Da Universidade à Escola: Memórias e Experiências Estéticas de um Arte-Educador

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Da Universidade à Escola: Memórias e Experiências Estéticas de um Arte-Educador

Cláudio Tarouco de Azevedo

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O objetivo central deste texto é retomar algumas memórias e experiências estéticas do autor para analisar as conexões destas com a sua formação como arte-educador. Este relato de experiência compreende, portanto, um recorte histórico entre a infância e o curso superior em Artes Visuais – Licenciatura, concluído no ano de 2005 na Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Porém, a narrativa será desenvolvida a partir de uma cronologia invertida, ou seja, partindo do ensino superior em direção aos acontecimentos dos tempos de criança. Assim, pretende-se desvelar como as memórias e as experiências estéticas podem contribuir para a formação do/da arte-educador/a. Para tratar destes temas serão utilizados referenciais teóricos de autores como João Francisco Duarte Jr. e Iván Izquierdo.

Memória universitária…

[...] a percepção depende das coisas
e de nosso corpo, depende do mundo
e de nossos sentidos, depende do
exterior e do interior [...]
Marilena Chauí

A partir dos primeiros contatos, pesquisas, experiências e reflexões vivenciadas após o ingresso no curso de Artes Visuais – Licenciatura da FURG, no ano de 2001, percebi algumas alterações no meu modo de olhar. Quando comecei a fazer ligações cognitivas entre minha visão e a vista através das janelas dos ônibus que me levavam até a Universidade, tive as provas de que mais uma etapa de aprendizado se iniciara. Nesse processo aflorava um saber sensível transversalizado por percepções e novas experiências. Não eram apenas viagens de ônibus, pois sempre utilizei transporte público, era a descoberta de um olhar diferenciado capaz de estar sempre pronto a refletir e questionar sobre o mundo por meio de uma perspectiva sensível.

Essas conexões aprofundaram o sentido das vivências e ampliaram os significados em relação às experiências vividas. Experiências nas quais “retornamos àquela percepção anterior à percepção condicionada pela discursividade da linguagem; retornamos a uma primitiva e mágica visão do mundo” (DUARTE Jr., 1988, p. 91). Esse retorno está inscrito em algo do subjetivo, ligado à capacidade de explorar sentimentos e sensações. E é por meio dele, nessas lembranças, que procurarei descrever algumas vivências experienciadas em minha trajetória.

Figura 1 – Sem título – Fotografia, 2005. Autor: Cláudio Tarouco de Azevedo

Figura 2 – MONDRIAN, P. – Composição com grande plano azul, fundo vermelho, amarelo e cinza – Tela, 1921

Geralmente quando embarcava no ônibus ele já estava cheio de pessoas e dificilmente ia sentado, o que tinha seu privilégio, pois só é possível uma visão diferenciada e relacionada às imagens fotográficas a partir do distanciamento existente entre aquele que está de pé no ônibus e a janela. O sol pela manhã era muitas vezes alaranjado, uma poesia luminosa. As formas das janelas eram como se fossem quadros, melhor, molduras. Quando o ônibus parava no ponto para o embarque ou desembarque de passageiros, as imagens ficavam enquadradas através das janelas (fig. 1). Se não fosse pela leve brisa que movimentava as folhas das árvores ou pelo passar de um cavalo, vaca ou passarinho, poder-se-ia dizer que aquilo era uma bela fotografia da paisagem sulina.

