O Projeto Tarot: História da Arte, Coditiano & Pedagogias Culturais

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O Projeto Tarot: História da Arte, Coditiano & Pedagogias Culturais

Belidson Dias

Leísa Sasso

FIGURA. 1 - Cartas de baralho produzidos pelos estudantes para o projeto “Tarot – Conceito x Imagem”, 2005

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Este capitulo é um dos resultados de fragmentos de uma investigação de mestrado na qual arquivos, memórias e afetos remetem a um projeto educativo denominado “O Projeto Tarot” , da disciplina de História da Arte,explorado na perspectiva da Cultura Visual (Figura 1). Foram selecionados dados visuais, de práticas pedagógicas da professora Leisa Sasso, compreendidas como pedagogias culturais desenvolvidos em uma escola pública do DF. A narrativa textual e visual percorreram memórias da professora e a dos estudantes nos grupos focais e entrevistas. Reconhecimento, afeto e criticidade diante da realidade vivida por eles no contexto da periferia são evidenciados pela visualidade da construção da dissertação como um livro-objeto.

Projeto e Cultura Visual

Em 2005, após cinco anos de exercício de magistério na Secretaria de Educação do Distrito Federal (SEDF), a prof. Leisa Sasso começou a entender a importância de um trabalho diferenciado daquele promovido por seus colegas educadores, ou seja, um conhecimento transmitido oralmente e de forma previsível. A principal consequência dessa abordagem no Ensino da Arte era a alienação dos estudantes em relação à crítica às imagens que os circundam e influenciam o que acaba por gerar indiferença e desinteresse pela arte. Uma vez, em uma sala de aula, os estudantes lhe imploraram: “Por favor, professora! Diga que a Senhora não vai trabalhar a Grécia com a gente!”.

Com efeito, uma mudança de orientação na educação em artes visuais no Ensino Médio no Brasil já se anunciava nos primeiros anos do século XXI. Apesar de amplamente adotado pelos educadores brasileiros, a Metodologia ou Abordagem Triangular e o DBAE não conseguem ser entendidos como pedagogias culturais emancipadoras. Dias afirma que

(...) é curioso observar que a despeito dos seus princípios de contextualização e valorização das vivências do dia-a-dia, após mais de 20 anos de práticas de Abordagem Triangular, que por sinal são atualmente a pedagogia hegemônica no campo, ela ainda se concentra excessivamente em conteúdos curriculares teóricos, indubitavelmente eurocêntricos e norte americanos, formalistas e modernistas, e não atende o suficiente sobre as realidades, os contextos e as subjetividades pelas quais os estudantes veem, visualizam e constroem seus universos. Sem mencionar que tornou-se um termo jargonizado e utilizado indiscriminadamente em qualquer projeto de arte/educação em busca de validade e rigor. (DIAS, 2012)

Mais ainda, Dias complementa que:

Apesar de as histórias da arte/educação serem enquadradas em várias formas, para Stankievick a força motivadora para o desenvolvimento da arte/educação internacionalmente tem sido a necessidade de culturas dominantes manterem ou expandirem seus capitais simbólicos, por vezes, subordinando a agência dos estudantes. Os modos de realizar, pensar e fazer arte/educação desenvolvidos por britânicos, europeus, norte-americanos, desenvolvidos com a ascensão do capitalismo e o surgimento de uma classe média, têm sido divulgados através do imperialismo cultural e globalização econômica. Embora os povos de todo o mundo tenham tradições artísticas, a evolução das nações capitalistas têm influenciado a arte/educação em todos os lugares, logo quem segue esta lógica faz parte de um projeto colonialista. (DIAS, no Prelo)

Portanto, se, por um lado, é preciso reconhecer que seu currículo conferiu à arte educação sua credibilidade disciplinar uma vez que “essa corrente pôs a arte-educação dentro do currículo” (HERNÁNDEZ, 2011, p. 37), por outro, é forçoso reconhecer que não temos, na literatura corrente, dados e elementos fiáveis que evidenciem que essa metodologia, aplicada largamente nas escolas, provoque uma pedagogia de transformação dos estudantes, tornando-os sujeitos críticos em relação aos aspectos políticos e culturais subjacentes às imagens em contextos artístico se midiáticos. Instrumento antigo de manipulação e dominação, as imagens portam significados, ressignificados em outros contextos. Os estudos de cultura visual emergem como arena em que se defende a construção da crítica e de práticas emancipadoras (MARTINS, A.,2012), e necessariamente, a prática e a implementação do DBAE e as metodologias surgidas a partir dele não constituem este espaço pedagógico dialógico.

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E isso não se trata simplesmente de uma questão de retórica. Sasso também observou empiricamente, ao longo dos últimos sete anos, como gestora de uma das maiores escolas de Ensino Médio na periferia do DF, e a partir da avaliação da produção dos estudantes, que é raro, nas práticas educativas em educação em artes visuais, o docente relacionar o conteúdo curricular com os saberes culturais que compõem o ideário dos estudantes e da comunidade em que se inserem. Tampouco os professores trabalham os aspectos críticos e irônicos da arte contemporânea. Privilegiam, sobretudo, uma prática pouco envolvente e motivadora para o estudante: a “leitura” da obra de arte, a sua contextualização histórica e a sua “releitura” em uma prática artística desenvolvida em sala de aula.

Nessa análise, decorre dessa prática a falta de consciência dos estudantes em relação aos problemas políticos e sociais e a dificuldade de fomento da avaliação crítica desses aspectos importantes da sociedade, por meio da arte.  Sendo assim, a “releitura” de obras artísticas canonizadas, largamente aplicadas nas aulas, torna-se uma prática anódina, pois é totalmente dissociada da realidade e das mudanças tecnológicas e culturais.

