suas mãos de prestidigitador, o cinematógrafo tornou-se fábrica de narrativas fantásticas, ferramenta de escritura da linguagem cinematográfica. Nesse sentido, vale lembrar, por exemplo, que o espírito inventivo de Méliès o levou a elaborar pequenas obras fílmicas com fotogramas coloridos à mão já no século XIX, quando ainda não se dominava a tecnologia necessária para a captura e fixação da cor das imagens. E mais: com truques que hoje nos parecem ingênuos, o mágico produziu efeitos, experimentando e potencializando ao máximo as possibilidades de um equipamento que lhe oferecia muito poucos recursos.

O que não produziria, Méliès, caso tivesse em mãos os equipamentos digitais disponíveis atualmente no mercado, com novidades a cada novo lançamento? São equipamentos que disputam espaço para serem adquiridos por consumidores sempre ávidos por novidades, mas nem sempre curiosos, inquietos o bastante para brincar com suas possibilidades, e arriscar-se a articular suas próprias histórias... (O inverso também pode ser proposto. Por exemplo, vale imaginar o que fariam os diretores de cinema e vídeomakersatuais se tivessem à mão apenas os recursos de que dispunha Méliès na passagem do século XIX para o XX).

Que projetos poderia propor Méliès nas escolas, nos quadros com que elas se apresentam em relação à disponibilização de aparatos técnicos e tecnológicos? Uma breve visita a algumas escolas das redes públicas de ensino permite constatar alguns denominadores comuns: destinados às atividades pedagógicas eventualmente existem laboratórios de informática com equipamentos subutilizados, com programas quase sempre desatualizados e funcionando precariamente; destinados à área administrativa encontram-se os equipamentos atualizados, para assegurar o funcionamento da instituição; estudantes e professores são usuários dos aparatos móveis, que portam consigo toda sorte de aparelhos com os quais recebem e enviam mensagens, fotos, vídeos, registram e contam histórias de seus quotidianos. Contudo, por que não se apropriam dessas atividades, de modo mais efetivo, para os processos institucionalizados de ensinar e aprender?

O ingresso do cinema, em seu formato mais clássico, na escola, representa alguns problemas que se iniciam no fato de que, por regra, o tempo de duração de um filme é sempre maior do que o tempo de duração de uma aula. Poucas vezes se pensou, por exemplo, na organização de cineclubes dentro das programações escolares. E quando se abriram espaços análogos aos cineclubes, foi principalmente para veicular títulos ilustrativos de conteúdos curriculares específicos, disciplinares, empobrecendo as relações possíveis com suas narrativas.

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Quando as narrativas audiovisuais multiplicaram-se, geradas pelos aparatos tecnológicos portáteis, veiculadas a partir plataformas digitais de relacionamentos sociais, acessadas de todos os lugares, os pequenos aparelhos portados pelos estudantes passaram a constituir fontes de ruído perturbador nas salas de aula, a ponto de serem proibidos, à força da lei, nesses ambientes. O que não impede, contudo, sua presença clandestina. Portá-los durante as aulas pode até se transformar numa aventura mais instigante, pelo desafio que representa.

Professores, que a muito custo acompanham as novidades do mercado no tocante aos recursos disponibilizados a cada passo, às ferramentas para produção de imagens e narrativas, e aos comportamentos modificados a partir delas, intimidam-se com a vertigem do cenário que se coloca à sua frente, e recuam, preferindo operar com as estratégias em relação às quais se sintam seguros. Sentir-se seguro, contudo, não garante que os processos de ensinar e aprender deflagrados sejam significativos, e estabeleçam relações de comunicação com os estudantes de modo mais profícuo.

Talvez seja tempo de se estabelecerem relações colaborativas de aprendizagens escolares, dialogantes com as demais aprendizagens em curso no quotidiano à revelia das estruturas curriculares vigentes, em projetos que envolvam estudantes e professores nas diferentes etapas de planejamento, preparação, execução, avaliação.

Se, de um lado, os estudantes apresentam-se mais familiarizados com os aparatos tecnológicos e suas ferramentas, e de outro lado os professores têm maturidade para provocar questões diversas para serem desenvolvidas a partir de seus usos, um e outro podem tomar parte desse processo, contribuindo com o que saibam, aprendendo o que ainda não sabem (o que sempre é mais do que o que sabem...), produzindo outras possibilidades de aprendizagem.

Desse modo, é possível pensar em modos de se relacionar com os aparelhos produtores de imagens técnicas um pouco além da condição de funcionários dos aparelhos, nos termos propostos por VilémFlusser (2008), vislumbrando possibilidades de jogar contra o aparelho, em exercícios poéticos, críticos, de construção de conhecimento. Com vistas ao que o mesmo autor apontou como o exercício da conexão em rede, o que não significa apenas cadastrar-se em plataformas digitais de relacionamentos sociais, mas aprender, além disso, a produzir reflexão em comunidade. Para tanto, as narrativas audiovisuais constituem espaço profícuo de aprendizagens possíveis, na articulação de pensamento imagético e conceitual, sensível, afetivo, capaz de redimensionar o que pensamos ser o mundo no qual nos encontramos, e o nosso estar nele.

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Referências

7Cajas. Direção: Juan Carlos Maneglia e Tana Schémbori. Gênero: Ação. Nacionalidade: Paraguai. Duração: 105 min. Ano: 2012.

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. volume 1. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

EUGÊNIO, Fernanda & LEMOS, João Francisco de. Midia locativa e uso criativo em telefones celulares. In FREIRE FILHO, João & HERSCHMANN, Micael (Orgs.). Novos rumos da cultura da mídia: indústrias, produtos, audiências. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007.

FACHEL, Rosângela. 7cajas. Disponível em paraguaiteete.wordpress.com . Acesso em 30 jan. 2015.

FLUSSER, Vilém. O universo das imagens técnicas. São Paulo: Annablume, 2008.

PORTAL TERRA. Portugal faz festival de filmes feitos com celular. 2006. Disponível em tecnologia.terra.com.br . Acesso em 12mai. 2015.

REUTERS. Sul-africano faz primeiro longa-metragem em celular. 2006. Disponível em tecnologia.terra.com.br . Acesso em 12mai. 2015.

Alice Fátima Martins - Doutora em Sociologia (UnB). Pós-Doutorado no Programa Avançado de Cultura Contemporânea Estudos Culturais (PACC/UFRJ). Professora na Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (FAV/UFG), no Curso de Licenciatura em Artes Visuais, e no PPG em Arte e Cultura Visual. Editora da Revista Visualidades (2014-2016). Autora dos livros Catadores de Sucata da Indústria Cultural (Editora UFG, 2013) e Saudades do Futuro: a ficção científica no cinema e o imaginário social sobre o devir (Editora UnB, 2013). Responde pelo projeto de pesquisa “Outros fazedores de cinema”, financiado pela FAPEG e pelo CNPq. Bolsista PQ/CNPq.