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O ônibus era como um grande laboratório e as minhas investigações não terminaram nas relações cognitivas estabelecidas com a fotografia. Quando ele entrava em movimento, passava a ser narrada uma história também em movimento, assim como numa tela de TV, em uma projeção no cinema ou em canais de vídeo na internet. A cena ganhava um ritmo audiovisual. As sonoridades emergiam das conversas dos passageiros e dos ruídos internos e externos ao veículo. Andar de ônibus, portanto, é como assistir um filme constante da vida cotidiana através de um travelling sem fim, o que enuncia as imagens de uma cultura visual, de uma cultura local. Posteriormente, passei a fazer correlações dessas experiências visuais com a pintura, além da fotografia, do cinema e do vídeo. Lembrei, então, de alguns trabalhos do artista holandês Piet Mondrian . Suas pinturas compostas por linhas retas e cores primárias (fig. 2), dentro de um equilíbrio e uma composição simétrica, pareciam criar uma objetividade artística que a meu ver não convencia. De fato, o artista trabalhava com uma arte hermética e carregada de simbolismos. Era adepto da teosofia : theos, que significa “um deus, um dos seres divinos” (e não Deus como é comumente interpretado) e sophia, sabedoria. Mondrian foi membro da Sociedade Teosófica (ST), a qual teve como uma das principais fundadoras a escritora Helena Petrovna Blavatsky . Ela escreveu vários livros sobre teosofia (sabedoria divina), os quais são utilizados até hoje pelos afiliados da ST. Mondrian foi, por muito tempo, membro dessa sociedade, e a linha mestra de seu trabalho constituiu um esforço para expressar certos conceitos teosóficos fundamentais relativos à polaridade do espírito e da matéria.

Na obra do artista estão plasmadas as implicações com a sua perspectiva teosófica. Da figuração ao abstrato, Mondrian buscou nas linhas retas e cores primárias a concentração da matéria em busca da sabedoria divina e espiritual. Na composição da figura 2, percebo uma relação direta com a figura 1. As retas compostas de cor preta lembram as molduras criadas pelas janelas dos ônibus que eram da mesma cor e semelhantes formatos. A partir desse contato mais profundo com as artes e do exercício da percepção fui ampliando meu repertório de experiências estéticas do olhar.

Segundo Duarte Jr. a arte pode ser um caminho para cultivar a educação “[...] na medida em que ela é capaz de configurar uma dimensão do conhecimento passível de estabelecer pontes entre esse saber sensível [...] proporcionado por nossos órgãos dos sentidos e a abstrativa capacidade simbólica do ser humano.” (2004, p. 183). Esse saber sensível engendrava-se com mais intensidade conforme meu envolvimento com as artes e as inter-relações com o meio ambiente aumentavam.

Figura 3 – Jornal O Riograndense (1845) – Fotografia digital, 2005. Autor: Cláudio Tarouco de Azevedo

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Em 2003, tive a possibilidade de fazer algumas pesquisas em jornais antigos do arquivo da Biblioteca Rio-Grandense. O objetivo era encontrar os primeiros indícios de impressão de imagens nos jornais de época publicados na cidade do Rio Grande/RS. Encontrei clichês referentes à ilustração de artigos que informavam sobre embarques marítimos e escravos fugidos (fig. 3). Como podemos visualizar na figura a seguir, os clichês representam graficamente, através de símbolos, os temas a serem tratados nos artigos. Tais figuras foram encontradas nas páginas de anúncios no jornal O Riograndense, datado de 22 de novembro de 1845, um dos jornais mais antigos que se tem preservado no acervo da Biblioteca Rio-Grandense.

Mas o fato mais curioso encontrado ao longo dessa breve pesquisa foi a maneira como era formulado o artigo que divulgava a fuga de escravos negros:

No dia 12 do corrente, fugio um pardo de nome Amaro, edade 25 annos, escravo de Antonio José Ferreira Lima: levava camiza branca, calsa de brim pardo, chapeo branco, á campeira, estatura ordinaria, cabellos pouco crespos, é carneador, e inculca-se liberto. Quem o aprehender, e entregar na rua da Praia, em casa de José Borges Ribeiro da Costa, será gratificado (O Riograndense, 22 nov. 1845).