Outro problema deste ensino hegemônico das artes visuais se relaciona ao emprego de um currículo único, extenso e pouco flexível que não enfatiza a utilização das visualidades cotidianas que preenchem vidas dos estudantes, além da crítica da mídia e da sociedade contemporâneas. O fato é que a arte e os objetos artísticos, considerados ícones de beleza, status e poder pela elite, ao longo da história da arte ocidental, não encontram mais eco nas classes populares, por possuírem, cada qual, seus próprios códigos linguísticos, ideários subjetivos de estética e de compreensão da realidade. Ao contrário desses cânones de beleza petrificados, as imagens provenientes das mídias, da web e das mais diversas fontes são portadoras de expectativas relacionadas ao consumo, alimentam corações e mentes em contextos e culturas diversas e globalizadas.

A palavra “Projeto” inspirou o trabalho. Projeto remete ao futuro, significa prever, antecipar, imaginar algo que ainda será. Segundo o dicionário Aurélio (1975, p. 1144) significa também plano, intento, desígnio, empreendimento como indica sua gênese do latim projectu- lançar para diante. Projetar também significa atirar-se, lançar-se, precipitar-se, arrojar-se e, talvez, seja este último significado que cause tanto temor àqueles que se deparam com essa proposta de trabalho que não tem prescrição.

Os projetos concretizam ideias, materializam-se em produtos, visam a resultados, são elaborados progressivamente e são realizados por pessoas que ousam realizar. O projeto engendra desprendimento e ousadia para aventurar-se, assim como humildade e prudência para reconhecer que é preciso investigar mais, para conhecer mais, que se pode adquirir informações sem recorrer ao livro texto, e que o professor não está necessariamente no centro da ação pedagógica. O projeto tange o domínio político, sociológico, cultural e consequentemente pedagógico no âmbito escolar. Os projetos de trabalho significam ainda segundo Hernàndez:

[...] reposicionar a concepção e as práticas educativas na escola, pode ser um meio de nos ajudar a repensar e refazer a escola, também podem reorganizar a gestão do espaço, do tempo, da relação entre os docentes e os estudantes, apresentam mudanças voltadas à reorientação da função da escola, são evidências que indicam uma das direções da mudança (HERNÀNDEZ, 2000, p. 179).

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Consideramos importante a premissa de que os projetos de trabalho na perspectiva crítica da cultura visual podem ser o meio privilegiado para promover as mudanças necessárias à transformação da educação, entre elas a promoção da identidade individual e a justiça social na educação. Dias afirma que: “a Educação da Cultura Visual conduz os sujeitos à consciência crítica e à crítica social como um diálogo preliminar, que conduz à compreensão, e, então, a ação” (2011, p. 62). A ação dos sujeitos se dá nesse caso a partir dos projetos de trabalho. A partir da crítica social, o estudante propõe a ação interventiva. A execução do projeto é a culminância da ação pedagógica.

Há que se reconhecer o potencial transgressor dos projetos de cultura visual e de como eles podem mudar a educação e promover uma escola que empodera seus estudantes. Uma escola capaz de questionar a sociedade e representá-la ou a recriá-la em imagens e textos críticos. A educação da cultura visual é, portanto, uma ferramenta para a criação artística e para a transformação da escola. Negligenciar sua potencialidade é desconsiderar a possibilidade de repensar criticamente essa instituição secular e propor ações que visem a sua transformação e também a da sociedade.

Nesse momento de mudanças de paradigmas em todos os setores, quando a sociedade passa a se organizar em rede e se dispõe fortemente a compartilhar, nada mais anacrônico que um professor que pensa e trabalha sozinho, um instrutor especializado que considera o seu saber estanque e definitivo. A utilização dos projetos como possibilidade de trabalho transdisciplinar pode dar mais sentido à aprendizagem. Trata-se, sobretudo, de instituir novas formas de pensar e organizar a escola, de influir na pré-disposição do docente para desenvolver habilidades novas.

Segundo Freire, “as pessoas se educam em comunhão, mediatizadas pelo mundo pelos objetos cognoscíveis” (2005, p. 79). Nossas práticas pedagógicas propõem, a partir desse enfoque Freireano, a construção de uma escola onde os estudantes conectem, relacionem os conteúdos curriculares com a sua vida, a sua cidade e a sua própria escola, bem como possam compreender em quais contextos se produziram as obras artística, as imagens, por quem e porque se apresentam de determinada forma e não de outra, e que essa nova postura se construa por intermédio de projetos de trabalho.

Defensor dos projetos de trabalho, Hernández (1998) afirma que os projetos constituem lugares, onde a aproximação com a identidade dos estudantes é favorecida, onde a função da escola não é apenas ensinar conteúdos. Trata-se de uma proposta de revisão curricular de forma não fragmentada em que se leva em consideração o que acontece fora da escola e as informações e interatividade que as novas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) aportam, além do posicionamento questionador diante dessas informações.

Utilizar nos projetos de trabalho a cultura visual significa utilizar os artefatos, as imagens produzidas pelas novas tecnologias da informação e comunicação e pelas mídias convencionais de forma a ressignificar conceitos e, principalmente, tornar a proposta educativa a partir de perguntas mais interessante e estimulante para os estudantes e professores. Questionamentos como estes: Quem sou e para onde vou? Como dou sentido ao mundo e me comunico com ele? Como descrevo, analiso e configuro o mundo que me rodeia?, sugeridos por Hernández (2007, p. 57), permitem que se questione a realidade e se questione sua representação única, que se relacionem imagens com outros contextos, com outras abordagens culturais e que se produzam novos questionamentos sobre relações de poder, de representação de gêneros, etnias e divisões da sociedade.

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Para que o conhecimento seja percebido de forma transdisciplinar, e a cultura visual permite essa abordagem, é necessário mais do que o diálogo entre as disciplinas. É o conhecimento coordenado que possibilita o trânsito entre os campos de saberes, ultrapassando a concepção disciplinar e fazendo com que uma única questão seja abordada a partir de uma perspectiva plural. Alguns temas definidos nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) permitem que se compreenda melhor o conceito: sexualidade, pluralidade cultural, meio ambiente, saúde e ética, por exemplo.