O artigo de jornal relembra momentos de uma história recente sobre a escravidão humana. Ainda se presencia fatos discriminatórios de humanos contra humanos e não humanos que precisam ser problematizados, investigados, debatidos e solucionados. O paradigma ético-estético de que nos comenta Félix Guattari (1998) é cada vez mais emergente para promover transformações críticas e sensíveis. Nesse sentido, lembro-me de Albert Schweitzer (1962) e sua “ética de reverência pela vida”, veneratio vitae . Essa perspectiva ética não prevê qualquer tipo de taxonomia das formas de existência (gêneros, natureza, etc.), ao contrário, valoriza e dá importância, sobretudo, ao cuidado e a reverência à vida.

O jornal, como um artefato midiático, contém informações históricas e visuais que indicam a presença da escravidão como algo instituído no Brasil daquele período. Neste texto não será feito um debate mais aprofundado sobre o tema da ética . Porém, serão analisadas algumas relações entre as imagens mentais e visuais com a consciência de que a cultura visual também está conectada com os interesses socialmente instituídos e com o que Guattari (1998) chamou de Capitalismo Mundial Integrado, o CMI. Assim, através da mídia, da arte e da cultura visual de um período identificam-se elementos antropológicos que indicam fatos e hipóteses de como o humano se relaciona com o outro, seja este da mesma ou de outra espécie. Também é importante lembrar que, na atualidade, com a globalização intensificam-se o que Stuart Hall (2011) chama de fluxos culturais. Isso amplifica os intercâmbios de informações, não só visuais, entre a maioria das pessoas e culturas com acesso às redes sociais, meios de comunicações variados e a internet.

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Portanto, ao retomar a análise do jornal, verifica-se que na época a imprensa da cidade do Rio Grande não dispunha de equipamentos de impressão de imagens para ilustração das notícias jornalísticas. Restava então a descrição objetiva dos sujeitos, como foi observado no caso exposto na citação referente ao Riograndense. O que se percebe é: nem fotografia nem retrato falado (desenho ou pintura), os recursos visuais se restringiam às pequenas figuras simbólicas (navio, escravo, etc.) ao início de cada coluna dos jornais.

Atualmente, além do retrato falado e da fotografia, ainda são utilizados os recursos de descrição objetiva em jornais impressos, e na internet, para auxiliar na composição das imagens mentais, do leitor, referente ao bandido foragido da polícia ou algum sujeito desaparecido. Esse método é de grande contribuição na busca por encontrar tais pessoas, pois a imaginação e as associações mentais trabalham em engrenagens mnemônicas. A mente opera por combinações cognitivas/afetivas e é composta por imagens mentais e visuais que constituem o nosso repertório. A professora Cleusa Peralta Castell (2012) menciona que a imaginação pode ser considerada como a capacidade que temos de assimilar imagens da nossa cultura. Assim, quanto mais contato com diferentes culturas maior o nosso repertório imagético capaz de potencializar a nossa imaginação.

Nunca sem esquecer que estas relações cognitivas/afetivas podem ser acionadas através dos outros sentidos que não apenas o da visão. Porém, no nosso exemplo, em específico, saber do tipo e da cor das roupas e dos apetrechos que o procurado portava no último momento em que foi visto ainda é, e sempre será, significativo na composição de uma imagem mental que auxilie na aproximação da imagem visual da pessoa a ser encontrada.

A cultura visual se ampliou com os adventos tecnológicos e tem-se a disposição muitas revistas e jornais impressos em materiais sofisticados e com imagens de alta resolução, além dos inúmeros recursos digitais e dispositivos de produção e disseminação audiovisuais. No entanto, em 1845 toda aquela descrição servia para acessar a memória dos leitores na tentativa de identificar o sujeito fugido. A descrição literária pode “alimentar” o nosso imaginário, tanto, através da leitura individual, como da escuta. Por exemplo, através do som, o rádio nos provoca a imaginar e para isso recorremos aos arquivos da memória, que nos possibilitam um leque de informações e sensações a serem acessadas. O rádio usa o caminho da percepção auditiva, o que, de certa forma, amplia seu público em comparação ao jornal impresso/online. Adultos ou crianças, que ainda não sabem ler e escrever, mas já decodificam os significados das palavras, podem desfrutar desse veículo de comunicação.

Um dos grandes sucessos do rádio, que estimulava profundamente os ouvintes, era, em décadas passadas, as radionovelas. Atualmente, são os comerciais do rádio que, no intuito de aumentar as vendas dos seus patrocinadores, bem como a sua audiência, utilizam mecanismos de sedução através de interjeições que remetem a desejos de saciar a fome, de aproximar celebridades, sugerir fragrâncias etc., a fim de atingir seus objetivos do estímulo à imaginação. Um exemplo prático pode ser identificado na campanha promovida, há alguns anos, pela Rádio Atlântida de Porto Alegre, juntamente com o Grupo de Profissionais de Rádio, quando veiculou, entre outros, o seguinte comercial durante o primeiro semestre do ano de 2005:

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A lasanha sai fumegando do forno, o queijo gratinado, o molho denso e borbulhante, ela pega a faca, corta um pedaço com todo o cuidado para não desmontar a lasanha. O queijo estica, a fatia é colocada no prato, ela sente o aroma, pega o garfo e coloca delicadamente o primeiro pedaço na boca. “Ah! Tá muito quente, tá queimando minha boca”. Fique ligado, anuncie no rádio. Uma iniciativa: Rede Atlântida e grupo dos Profissionais de Rádio.

Portanto, em relação às diferentes formas de percepção,

[...] as pessoas geralmente estabelecem uma associação imediata entre memória e visão. E os outros sentidos? Se estivermos de olhos vendados não seríamos capazes de saber que chove, só pelo barulho da chuva, ou adivinhar um abacaxi pelo tato? (FIALHO, 2001, p. 78)

Isso é resultado da fusão de um arquivo de imagens e informações pertencentes à nossa bagagem de experiências estéticas e à nossa memória mais remota – que Izquierdo (2004, p. 19) descreve como “de longa duração”somada com outras mais recentes, denominadas “de curta duração e de trabalho”. A construção desses arquivos de imagens e informações em nossa mente gera os arquivos mnemônicos. Estes aumentam conforme nossa experiência acerca do meio social e ambiental, que se dá através de nossos canais de percepção. Esse processo gera o que pode ser chamado de aquisição de repertório mental. Adquirimos essas informações após tais percepções passarem por vários julgamentos de acordo com nossa formação individual e social.

Para construção de nosso julgamento perceptivo é fundamental que se tenha uma educação não só de base familiar e escolar, como uma desenvolvida capacidade de autogestão e constante repensar de nossas ações em relação a si e ao meio social e ambiental. Para reforçar o que já foi mencionado, Izquierdo descreve a memória como “a aquisição, conservação e evocação de informações. A aquisição se denomina também aprendizado”. Dessa forma vislumbramos a importância dos agentes propagadores de informação e profissionais da Educação no processo de aquisição desse repertório de imagens mentais e visuais. Guattari corrobora:

Invocando paradigmas éticos, gostaria principalmente de sublinhar a responsabilidade e o necessário “engajamento” não somente dos operadores “psi”, mas de todos aqueles que estão em posição de intervir nas instâncias psíquicas individuais e coletivas (através da educação, saúde, cultura, esporte, arte, mídia, moda etc.). É eticamente insustentável de se abrigar, como tão freqüentemente fazem tais operadores, atrás de uma neutralidade transferencial pretensamente fundada sobre um controle do inconsciente e um corpus científico (1998, p. 21).