E não se trata de prática sem teoria. A fundamentação teórica dos Estudos Culturais se constrói a partir de debates de inspiração pós-estruturalistas, pós-colonialistas e pós-modernistas. Esses debates consideram as relações de poder e dominação social visíveis nas divisões de classe, de gênero e de raça, além das mudanças sociais, culturais, econômicas e tecnológicas do mundo contemporâneo. Essas relações se traduzem em imagens produzidas pela mídia, internet, publicidade, podendo perfeitamente serem ressignificadas de forma crítica, direcionando o trabalho docente e suas práticas pedagógicas às visualidades e à cultura visual. Apesar de não estar direcionada expressamente para as práticas de arte educação, essa nova forma de pensar o mundo parece que foi lhe feita sob medida. 

O projeto Tarot

O projeto “Tarot - Conceito x Imagem”, realizado entre 2003 e 2007, destinou-se a atender o conteúdo prescrito pela SEEDF de Arte e Mitologia Grega e resultou no aporte da cultura visual aos resultados. Foram apresentadas as visualidades que os estudantes aportaram a fim de reconstituir significados visuais associados a conceitos abstratos de arquétipos mitológicos.

Em 2005, no início do ano, durante a semana de preparação do ano letivo e de distribuição e escolha da carga de cada professor, Sasso foi contemplada com turmas de primeiros, segundos e terceiros anos do Ensino Médio, fato que significava três conteúdos distintos, planejamentos e avaliações diferentes para cada etapa do Ensino Médio.

Na primeira semana do ano letivo, geralmente se faz o planejamento anual e procura-se articular os conteúdos de cada bimestre com projetos e metodologias. E assim Sasso articulou os conteúdos dos três anos do Ensino Médio de forma que fosse possível desenvolver um único projeto.

O currículo do primeiro ano no segundo bimestre prevê a pré-história, a antiguidade e a antiguidade clássica no primeiro semestre. Conhecendo a rejeição dos alunos por este conteúdo, a professora buscou uma estratégia para abordar a mitologia de uma forma que fosse interessante para eles.

A mitologia grega é importante porque tem uma extensa influência sobre a cultura, a arte e a literatura da “nossa” civilização ocidental. Ela é importante para que se entendam as histórias que os homens criaram, a fim de explicar os fatos que não compreendiam, como, por exemplo, a natureza do mundo. É a partir da mitologia que os homens justificam as origens e os significados de seus cultos. Além disso, trata-se de um conteúdo recorrente na arte, consequentemente nas avaliações externas.

Privar os estudantes de sua abordagem significa reduzir suas chances de prosseguir seus estudos no Ensino Superior. Esse conteúdo é tão importante que, no segundo ano, a mitologia grega reaparece na abordagem do Neoclassicismo, como antítese ao período Barroco e ao Rococó. A introdução dessa análise se faz a partir da comparação do exagero e maneirismo das estéticas predecessoras, com a temática das representações clássicas e a retomada do Classicismo. Logo, é possível, no segundo bimestre, abordar a mitologia grega também no segundo ano.

Figura 2- Cartas do Tarot mitológico e do Tarot nórdico Lo Scarabeo

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Já no terceiro ano, dando continuidade à linha do tempo, o currículo prescreve para o segundo bimestre abordar o Simbolismo e, a partir desse conteúdo curricular, é possível retomar a mitologia clássica. As representações clássicas também são importantes para que os estudantes possam contrapor, dimensionar e entender a importância das representações abstratas e os movimentos artísticos do modernismo. Nos planos de aulas, portanto, seria possível concomitantemente abordar a mitologia grega para os três anos do Ensino Médio no segundo bimestre.

Sasso percebeu que seria mais interessante, em vez de situar a mitologia em diversos contextos históricos, contar as histórias de deuses e heróis e ilustrá-las com suas representações encontradas nos trabalhos de diversos artistas, em diversos momentos da história da arte. Decidiu, para isso, que os estudantes ilustrariam estas histórias, a partir das visualidades representativas dos conceitos que cada história aportava a eles. Martins aborda essa questão e resume as pretensões da professora relacionadas à prática pedagógica:

O papel que as imagens desempenham na cultura e nas instituições culturais não é o de refletir a realidade ou torna-la mais real, mas de articular e colocar em cena a diversidade de sentidos e significados. Embora indivíduos de um mesmo grupo ou comunidade convivam com as mesmas imagens, cada um as vive e interpreta de maneira diferente, distinta, criando brechas e espaços de diversidade. O problema é que grupos hegemônicos aspiram impor e autorizar suas interpretações, seu nível de verdade, constrangendo os outros a aceitar esta interpretação ou a lutar para libertar as imagens do humo imobilizador do habitus acadêmico ou mercadológico (MARTINS, 2007, p. 5).

Considerando o perigo de associar os significados das imagens com uma visão consolidada e fixa desses conceitos, como alerta Martins, Sasso decidiu que, em um primeiro momento, não mostraria as representações dos conceitos, a partir da visão dos artistas ao longo da história da arte, mas deixaria os estudantes aportarem as visualidades que lhes fossem mais significativas para representar um conceito dado.

Figura 3 – Tarot mitológico de Liz Greene e Julie Sharman-Burke

Sasso lembrou que fora presenteada com um livro acompanhado de um jogo de tarot último natal. Como colecionava baralhos do jogo de tarot, aquele presente a agradou mais do que qualquer outro e estava bastante presente na sua memória naquele momento. Em 1986, a astróloga e escritora Juliet Sharman-Burke criou, em parceria com Liz Greene, “O Tarot Mitológico” (Figura 3). A partir dos 22 arcanos maiores do tarot, eram contados os mitos da antiguidade clássica que foram associados a conceitos como: inconsciência, habilidade, sabedoria, inteligência, vontade, fé, fertilidade, percurso, equilíbrio, meditação, sorte,  energia, expiação, metamorfose, alma, sedução, desabamento, esperança, ilusões, bem-estar, despertar e mundo. Teve, então, a ideia de introduzir os estudantes na mitologia grega, a partir desses conceitos extraídos do jogo de tarot.