Assim, torna-se imprescindível que os profissionais envolvidos com arte e educação, aos quais se destina mais especificamente este escrito, tenham consciência ética de sua parcela de responsabilidade para com a sociedade em geral. O professor de Artes Visuais, ao ter em vista seu conhecimento adquirido em relação ao desenvolvimento gráfico humano e outros temas da arte relacionados à valores, pode incidir sobre a fronteira invisível que separa o sujeito instituído daquele liberto, de alguma maneira, dos paradigmas socioculturais capitalistas, pois, como afirma o psicólogo Lev Vygotsky, “[...] a arte não é um complemento da vida, mas o resultado daquilo que excede a vida no ser humano” (2001, p. 233). Conscientes de que a arte não é apenas algo que ilustra a vida – ela está presente no exercício artístico e nas experiências estéticas dos indivíduos –, será analisada por meio da memória de fatos ocorridos na infância a importância desse processo que envolve arte, educação, memória e experiências estéticas.

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Memórias de algumas experiências estéticas da infância...

Viver é andar, é descobrir, é conhecer.
no meu andarilhar de pintor, fixo a imagem
que se me apresenta no agora e retorno
às coisas que adormeceram na memória, que
devem estar escondidas no pátio da infância.
Iberê Camargo

Convido o leitor a fazer um passeio comigo aos meus tempos de infância para identificar exemplos do repertório de experiências estéticas que contribuíram na minha formação. “A noção de repertório, que construímos a partir das formas que inventamos e colecionamos, quando crianças, para designar elementos naturais, coisas, objetos, pessoas e sentimentos, é fundamental para o pleno desenvolvimento da nossa capacidade de imaginar.” (CASTELL, 2012, p. 47). Portanto, essas experiências envolvem uma relação com fluxos internos e externos.

O prazer estético reside na vivência da harmonia descoberta entre as formas dinâmicas dos sentimentos e as formas da arte (ou dos objetos estéticos). Na experiência estética os meus sentimentos descobrem-se nas formas que lhes são dadas, como eu me descubro no espelho. Através dos sentimentos identificamo-nos com o objeto estético, e com ele nos tornamos um (DUARTE Jr., 1988, p. 93).

Dessa forma, serão relatados a seguir uma série de fatos, ocorridos em minha infância, que têm fundamental relevância para exemplificar o processo de reconhecimento da criança, suas percepções e seus sentimentos.

Na infância passei, assim como a maioria das crianças, pelo exercício prático de reconhecimento espacial, na busca, mesmo que involuntária, de aquisição de bagagem cinestésica, mental e imagética. Essa busca era intensa, principalmente no que tange às experiências com texturas e movimento corporal. Essa é uma fase de fluente exploração das percepções através dos nossos sentidos. Já vi muitas crianças fazerem isso, mas penso ser relevante a seguinte descrição do fato: no caminho da escola para casa percebia as grades das casas e as paredes rugosas, assim meu toque se tornava inevitável. Ao caminhar estendia a mão e deixava fluir a sensação e a descoberta das variadas texturas presentes nas estruturas das casas pelas quais passava.

Tais experiências exemplificam alguns dos contatos estéticos que praticamos, principalmente na infância, quando procuramos os primeiros reconhecimentos dos espaços através de nossas percepções. Como sublinha Vygotsky, “quando observamos, ainda que seja da forma mais superficial, uma reação estética, percebemos que seu objetivo final não é a repetição de qualquer reação real, mas a superação e o triunfo sobre ela” (2001, p. 232). É importante salientar, portanto, que tais ações não são somente entretenimento. Elas constituem um ato de reconhecimento sensorial, de descoberta dos sentidos e das sensações que podem resultar daí em um crescimento cognitivo/afetivo, que por sua vez poderá suscitar uma busca incessante por novas experiências estéticas.

Essas experiências encontram na arte uma grande aliada para o processo de educação e desenvolvimento do sujeito. Conforme Duarte Jr., “uma ponte que nos leva a conhecer e a expressar os sentimentos é [...] a arte, e a forma de nossa consciência apreendê-los é através da experiência estética” (1988, p. 16). A arte contribui no desenvolvimento e no acréscimo de complexidade ao pensamento, ao corpo e a experiência estética que permite ao sujeito uma relação com o mundo cada vez mais subjetiva, engendrando um pensamento criativo. Segundo Vygotsky, “a regra a ser seguida [...] não deve ser o embelezamento da vida, mas a reelaboração criativa da realidade, isto é, uma elaboração das coisas e do próprio movimento das coisas que iluminará e elevará as vivências cotidianas ao nível das criativas” (2001, p. 232). Essas vivências cotidianas passam, principalmente na infância, pelo desenvolvimento do pensamento cinestésico, que resulta no reconhecimento da expressividade corporal do sujeito no processo de exploração dos sentidos. Como afirma Fialho,

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Ao nascer, a criança é dotada praticamente de todos os sentidos e está biologicamente apta para experimentar a maioria das sensações. Os órgãos dos sentidos transmitem ao homem informações do mundo exterior, exteroceptores, e do seu próprio corpo, proprioceptores (2001, p. 41).

Lembro-me da parede do corredor de minha casa quando eu tinha aproximadamente cinco anos. Sempre que passava por ela a mão deslizava para sentir a textura e ouvir o som gerado do atrito da pele e das unhas com a superfície levemente rugosa. Recordo, também, das vezes em que carregava alguns instrumentos como lápis e canetas que eram levados contra a parede e marcavam minha passagem naquela superfície clara. Os desenhos criados formavam uma espécie de onda colorida, e era nessa “onda” que, por vezes, era levemente repreendido com frases do tipo: “Não faz isso, guri!”. Era um processo derivado do pensamento cinestésico, em que o movimento e o reconhecimento do suporte era o foco do interesse. Ali estava a descoberta do fazer artístico, mas as memórias não acabam por aí.

Figura 4 – Sem título – Fotografia digital, 2005. Autor: Cláudio Tarouco de Azevedo

Ao consultar as lembranças de minha mãe, descobri que as lajotas quebradas da varanda de nossa casa (fig. 4) eram um resquício vivo das experiências com martelos. Sei que aquelas marcas são minhas, minha infância, porém fiquei a questionar em decorrência de que elas foram feitas. Lembro que pregava alguns pregos em pedaços de madeira para criar objetos, isso em torno de oito e nove anos de idade. Tenho certeza de que a intenção não era apenas a de produzir tais objetos, sabia que não era só isso, então minha mãe relatou que meu desejo era, também, de bater nos brinquedos para descobrir o que havia por dentro, numa atitude investigativa. Era um ato de desconstrução, de reconhecimento interno. Na ação de quebrar os brinquedos para estudá-los por dentro identifico uma possível relação com meu processo de autoconhecimento. Ao desconstruir o brinquedo e conhecer seu interior, provavelmente estabelecia um pensamento de elucubrações que permitiam uma análise de forma simbólica e subjetiva em relação aos objetos estudados, o que proporcionava questionamentos de relação espacial interna e externa ao corpo. A aprendizagem da vida é realizada por essas duas vias, a interna e a externa, e, segundo Morin, “[...] a via interna passa pelo exame de si, a auto-análise, a autocrítica. O auto-exame deve ser ensinado desde o primário e durante todo ele [...]. A via externa seria a introdução ao conhecimento das mídias” (2000, p. 77).

Assim, outra experiência com a construção de objetos está presente em minha memória. Foi na época em que assistia à série norte-americana “McGyver”, transmitida pela Rede Globo de Televisão a partir de 1986, conhecida no Brasil por “Profissão: Perigo” . O protagonista da história, McGyver, era um ex-agente das Forças Especiais norte-americanas, cheio de invenções criativas e soluções inteligentes para escapar de situações de perigo. Em uma de suas fantásticas operações ele descobriu um cabo que ligava um poste a outro que estava distante do local perigoso, então usou sua jaqueta para pendurar-se segurando duas extremidades e deslizou pelo cabo para chegar ao outro lado incólume.