Sasso sabia que falar de deuses em uma comunidade predominantemente evangélica poderia causar polêmica, mas se aventurou nessa abordagem por acreditar que os estudantes poderiam se interessar mais pelo tema e também por acreditar que a arte possibilita questionamentos e quebra de paradigmas.Também vislumbrou, a partir dessa abordagem, a oportunidade de discutir e analisar com os estudantes crenças e dogmas religiosos.

Figura 4 - Publicidade de Dona Daiane na Viação São José – BSB.

Figura 5 - “Santinho” distribuído nos semáforos.

Figura 6 - Out door com Dona Daiane em Brasília.

Figuras 4,5 e 6: Publicidade de Dona Daiane na Viação São José – BSB; Out door com Dona Daiane em Brasília; “Santinho” distribuído nos semáforos

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A partir daí, começou no primeiro bimestre a colecionar anúncios de videntes e cartomantes. Buscava nos semáforos da W3 (Avenida Comercial de Brasília) santinhos que são distribuídos com dizeres como: “Tia Dayane traz seu amor de volta”, “Irmã Mara, espírita vidente”, “Vidente Fátima”, “Jogo de búzios com Maria de Oxóssi”, “Tarot e numerologia. Grátis a primeira consulta.”, “Banhos de descarrego” (Figuras 4,5 e 6).

O projeto deu-se início perguntando aos estudantes quem já havia visitado uma cartomante? As meninas, principalmente, já haviam procurado esse serviço e muitos relatos se seguiam, como o de pessoas exploradas por suas crenças ou ainda relatos que comprovavam a eficiência do tarot ou do jogo de búzios para esclarecer situações e problemas. Quando o debate já estava acalorado e os estudantes divididos entre os que acreditavam nas cartomantes e aqueles que as chamavam de charlatãs, deu-se início a intervenção da professora, que explicou o que era um oráculo, seu funcionamento e perguntou se os alunos gostariam de aprender o jogo, até para não cair mais no conto da “Madame Dayane”.

Ao final, todos concordaram em produzir como trabalho de avaliação do bimestre um jogo de tarot e, a partir dele, estudar a mitologia. A partir daí, foram distribuídas cartolinas brancas para cada um dos estudantes e foi pedido que cortassem a cartolina no formato de uma carta de baralho. Enquanto os procedimentos eram executados, Sasso contava histórias de oráculos. Quando percebia que os estudantes já possuíam um número razoável de cartas, o trabalho era iniciado.

Inicialmente, ela demandava para que ilustrassem a primeira carta, criando uma imagem para o conceito de inconsciência, tarefa muito difícil, segundo os estudantes, pois se tratava de um conceito abstrato e que não possuía uma representação única. Em suas criações, alguns estudantes desenharam pessoas dormindo, outro representou o conceito por uma camisa de força, outro por um bêbado, outro pelo perigo de andar em uma corda bamba. Outros estudantes do 3º ano, influenciados pelo abstracionismo ou inspirados por Kandinsky, criavam imagens geométricas e suas abstrações fluidas. À medida que os estudantes desenhavam e pintavam, ela circulava entre as carteiras e, quando percebia que já estavam quase concluindo o trabalho, começava a contar a história de Dionísio e de suas aventuras, nas quais todos prestavam atenção.

Em seguida, Sasso mostrava representações de Dionísio na estatuária e nas cerâmicas gregas na visão de Caravaggio, Rubens e outros artistas. Para finalizar, os estudantes atribuíam o número zero à primeira carta do baralho e escreviam a palavra inconsciência na parte inferior da carta, e Dionísio na parte superior, finalizando a tarefa. Foi previsto então que em quatro ou cinco aulas o baralho seria concluído, abordando em cada aula quatro ou cinco conceitos. A estratégia de buscar uma representação artística para um conceito abstrato era aguardada pelos estudantes semanalmente. Alguns se queixavam de que sentiam dificuldades para desenhar e foi sugerido que poderiam usar colagens para obter resultados mais satisfatórios. Diante da curiosidade de todos em saber os próximos conceitos, a professora apresentou os números e os 22 conceitos que as cartas (os arcanos maiores do tarot) representavam.

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Interpretação

Deuses Mitológicos

Nome

0

INCONSCIÊNCIA

DIONÍSIO

O Louco

1

HABILIDADE

HÉRMES

O Mago

2

SABEDORIA

PERSÉFONE

Sacerdotisa

3

INTELIGÊNCIA

HERA

A Imperatriz

4

VONTADE

ZEUS

O Imperador

5

QUIRON

Hierofante

6

ESCOLHA

PÁRIS

Os Enamorados

7

PERCURSO

ARES

O Carro

8

ENERGIA

HÉRCULES

Força

9

TEMPO

CRONOS

O Eremita

10

SORTE

MOIRAS

Roda da Fortuna

11

EQUILÍBRIO

ATENA

Justiça

12

EXPIAÇÃO

PROMETEU

Enforcado

13

METAMORFOSE

HADES

Morte

14

ALMA

IRIS

Temperança

15

SEDUÇÃO

PAN

O Diabo

16

DESABAMENTO

POSEIDON

A Torre

17

DESEJO

PANDORA

A Estrela

18

ILUSÃO

HÉCATE

A Lua

19

INSPIRAÇÃO

APOLO

O Sol

20

DESPERTAR

HÉRMES

Julgamento

21

LABIRINTO

HERMAFRODITO

O Mundo

QUADRO 1. Carta de Tarot

Figura 7- Representações de “inconsciência” em cartas de baralhos feitos por diversos estudantes do CEM 01, 2005)

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Alguns estudantes estavam tão ansiosos para aprender a jogar que, na aula seguinte, trouxeram os vinte e dois arcanos já desenhados ou colados em casa (Figura 7). Pesquisavam nas lan houses sobre a mitologia grega e suas histórias e entenderam que a mitologia permanece até hoje como parte da herança e da linguagem ocidental.

Conceito x imagem

Em uma segunda-feira, Sasso foi procurada por uma estudante que lhe relatou que seus pais a haviam proibido de continuar o trabalho iniciado na escola, alegando que aquela prática não era permitida em sua igreja. A aluna havia utilizado a palavra “tarot” para se referir à atividade que estavam realizando e então Sasso lhe explicou que não era bem isso, que estavam estudando a mitologia grega, e que era conteúdo obrigatório curricular. Argumentou também que estavam associando os conceitos relacionados a significação dos mitos com as imagens criadas a partir do imaginário dos estudantes, e que a estratégia de construir cartas de baralho tinha como objetivo memorizar mais facilmente tantas histórias. Por fim, a professora  disse que, se a estudante não conseguisse justificar o trabalho,  pedisse para que seus pais fossem conversar com ela, mas eles não a procuraram.

Sasso explicou o objetivo do trabalho nas salas. A partir desse dia, passou a tratar o trabalho como conceito x imagem e evitava utilizar a palavra tarot para se referir ao projeto. Mesmo assim, os estudantes queriam aprender a jogar com o oráculo e terminar o baralho significava fazer perguntas que precisavam de respostas que os estudantes não possuíam.

Nas aulas, o conceito de habilidade foi associado ao mito de Hermes, deus da magia e da adivinhação. O conceito de sabedoria foi associado ao mito de Perséfone e a explicação fantástica das quatro estações do ano. O conceito de fertilidade se relacionava com o mito de Hera, esposa de Zeus e deusa do casamento e seu ciúme incontrolável. A palavra vontade remetia ao mito de Zeus, deus dos deuses. Em outra aula, a palavra fé deu início à prática pedagógica. Essa palavra se articulava ao mito de Quíron, o sábio que pode curar os outros, mas, que não pode curar a si próprio. O conceito de fé e as significações dessa palavra para os estudantes provocavam grandes discussões que desembocavam em dogmas religiosos, obrigando uma mediação da professora, a fim de minimizar os conflitos causados pelas diferentes visões de mundo.  O conceito de escolha foi associado ao mito de Páris e sua escolha por Helena, o que desencadeia, segundo a mitologia, a guerra de Tróia. Ao conceito de percurso, o mito de Áres, o deus da Guerra foi articulado. A palavra equilíbrio remete por sua vez ao mito de Atena, deusa da Justiça.

Todas as aulas promoviam discussões filosóficas importantes que impulsionavam a docente a buscar representações artísticas para, após as criações dos estudantes, enriquecê-los com outras abordagens de representações visuais, a partir dos conceitos. No frontão do Parthenon grego, figura a imagem do centauro Quíron e também na cerâmica. Essa imagem desconstruía a imagem de fé associada aos conceitos cristãos e provocava bastante polêmica. A pintura de Victor Meireles intitulada Moema possibilitou discussões sobre o conceito de Justiça, e a obra de Jacques Louis David que ilustra o amor de Páris e Helena também provocou discussões acaloradas quando se abordou o tema das consequências de nossas escolhas, sempre exemplificado por histórias contadas pelos estudantes de situações vivenciadas ou conhecidas. 

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Ao conceito de meditação foi associado o mito de Cronos, deus do tempo. A sorte e o destino dos homens são regidos pelas Moiras e a Roda da Fortuna. O conceito de energia e força foi representado pelo mito de Hércules, o semideus perseguido por Hera, e as vitórias de Hércules em suas muitas aventuras e conquistas. O conceito de expiação é construído a partir do mito de Prometeu, o Titã que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens, sua criação. O conceito de metamorfose está associado ao deus da morte Hades, que dominava o mundo inferior. Na aula em que esses conceitos foram abordados, o mito de Prometeu também causou polêmica porque, para a maior parte dos estudantes, parecia heresia associar esse personagem à criação do homem. A palavra expiação também não fazia parte do vocabulário dos estudantes, portanto fez-se necessário o uso do dicionário em todas as aulas. A polêmica em torno da criação do homem por Prometeu era apaziguada pela consideração da relatividade de um conceito como “verdade” única. A interpretação do mito associada ao sacrifício em prol de um benefício maior também direcionava as discussões para outros relatos. Mas as discussões mais interessantes ocorriam quando tratávamos de um assunto muito presente na vida dos estudantes, como a morte de amigos e conhecidos ocasionada em grande parte pela guerra de gangues. O entendimento de morte como transformação também provocava criações artísticas impressionantes.

Em aulas seguintes, discutiu-se o conceito de Alma, que na mitologia remete à Isis, a deusa do arco-íris, mensageira dos deuses que aporta aos homens misericórdia, pacificação, consolo, bondade e temperança. O conceito de sedução foi construído a partir do mito de Pan, o fauno dos bosques, personagem selvagem, deus dos rebanhos e dos pastores. O conceito de desabamento remete à Poseidon, deus dos mares, personagem mitológico imprevisível que ocasiona maremotos e calmarias. O mito de Pandora, divindade doadora de talentos, libertou de um baú, por sua extrema curiosidade, a esperança que estava aprisionada com os males do mundo. A palavra alma direcionava as discussões em sala de aula e as representações dos estudantes para a vida após a morte e às imagens de filmes que associam o conceito à para-normalidade e às assombrações. Entretanto, outras palavras como bondade, pacificação e misericórdia também associadas ao conceito direcionavam as representações imagéticas e apontavam para a pacificação dos conflitos entre gangues rivais.