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Logo após esse episódio da série, peguei meu martelo e alguns pedaços de madeira e tive a ideia de produzir algo semelhante, em pequena escala. Sentei-me na varanda da minha casa e preguei dois pedaços de madeira fina perpendicularmente nas extremidades de um sarrafo mais forte, o que formou uma espécie de “U”. A parte mais forte serviu de base e as outras duas, uma menor que a outra, receberam dois preguinhos cada, um ao lado do outro, em suas extremidades. Um atilho de borracha foi utilizado para interligar as duas madeiras, o que gerou, assim, um trilho. Mas ao invés de fazer algo correr dependurado no trilho, como o personagem da série, preferi fazer uma bolinha de gude correr por cima da borracha. Então a brincadeira seria apenas observar a bolinha deslizar pelo trilho criado pelo esquema.

Isso era um pouco sem graça. Foi então que pensei em dar um pouco mais de funcionalidade àquela bolinha de gude. Peguei uma lata com água e um bonequinho pequeno de plástico, coloquei a lata com água na extremidade mais baixa da estrutura de madeira e o boneco equilibrado em cima dos dois preguinhos dessa mesma extremidade. Larguei, então, a bolinha da extremidade mais alta. Seu deslocamento sobre o trilho atingia meu objetivo, bolinha e homem “ao mar”. Está certo que em pouco tempo a brincadeira perdeu a graça, mas valeu a experiência e o desafio de tornar algo monótono um pouco mais emocionante. Nessa época, estava com aproximadamente dez, onze anos de idade, as percepções afloravam cada vez mais e o processo criativo seguia desenvolvendo-se. A memória trabalhava com a imaginação e em meio a esse processo de criação era promovida a aquisição de um saber sensível.

Castell enfatiza que “as brincadeiras, as investigações espontâneas e o contato direto, imediato, com a natureza e o cotidiano, a nosso ver, irão compor a matéria-prima da nossa bagagem artística, as nossas matrizes do imaginário, por excelência” (2012, p. 47). Assim, verifica-se a importância das experiências estéticas na composição desses saberes sensíveis construídos por meio de dimensões cinestésicas e imaginativas.

Algo que também fez parte da minha infância foi a série de brinquedos Lego . Junto com as pequenas peças de encaixe fácil, vinham esquemas preestabelecidos para confecção de carros, casas e outros elementos a que se destinavam a compor as peças em conjunto. De posse de duas ou três caixas diferentes de legos, com muitas peças coloridas, montei umas duas vezes o esquema proposto pelas caixas e logo em seguida passei a criar formas, objetos e construções que resultavam das experiências criativas com os diferentes formatos e cores dos objetos que vêm no brinquedo. Meus projetos se desvincularam dos propostos pelos esquemas desenvolvidos pelos fabricantes; passaram a ser mutáveis. Meu interesse não era manter um brinquedo pré-esquematizado, mas sim, de transformar a realidade funcional e estética daquelas estruturas coloridas e de formatos variados.

Guardei na lembrança a importância dessas experiências e dos estudos perceptivos que ajudaram a desenvolver minha criatividade, senso crítico e sensível. Digo senso crítico e sensível, porque a partir do julgamento e da escolha das peças qualquer criança e até mesmo um adulto poderá desenvolver um olhar estético – percepção, cor, composição, criatividade, reflexão, sensibilidade – e produzir, assim, opiniões e valores afetivos e de sociabilização.

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Alguns desdobramentos...

Memórias têm também os povos,
as nações e as cidades;
o conjunto dessas memórias
denomina-se História.
Iván Izquierdo

As experiências relatadas neste escrito estão diretamente relacionadas a essa nossa capacidade de recordar. É a partir da aquisição de memória que podemos fazer a fusão de informações e experiências do passado com escolhas atuais e refletir sobre os processos de educação tanto individual como coletivos; e ainda, sobre nossa posição crítica e sensível como humanos. Nesse sentido, procurei verificar algumas contribuições dessas memórias e experiências estéticas na formação do meu olhar como arte-educador.