Na última aula, antes de informar aos estudantes as regras do jogo, Sasso tratou do conceito de ilusões, e a história de Hécate, deusa da lua, rainha do mundo dos espíritos, divindade noturna associada ao controle do submundo, do paraíso e da terra. O conceito de bem-estar e de arte foi associado a Apolo, deus sol, da música, da beleza, da juventude e da profecia. A palavra despertar traz o mito de Hermes, mensageiro dos deuses novamente ao centro das discussões. Por último, o conceito de mundo ou de labirinto apresentava aos estudantes o mito de Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite que se apresenta como macho e fêmea em um só corpo. Esse personagem mitológico também está associado ao êxtase e à completude.

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Essa foi a aula mais polêmica porque abordava questões de gênero, o respeito às diferenças e à homossexualidade. Como os preconceitos relacionados à aceitação do outro, distinto dos padrões de normalidade, estavam muito presentes na comunidade e as discussões desembocavam em citações bíblicas, Sasso mediava as discussões apresentando aos estudantes a história da sexualidade de Michel Foucault, com isso relativizando os conceitos fechados em si mesmos como verdades absolutas.

É claro que representações visuais estereotipadas também suscitavam novas discussões sobre essa questão e a aula terminava sem que se chegasse a um consenso. Felizmente, eles instauravam a dúvida e outros questionamentos relacionados à hipocrisia da sociedade que promove a repressão sexual. Na sociedade a discussão sobre a sexualidade é marcada por contexto de controles e interdições. Por quê? Algumas questões foucaultianas foram levadas aos estudantes como: Será que o sexo sempre foi reprimido em todos os momentos da história? Como ocorria em outras culturas, antes de a Bíblia existir? Qual a hipótese da repressão sexual? Porque a repressão sexual é uma forma de poder? Porque a escola, a igreja, a família, as pessoas abordam essa questão de forma desnaturalizada? O que justifica o controle e a punição dos sujeitos? A quem interessa esse controle? Como o sexo se torna um problema econômico e político? O que existe de perigoso no ato sexual? A quem interessa que a sexualidade social seja vigiada e punida? Essas questões foram escritas para que os estudantes refletissem sobre o assunto, discutindo-as.

Figura 8 - “A origem do mundo”, Gustave Courbet, 1865

Esperava-se que alguns estudantes levassem essas questões ao pastor ou até mesmo adiante a seus familiares, mas eles não o fizeram. Acredita-se que assim procederam por não desejarem perder a discussão sobre o assunto. O desafio de abordar essa questão entre adolescentes é enorme, mas como desconsiderá-la, se esse assunto é o que mais interessa aos jovens? Taylor et ali (2006, apud, TAVIN 2009, 228) recomenda aos professores de arte que estes sempre baseiem suas unidades de ensino em um problema ou questão obtidos de obras de arte e da cultura visual. A obra de arte escolhida para dar início às discussões foi: “A origem do mundo”, de 1866, de Gustave Courbet (Figura 8). Após a apresentação da imagem aos estudantes, todos falavam ao mesmo tempo e comentavam, sorriam e algumas meninas ficavam envergonhadas e ruborizadas. Sasso questionava-se por que essas imagens provocavam tantas sensações diferentes entre os estudantes e por que falar de sexo e abordar essa questão é considerado pela sociedade algo constrangedor, ridículo e desnecessário se todos vivenciamos a sexualidade diariamente.

As falas foram organizadas de modo que todos pudessem falar e ser ouvidos. Logo a sala se dividiu em dois lados. De um lado, os estudantes que defendiam abordar o tema de forma aberta, geralmente os homens. De outro, aqueles que ponderavam que não seria educado, por causar desconforto, porque vivemos todos vestidos e a nudez incomoda. Nesse grupo, predominavam as mulheres. Ponderamos que a divisão da sala em gêneros ocorria porque os homens foram estimulados a exercitar e visibilizar e visualizar a sexualidade, ao passo que as mulheres são reprimidas pela família e pela sociedade apesar de visibilizadas.

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Voltamos às questões propostas para reflexão. Alguns estudantes pesquisaram e trouxeram valiosas contribuições às discussões. As questões religiosas também se colocavam e eram argumentos associados à moralidade, aos bons costumes. Sasso interveio com alguns questionamentos: bom para quem? É bom para os homens que as mulheres não conheçam o sexo e se satisfaçam com o que lhes está sendo oferecido? Porque a mulher é representada nua com muito mais frequência que os homens? Porque a mulher se torna mercadoria? Porque nos conformamos? Porque não questionamos? Porque sexo só é tratado como pornografia ou piada? Quem compra pornografia? Quanto se lucra com a pornografia? Procurava não afirmar nada, levantava questões para que os próprios estudantes refletissem e respondessem. Algumas vezes tivemos que intervir com mais questões. A polarização da sala se manteve e o debate se estendeu.

Enfim

Localizada entre a arte e a educação, essa prática pedagógica procurou nesse “entre lugar” (MIGNOLO, 2000) o cruzamento entre culturas: a nossa, a do orientador e da professora elitizadas, construídas a partir de estudos acadêmicos no Brasil e no exterior, e as culturas de seus estudantes do Centro de Ensino Médio 01 de São Sebastião, influenciadas, sobretudo, pela cultura de massa e cultura popular. Inegavelmente questões da visualidade de Gênero e Sexualidade ganharam destaque neste projeto. Poderíamos inferir que uma das características mais específicas do projeto doTarot foi abrir a discussão sobre identificações e des-identificações visuais de representações de gêneros e sexualidades e interferir com os cânones instituídos do desejo sexual e gênero dentro de um tema de História da Arte.

O Tarot propiciou uma desconstrução do processo de normatização da sexualidade, apesar de não avançar nas suas discussões teóricas. As representações dos gêneros/sexualidades apresentadas deslocaram as várias maneiras de vê-las, interrogar a interação do problema entre o espectador e o objeto da visão e ofereceram uma crítica da naturalização da sexualidade em nossa sociedade contemporânea.

A heteronormatividade foi entendida como uma construção discursiva com viés político que gera a normatização da heterossexualidade como modo “correto” de estruturar os desejos; e, ao fazê-lo, marginaliza todas as outras formas de desejo. Constituída por regras, as quais a sociedade produz, que controlam o sexo dos indivíduos e que, para isso, precisam ser constantemente repetidas e reiteradas para dar-lhe o efeito natural contudo a construção heteronormativa passa essencialmente pela construção discursiva dos outros, dos abjetos, entre eles a homossexualidade (BUTLER, 2003). Estas performances identitárias de gênero e sexualidade são reguladas por normas que estabelecem como homens e mulheres, machos e fêmeas, devem agir – o que identificamos como heteronormatividade. Trata-se de um padrão de gênero e sexualidade que tem a qualidade ou força de uma norma. Portanto, as práticas não-heteronormativas são aquelas construídas por indivíduos que, em suas performances, não reiteram os ideais heteronormativos impostos em sociedades, ou seja, as normas heterossexuais e, por conseguinte, homossexuais também (BARRETO; DIAS, 2010).

Deste modo, uma suposta natureza dualista da identidade e seu caráter unitário de subjetividade são questionados em suas premissas, e o resultado disso é a desconstrução da hegemonia heteronormativa sexual. Mais ainda, a Teoria Queer e os Estudos Queer propõem um enfoque não tanto sobre as populações específicas, mas sobre os processos de categorização sexual e sua desconstrução acompanhados de seus próprios conjuntos de políticas que questionam quaisquer posições binárias (DENZIN, 2006).

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Portanto o diálogo inquisitivo e questionador se estabeleceu nesse tipo de narrativa biográfica, entre quem escreveu, quem leu e ospersonagens dos relatos, como um ato de partilha e emancipação, na medida em que “localizam histórias,se reinventam os outros e nos reinventamos a nós próprios” (BARONE, 2000). Nestesdiálogosas emoções foram mediadas pelas narrativas visuais que complementam,contrapõe-se, somam-se e que são, por sua vez, preenchidas em um movimento alternado entre o processo de elaboração intelectual e sensível presentes no processo de ensino investigação.

A análise dos dados resultantes da experiência aponta para um empoderamento dos sujeitos no contexto da execução dos projetos, pois fomentaram agência ao assumiram a responsabilidade de conscientizadores/sensibilizadores da/na comunidade. Percebemos a importância das práticas pedagógicas como memória importante da vida dos estudantes, pois relacionaram suas lembranças da época da execução dos projetos com o estranhamento da comunidade escolar em relação a essas práticas. O projeto foi descrito como um desafio que os tornaram mais críticos e conscientes de suas posições no mundo e mais atentos às questões políticas, as mudanças de atitudes, e mais respeito à alteridade. Apesar de os alunos terem pouco interesse pelo tópico central determinado pelo currículo escolar da História da Arte, a arte contemporânea foi apreendida pela maioria nesse projeto, pois esses tópicos foram bastante explorados e os estudantes começaram a associá-los, pelo envolvimento coletivo no trabalho, ao cotidiano e considerar esse conhecimento e saber como importante para suas vidas.

Nesse sentido, as imagens cotidianas portam valores e opiniões sobre as questões sociais e culturais e, por esse motivo, não são isentas ou neutras. Foucault se refere ao poder não só como uma força que diz não, mas que de fato permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso (1985, p. 8). O poder desse discurso está em um olhar, um posicionamento ideológico sobre o mundo. Rorty afirma que ampliar nossas relações e travar conhecimento com pessoas desconhecidas impulsiona novos jogos de linguagem e Sasso acrescenta também relativizações culturais:

Nada pode servir como crítica de uma pessoa salvo outra pessoa, ou como crítica de uma cultura salvo outra cultura alternativa, pois, para nós, pessoas e culturas são léxicos encarnados. Por isso, nossas dúvidas acerca de nossos caracteres ou de nossa cultura apenas podem ser resolvidas ou mitigadas mediante a ampliação de nossas relações [...]. Os ironistas temem ficar presos ao léxico em que foram educados se apenas conhecem gente da vizinhança, de maneira que tentam travar conhecimento com pessoas desconhecidas (RORTY, 1989, p. 89).

Aguirre (2009, p. 177) defende o método dos escritores e oradores que se servem da ironia com frequência, por buscarem novos léxicos e por ser mais eficaz na geração de novas maneiras de ver o mundo. Relativizar posicionamentos pessoais e culturais foi a intenção, quando os questionamentos os calavam e os faziam refletir. Foi inserido na discussão o ponto de vista Hindu e o Kama Sutra, para que considerassem outra abordagem para a sexualidade que não a cristã. Na Índia clássica, a espiritualidade se mistura com a sexualidade, mas os estudantes nunca haviam considerado outras visões a respeito do assunto. Sasso diz que tem a evidência da consciência do afeto e da memória de que os estudantes aprenderam muito com as informações visuais que introduziu em suas vidas, muito mais do que se tivesse escolhido outra abordagem, como a textual. Freedman argumenta que existe um conflito entre a educação que busca resultados e a arte que busca o imprevisto. Segundo Kerry Freedman:

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Quando os estudantes desenvolvem uma compreensão mais profunda de suas experiências visuais, podem ver de forma crítica as aparências superficiais e começar a refletir sobre a importância da arte visual para dar forma a cultura. A sociedade e identidade individual (FREEDMAN, 2006, p. 19).

Figura 10 - Fotografias SASSO do Tarot de Wagner B. Rocha

Hernández (2005, p. 32) defende, por sua vez, estratégias pedagógicas que, mediante a criação de situações de vivência, convivência e colaboração, dando abertura à diversidade sempre presente nos grupos, possibilitem a reconstrução de conhecimentos. Sasso procura articular em seus planejamentos de aula a busca pelos bons resultados dos estudantes nas avaliações externas, com o que Freedman chamou de busca pelo imprevisto que a arte pode promover. Mas não existe uma estratégia prevista. Trata-se de um projeto, o da cultura visual definido por Tavin (2009, p. 225), a fim de tentar compreender essa condição cultural, suas manifestações materiais e simbólicas e o efeito que ela exerce sobre nossas identidades individuais e coletivas. Uma estudante disse: “A professora causou!”, referindo-se ao efeito da prática docente no projeto com os estudantes (Fig 10).