A partir de uma perspectiva ético-estética é possível dar-se conta da necessidade constante de promover transformações críticas e sensíveis em nosso cotidiano. Precisamos, então, reconhecer a importância da memória e das experiências estéticas para estimular, em nós mesmos e nos outros, cada vez mais, a posição de sujeitos atuantes e transformadores de nossa história. Quiçá pessoas construtoras de um presente com valores capazes de promoverem memórias futuras motivadoras de um mundo melhor e de uma cultura visual com mais reverência à vida. Essa ideia é reafirmada pelo professor Marcos Reigota, quando diz que “cabe à história, à arte e à memória o exercício da recuperação, do possível tempo dos acontecimentos e as suas conseqüências para a vida de milhares de pessoas e de espécies” (1999, p. 26). Relembrar as experiências estéticas da infância e do período de formação acadêmica pôde ajudar a vislumbrar um pouco sobre a construção de saberes sensíveis.

Assim, é necessário um olhar sensível em sintonia com a razão. O que Michel Maffesoli chamou de razão sensível, a saber, “[...] uma vitalidade que escape às habituais análises racionalistas, que requer que se saiba pôr em ação um pensamento que se reconcilie com a vida: um vitalismo ou uma filosofia da vida.” (1998, p. 191). Mas sabemos da herança da modernidade e da presença forte da razão em uma perspectiva antropocêntrica do mundo.

Chauí afirma que a razão, “além de ser o critério para avaliar os conhecimentos, é também um instrumento crítico para compreendermos as circunstâncias em que vivemos, para mudá-las ou melhorá-las. A razão tem um potencial ativo ou transformador [...]” (2000, p. 86). Segundo o Minidicionário Luft, razão é a “1. Faculdade do espírito com que o homem reflete, compara, conhece, julga; 2. Bom senso; prudência [...]” (1991, p. 198). De acordo com o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, a razão é também, numa definição filosófica, a “faculdade humana da linguagem e do pensamento, voltada para a apreensão cognitiva da realidade, em contraste com a função desempenhada pelos sentidos na captação de percepções imediatas e não refletidas do mundo externo” (2009, p. 1615).

Contudo, nós humanos não somos constituídos apenas de razão, há uma grande parcela de emoções e sentimentos que envolvem nossa existência. Pode haver aí uma razão sensível. Um exemplo disso pode ser identificado acima quando cito o Minidicionário Luft. Recorri a ele para explicar o significado da palavra razão porque o mesmo foi um presente de meu pai, Pedro Farias de Azevedo, falecido em 1997. Lembro-me de quando ele estimulava o uso do dicionário para cuidar do sentido que se deseja dar às palavras. Somente após ter feito tal citação dei-me conta da importância acadêmica de outras fontes bibliográficas. Mesmo assim mantive a referência, pois mais do que a necessidade racional de explicar o sentido da razão, está atualizada aqui a memória de um homem de extrema importância na minha vida. É uma parcela de afetividade, de vitalismo, do sensível que se mescla ao ser “razão” e formula, assim, o híbrido do qual é composta nossa espécie humana.

Após essa trajetória, pode-se, então, refletir sobre a vida como um caminho entre humanos, não humanos, objetos, natureza, no qual a expressão, a arte, a memória e as experiências estéticas constituem uma história individual e coletiva que deve ser sempre repensada para cogitar mais do que respostas. Quiçá caminhos de consciente transformação sensível de nosso cotidiano para o amadurecimento educacional e histórico singular de cada pessoa.

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Referências

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Cláudio Tarouco de Azevedo é Pós-doutorando no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) como bolsista CAPES - Programa Nacional de Pós-Doutorado (CAPES–PNPD). Atua como professor do Mestrado e do curso de graduação em Artes Visuais. É membro do Núcleo Transdisciplinar de Estudos Estéticos (NUTREE/UFPel) e do Laboratório Audiovisual de Pesquisa em Educação Ambiental (LAPEA/FURG).