Em outras aulas, além de introduzir os estudantes nas regras do jogo de tarot, voltamos aos temas que foram discutidos de forma superficial, como, por exemplo, a significação da palavra arte estar associada ao bem-estar e ao Deus sol, Apolo. A fala de um estudante que definiu a arte como “a forma mais poderosa e forte de aprender sobre a vida e as coisas do mundo” emocionou a todos. Esse estudante sintetizou o projeto e principalmente o objetivo da professora como educadora em artes visuais.

Desse modo, nos referimos a este projeto pedagógico e o destacamos como um exemplo de pedagogias culturais como formas de produção cultural com imagens do cotidiano. Entre seus aspectos mais relevantes, está a sua pretensão de contribuir para o desenvolvimento da consciência de liberdade, o relacionamento entre conhecimento e poder, o reconhecimento de tendências autoritárias dentro e fora da escola, além do exercício de habilidades, com vistas à promoção de atitudes construtivas e cooperativas. Sendo assim, não se trata apenas de uma abordagem pedagógica, mas de um ato político, um ato político-pedagógico, pois a pedagogia cultural defende que é necessário agregar os objetos de investigação externos aos currículos escolares e ao processo escolar, e que existe um currículo além dos muros da escola constituído por artefatos culturais disseminados pelas mídias. É importante, portanto, problematizá-los e ressignificá-los a partir de análises e críticas.

Abordar esses temas no contexto educacional permite aos sujeitos envolvidos no processo educativo sincronizar o momento que vivemos com uma educação contemporânea que leve em questão novas metodologias, o trabalho com projetos, a cultura visual, a interatividade, o compartilhamento de experiências e informações entre discentes e docentes e entre o universo escolar e as sociedades e culturas. É importante, sobretudo, para que os sujeitos envolvidos na educação tornem-se protagonistas da cena de inovações no ensino em geral e nas artes visuais em particular. Dessa forma, essa disciplina curricular poderá contribuir para a construção de identidades mais solidárias, tolerantes, generosas, participativas, fraternas e empenhadas nas mudanças sociais. Um tarot de gente viva participante!

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Referências

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BARONE, Tom. Aesthetics, Politics, and Educational Inquiry: Essays and Examples.  New York: Peter Lang Publishing, 2000.

BARRETO, Carla Conceição; DIAS, Belidson. Entremeados: a Teoria Queer e Matthew Barney In: Anais do III Seminário Nacional de Pesquisa em Cultura Visual, 2010, Goiânia.  PPG -Cultura Visual (UFG).

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

DENZIN, Norman K.; LINCOLN, Yvonna S., Orgs. O Planejamento da Pesquisa Qualitativa: Teorias e Abordagens. Biblioteca ARTMED - Métodos de Pesquisa. Porto Alegre: Artmed, Bilioteca ARTMED - Métodos de Pesquisaed. 2006.

DIAS, Belidson. O I/Mundo da Educação em Cultura Visual.  Brasília: Editora do Programa de Pós-Graduação em Arte da UnB, 2011

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FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 144.

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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 43ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

SHARMAN-BURKE, Juliet; GREENE, Liz. Tarô Mitológico. São Paulo:MadrasEditora, 2002.

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MARTINS, Alice F.. Arena Aberta de Combates, também alcunhada de Cultura visual... – anotações para uma aula de metodologia de investigação. In: MARTINS, Raimundo, TOURINHO, Irene (Orgs.) Culturas das Imagens: desafios para a arte e para a educação, Editora UFSM: Santa Maria, 2012.

MARTINS, Raimundo. Temporalidades múltiplas da imagem como pedagogias da interpretação. In: Anais I Congresso de Educação, Arte e Cultura. Santa Maria: UFSM, 2007, p. 1-12.

MIGNOLO, Walter D. Local histories/global designs: coloniality, subaltern knowledges, and border thinking. Princeton: Princeton University Press, 2000.

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TAVIN, Kevin. Contextualizando a visualidade na vida cotidiana: Problemas e possibilidades do ensino de Cultura Visual. In: MARTINS, Raimundo e TOURINHO, Irene. (Orgs.). Educação da Cultura Visual: Narrativas de Ensino e Pesquisa. Santa Maria: Editora UFSM, 2009.

Belidson Dias - professor Associado do Departamento de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Possui Pós-doutorado na Universitat de Barcelona - UB, Espanha , Doutorado em Educação – Arte Educação, na University of British Columbia, UBC, Canadá; Mestre em Artes Visuais, pintura, na Manchester Metropolitan University , MMU, na Inglaterra; especialização na Chelsea College of Art & Design, CCA&D, Inglaterra. Líder do Grupo de Pesquisa Transviações: Educação e Visualidade (UnB/DF/CNPq) e membro dos Grupos: Cultura Visual e Educação da (UFG/GO), Grupo de Estudos e Pesquisas em Arte, Educação e Cultura, o GEPAEC (UFSM/RS). Coordena desde Março de 2015 o Programa de Pós-graduação em Arte da UnB.

Leisa Sasso - doutoranda em Educação em Artes Visuais (UnB 2015), Mestre em Arte (UnB 2014) orientada por Belidson Dias. Fez Especialização em Gestão Escolar (UnB 2009), História da Arte (FADM 2005), e Graduação em Artes Plásticas pela Universidade de Brasília (UnB, 2001). Foi Diretora do Centro Educacional São Francisco em São Sebastião DF por Sete anos e é professora da Secretaria de Estado de Educação do DF. Tem experiência na área de Gestão, Artes Visuais e Arte/Educação, Teatro, cenografia, figurino e texto teatral